• Nenhum resultado encontrado

Parte 2: Contribuições da análise estética freudiana para a elaboração do conceito de

1.2.6 Universo da obra versus o universo do artista

O ponto de ancoragem último da interpretação freudiana da enigmática e grandiosa estátua de mármore de Moisés, esculpida por Michelangelo, e que se encontra na Igreja de San Pietro in Vicoli, em Roma, é a censura aos impulsos agressivos e onipotentes. A escultura, um fragmento do gigantesco monumento funerário que o artista se propunha a erigir em memória do poderoso papa Julio II, refletia, para Freud, uma situação em que Moisés conseguiu controlar sua raiva e renunciar à expressão de agressividade sobre o povo judeu. E é precisamente neste ponto que Michelangelo teria projetado sua vontade de inibir e reprimir a própria destrutividade e onipotência, traços comuns que mantinha com Julio II. O leitor de O Moisés de Michelangelo (1914)

177Uma recordação infantil em Poesia e Verdade, AE XVII, p. 142. 178Uma recordação infantil em Poesia e Verdade, AE XVII, p. 146. 179

conhece as motivações do artista na construção da escultura somente no final do texto. Toda a primeira parte da interpretação da obra de arte prescinde dos dados biográficos de Michelangelo. A interpretação em questão assemelha-se àquela de “Gradiva...” e das peças de Ibsen e Shakespeare − que serão comentadas adiante – ao se apoiar inteiramente no universo da obra.

A estátua representa Moisés, o legislador dos judeus, que segura as Tábuas da Lei com os sagrados mandamentos. Moisés está sentado, com o tronco inclinado para frente, a cabeça virada para a esquerda, com uma grande barba e olhar colérico. Seu braço direito toca na tábua e em uma parte da barba. O esquerdo apóia-se na barriga e segura o lado esquerdo da barba. Freud parte dessa imagem para interpretar a escultura. Chamam sua atenção dois detalhes: a postura da mão direita e a posição de ambas as tábuas. “A pressão do indicador da mão direita recai principalmente sobre os chumaços de pelo da parte esquerda da barba e, em virtude da transgressão que ele opera, a barba é impedida de acompanhar a volta da cabeça e a olhada para o lado esquerdo [...] Que significado possui esta ordem e a que motivos deve sua existência?”.180

É suposto que a imagem de Moisés revela uma ação que se deu anteriormente. Nela, Moisés está sentado e tranqüilo, com a cabeça reta e a longa barba sobre o colo. Repentinamente, ele escuta um ruído e vira a cabeça na direção do barulho. É tomado por um sentimento de raiva e indignação e pelo ímpeto de castigar o povo judeu, que dançava em torno do Bezerro de Ouro. Ao perceber que as tábuas estavam de cabeça para baixo, Freud imagina que, inicialmente, elas estavam colocadas corretamente debaixo do braço direito de Moisés, mas, após o movimento brusco para se levantar, as mãos abandonaram as tábuas e permaneceram junto ao seu corpo graças a pressão dos braços no tórax. A tábua começou a deslizar. A borda superior antes na horizontal caiu para baixo e a inferior, sem equilíbrio, aproximou-se do assento de pedra. Assim, a fim de evitar que a tábua caísse e se despedaçasse, Moisés colocou a mão direita sobre ela. Diante da tentação de se vingar, Moisés teria refletido e se recordado de sua missão, renunciando à satisfação de seu afeto.

A versão das Sagradas Escrituras descreve um Moisés bom com o povo judeu e que pede desculpas a Deus pelo ato de seu povo. “Michelangelo situou no monumento funerário do papa um Moisés diferente, superior ao Moisés histórico e tradicional [...] Ele não deixa que a raiva de Moisés destrua as Tábuas da Lei, mas apazigua esta raiva,

ou ao menos inibe o caminho da ação, pela ameaça de que ela pudesse se despedaçar”.181 A interpretação freudiana segue o modelo de interpretação dos sonhos ao fragmentar a obra e aprofundar o exame de seus detalhes. É operada uma verdadeira construção. Não cabe a nós julgar sua pertinência, mas assinalar que os efeitos da criação artística, apesar de Freud não declarar no texto, aparecem de forma clara. Não apenas pela afetação do psicanalista diante da escultura, mas também pelo trabalho de reconstrução da cena que teria antecedido a postura de Moisés tal como aparece esculpida no mármore. Michelangelo teria conseguido representar o legislador com o afeto contido e com expressão de raiva e reprovação. O efeito em termos de prazer estético para o espectador ocorreria após a identificação com Moisés ou com aqueles sobre quem ele lança seu olhar furioso. É Freud quem diz, identificado com aquele que é alvo do olhar da estátua: “como se eu mesmo fosse um deles a quem ele dirige seu olhar, esses canalhas que não podem manter nenhuma convicção, não têm fé nem paciência e se alegram se devolvem a ilusão dos ídolos”.182 Mais uma vez, é baseada sobre a expressão de um afeto reprimido que incide a concepção freudiana do prazer estético. Neste caso, o afeto com o qual o espectador entra em contato é o da raiva e da agressividade contida.

Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico (1916) parte da

análise de duas peças de Shakespeare e de um conto de Ibsen para ilustrar tipos de caráter nos quais estaria presente a ação da consciência moral sobre os impulsos destrutivos. No último capítulo, dedicado ao exame do conceito de superego, esse texto será trabalhado detalhadamente, mas a partir de um enfoque diferente. Esta primeira leitura de “Alguns tipos de caráter...” propõe-se a evidenciar o estilo de Freud na interpretação das três obras referidas, atentando para as teses psicanalíticas subjacentes às interpretações e para os comentários sobre a natureza da criação artística e da emoção provocada no espectador.

A simpatia que o espectador da obra deve ter pelo herói é, desde Caracteres

psicopáticos no cenário (1906), um pré-requisito para o efeito da fruição artística.

Sobre essa simpatia, Freud comenta, diante do monólogo de Ricardo III, de Shakespeare, que sua existência depende do acesso do espectador a um sentimento que estaria oculto ao núcleo da trama; oculto à fala “negativista” e “frívola” do personagem

181O Moisés de Michelangelo, AE XIII, p. 237. 182O Moisés de Michelangelo, AE XIII, p. 219.

principal. Qual seria, então, a via identificatória entre Ricardo III e o público? O que o monólogo insinua, em outras palavras, que produz no espectador a liberação de sensações prazerosas? O sentimento de que a vida deve um ressarcimento diante das graves injustiças que cometeu. Ou, melhor, o direito que temos de praticar o mal, já que a natureza e o destino afrontaram desde muito cedo nosso narcisismo e nosso amor próprio.

Mas se esta é, segundo Freud, a real motivação dos atos bárbaros de Ricardo III, cabe ao artista apenas aludir discretamente a ela. Daí a delicada economia presente na criação artística a qual Freud descreve habilmente: “Na arte do criador, há uma fina economia que faz com que o herói não profira em voz alta e até o final todos os segredos de sua motivação. Assim ele nos impele a completá-la, faz um apelo a nossa atividade espiritual afastando-a do pensamento crítico e promovendo a identificação com o herói”.183 Rebeca Gamvik, no conto de Ibsen intitulado Rosmersholm, é uma menina educada por um pai adotivo − Dr. West − como livre pensadora, distante da moral religiosa presente nas famílias de seu entorno. Após a sua morte ela se muda para Rosmersholm e é acolhida em uma casa em que os preceitos religiosos imperavam fortemente. Nessa casa mora o pastor Johannes Rosmer, marido da Sra. Beate, por quem ela se apaixona. E para ocupar o lugar dela, descrita como uma mulher doente e impossibilitada de ter filhos, Rebeca cria “um plano criminoso”: convence a Sra. Beate do seu fracasso como esposa, alegando que a finalidade de todo casamento é os filhos, e inventa que o pastor está prestes a abandonar a antiga fé. “E após ter balançado a confiança da mulher jogando com a solidez moral de seu marido, lhe dá a entender, finalmente, que ela mesma, Rebeca, abandonara a casa rapidamente para ocultar as consequências da relação carnal proibida com Rosmer”.184 Rebeca mata a Sra. Beate e Rosmer fica disponível para se casar com ela.

Ibsen relata um casamento harmonioso entre os dois, até o momento em que a personagem principal é acometida por uma estranha infelicidade, a qual atribui à atmosfera paralisante de Rosmersholm e à convivência com Rosmer. O escritor, diz Freud, “nos brinda com pequenas pinceladas de magistral delicadeza”.185 Mostra que Rebeca não mente, mas também não é inteiramente sincera. Diante das razões que

183

S. Freud, Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico (1916). AE XIV, 1989, p. 322.

184Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico, AE XIV, p. 331. 185Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico, AE XIV, p. 332.

Rebeca alega para sua repentina infelicidade, o leitor é levado a crer que algo mais está encoberto nesse sentimento. No último ato, quando Rosmer perdoa Rebeca pelo assassinato, Rebeca revela que o sentimento de culpa que a invade não é atribuído tão- somente ao violento ato, mas a um passado “duvidoso”, em que mantinha relações com outro homem. Desse passado, Ibsen faz algumas alusões durante a narrativa, dando a entender que Rosmer já desconfiava dele.

Em seguida, Ibsen introduz uma conversa do irmão da Sra. Beate com Rebeca em que revela que, na verdade, ela é filha legítima do Sr. West. Rebeca reage violentamente à revelação. Ouçamos Freud: “O enigma da conduta de Rebeca admite uma só solução. A comunicação de que o Sr. West era seu pai é mais difícil do que Kroll – irmão de Beate – poderia imaginar, pois ela não foi somente a filha adotiva mas a amante deste homem”.186 O sentimento de culpa que a acomete ao descobrir que foi amante do próprio pai a derruba com uma força avassaladora. Nesse momento, a revelação emociona o leitor graças à estratégia do artista que consiste em não elucidar de imediato o motivo mais profundo, subtraindo-o da percepção do leitor. Freud assinala que, se o leitor é comunicado do segredo no início do conto, resistências são levantadas contra ele e a emergência de sentimentos penosos comprometem os efeitos desejados pelo drama.

Macbeth, de Shakespeare, repete um tipo de funcionamento psíquico, também

identificado em Rebeca Gamvik, no qual a pessoa adoece no instante em que triunfa. Estes são, nos termos de Freud, “os que fracassam quando triunfam”. A relação pais- filhos reaparece nesta pequena tragédia. O psicanalista atribui o sentimento de culpa que invade Lady Macbeth, após o assassinato do rei da Escócia, a uma reação frente à falta de filhos.187 Supõe que Shakespeare produz no espectador o grandioso efeito ao dividir um caráter em dois personagens que se complementam: Macbeth e sua esposa comporiam uma única personalidade. Se é ele que alucina o punhal antes do assassinato é ela, por sua vez, que adoece após a morte de Duncan. Ele deveria perder o sono e é ela que, sonâmbula, apaga a culpa de ambos. Ele fica com as mãos ensangüentadas, mas é ela que não consegue se livrar do sangue. “Assim, se realiza nela, o que ele, nos arrependimentos de sua consciência moral, temia; ela passa a ser a arrependida após o crime, ele se torna medroso, e entre os dois esgotam as possibilidades de reação frente

186Alguns tipos de caráter elucidados pelo trabalho psicanalítico, AE XIV, p. 334. 187

No capitulo dedicado ao superego faremos uma análise minuciosa desta tragédia, considerada de ocasião.

ao crime, como duas partes desunidas de uma única individualidade psíquica e quiçá copias de um só modelo”.188

As três peças são interpretadas na ausência de dados biográficos do artista, seguem o modelo introduzido por O delírio e os sonhos em “Gradiva” de W. Jensen. As interpretações reafirmam, por assim dizer, que o método psicanalítico é capaz de elucidar o conteúdo latente presente nas criações artísticas, operando perfeitamente bem na ausência de associações e distante da finalidade curativa e terapêutica. Resumidamente, como balizador teórico no monólogo de Ricardo III identificamos, sobretudo, a teoria do narcisismo, enquanto nos outros dois textos, Rosmersholm e

Macbeth, o que parece nortear a leitura freudiana é a mesma teoria utilizada no

comentário de Leonardo da Vinci, a saber, a teoria do complexo de Édipo. Os comentários sobre o efeito que o artista produz no espectador são também foco do interesse de Freud, como vimos. Em sua opinião, o impacto produzido pelo artista se deve à utilização de alguns recursos: o de revelar o segredo da trama somente no seu final ou de cindir uma personalidade em dois personagens diferente. Sobretudo, distrair a atividade do pensamento consciente do espectador por meio de gratificações fornecidas pelo prazer estético ou formal, para que ele suspenda as repressões e descarregue o afeto mobilizado pela obra; escoamento que se dá, muitas vezes, de maneira inconsciente, como é dito em O poeta e a fantasia.

Goethe, ao lado de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Dostoievski, é considerado um artista particularmente bem dotado pela faculdade sublimatória. Freud atenta, em Prêmio Goethe (1930), que o poeta tinha a habilidade de traduzir em palavras as exteriorizações de Eros que habitavam nele. Mais precisamente, as exteriorizações primitivas e sublimadas, mais próximas e menos próximas dos elementos sexuais e agressivos da pulsão. Com Leonardo, ele nos mostra que a aptidão para a sublimação convive perfeitamente bem com um passado infantil repleto de repressões e inibições, investimentos libidinais maciços – de sua mãe – e desinvestimento precoce – de seu pai, revelando que a inibição da atividade sexual pode co-habitar perfeitamente bem com uma quota significativa de pulsão sublimada. Com Dostoievski, considerado por Freud um dos maiores escritores de todos os tempos, ao lado de Sófocles e Shakespeare, ele sugere que a aptidão para a sublimação convive com sintomas neuróticos.

Segundo o raio x efetuado pelo psicanalista da sua personalidade, Dostoievski era dotado de forte pulsão destrutiva, em parte exteriorizada como traços sádicos, em parte voltada contra o próprio ego e originando um funcionamento masoquista e culpabilizador que somente a necessidade de castigo foi capaz de apaziguar. A epilepsia de Dostoievski representava um sintoma de sua neurose pelo fato de possibilitar o escoamento da excitação psíquica pela via somática. Freud retoma Os irmãos

Karamazov para analisar a relação do escritor com o pai. “O inequívoco nexo entre o

parricídio de Os irmãos Karamazov e o destino do pai de Dostoievski chamou atenção de mais de um biógrafo”.189

Os estados de sono letárgico que ele vivia na juventude foram considerados angústias de morte. E aqui vemos ecoar a interpretação do Homem dos Ratos. Assim como Ernst Lanzer reprimiu o ódio inconsciente ao pai, diante do falecimento real da figura paterna Dostoievski sentiu-se culpado e se autocastigou. Ele desejava a morte do pai tanto quanto Lanzer. Este último tornou-se um obssessivo, e Dostoievski identificou-se com o pai morto em seus ataques de angústia. Ambas as expressões sintomáticas se originavam dos desejos destrutivos contra o pai, obstáculo a concretização dos impulsos incestuosos em relação à mãe –, que culminaram na produção do sentimento de culpa inconsciente. Eis como Freud resume a personalidade de Dostoievski: “Eis a fórmula para Dostoievski: uma pessoa de disposição bissexual particularmente intensa, que se defende da influência de um pai duro [...] O precoce sintoma dos ‘ataques de morte’ pode ser compreendido como uma identificação-pai do ego consentida pelo superego como castigo”.190 A necessidade de castigo manifesta-se pela compulsão por jogo – “ele só se tranqüilizou depois de perder tudo” pelas situações de miséria e humilhações às quais se submeteu. Freud assinala, com base em Os irmãos

Karamazov, que o assassino do pai mantinha um vínculo filial com ele, como o filho, o

herói Dmitre, e que todos os irmãos eram, na verdade, igualmente culpados pela morte do pai. Ele chama atenção para a simpatia de Dostoievski pelo personagem criminoso, pautada “na identificação sobre a base dos mesmos impulsos assassinos”.191

Ora, a conclusão de que o escritor russo é um neurótico, somada ao reconhecimento de sua genialidade como artista, indica-nos que a capacidade de

189

S. Freud, Dostoievski e o parricídio (1927), AE XXI, 1989, p. 180.

190Dostoievski e o parricídio, AE XXI, p. 182. 191Dostoievski e o parricídio, AE XXI, p. 187.

Dostoievski para sublimar as pulsões pode conviver com um funcionamento psíquico que encontra como saída para seus impulsos a formação de sintomas neuróticos. Os

irmãos Karamazov foi considerado por Freud, ao lado de Édipo Rei e Hamlet, a obra

mestra da literatura de todos os tempos. Estamos diante de um exemplo de co-presença de aptidão para a sublimação e neurose. Nas palavras de Freud, de um “caso extremo do criador literário governado pela consciência de culpa”. Talvez se possa dizer que, para Freud, o quantum de energia sexual reprimida capaz de produzir um sintoma neurótico não diminui, necessariamente, o estoque de libido potencialmente sublimável. Se ele nos diz que, diferentemente do neurótico, o artista encontra o caminho de volta do mundo da fantasia para o mundo da realidade, talvez Dostoievski estivesse no meio do caminho entre a “normalidade” e a neurose.

Apesar de Dostoievski e o parricídio (1927) levar a cabo uma análise biográfica do escritor, ele contém, ainda que resumidamente, a interpretação de outras três produções artísticas – seguindo a mesma linha de “Gradiva...”, Ricardo III,

Rosmersholm e Macbeth − realizadas sem o recurso aos dados biográficos do autor.

Estamos nos referindo à interpretação de Édipo Rei, de Sófocles, de Hamlet, de Shakespeare e de uma novela redigida por Stefan Zweig, Vinte e quatro horas na vida

de uma mulher. Édipo Rei revela os desejos edipianos na sua expressão mais

transparente, enquanto Hamlet põe em evidência os mesmos desejos, mas de forma menos direta se comparado à tragédia de Sófocles: não é ele quem mata o pai, é outra pessoa. Porém, sente-se culpado do mesmo jeito; e a culpa, deslocada, resulta na incapacidade de vingar a morte do pai. Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, por sua vez, alude às relações amorosas entre mãe e filho, aos desejos inconscientes eróticos. Uma mulher apaixona-se por um jovem que sofre uma compulsão por jogos. Ao dormir com o jovem, não faz outra coisa que realizar suas fantasias de impedir o filho de se masturbar e de se oferecer, assim como faz uma prostituta, para a realização de seus impulsos eróticos e incestuosos.

Uma neurose demoníaca do século XVII (1923) segue um roteiro semelhante à

interpretação da história de Leonardo, da lembrança de Goethe e da vida de Dostoievski. Nos quatro casos, Freud está interessado em encontrar as motivações psíquicas que lhe permitam desvendar enigmas. Sobre Leonardo da Vinci, investiga os sentidos da fantasia infantil do abutre, da mudança da atividade pictórica para a atividade investigativa e sua dificuldade de concluir os trabalhos artísticos. De Goethe, é a recordação encobridora da brincadeira com as vasilhas que o atrai. Da personalidade

de Dostoievski, sua neurose e as relações com os substitutos das figuras paternas. E, finalmente, na análise biográfica sobre a qual nos deteremos um instante, Freud averigua as motivações que teriam conduzido o pintor Christoph Haizmann a pactuar com o Diabo.

Nela, sua conclusão é que Haizmann – que era atormentado por demônios, visões, ausências, e estados convulsivos – caiu em um estado melancólico e de incapacidade para o trabalho após a morte do pai. Aliás, segundo um fragmento do diário íntimo escrito em alemão pelo pintor Christoph Haizmann, é a promessa do Diabo de tirá-lo da melancolia que o faz pactuar. O psicanalista atribui a incapacidade para exercer a arte ao fato de o pai de Haizmann se opor ao desejo do filho de ser pintor. Tratava-se, nesse caso, da expressão “obediência de efeito retardado”. As visões que tinha do Diabo e o pacto remontavam aos impulsos infantis agressivos contra o pai. Na verdade, “o Diabo, a quem nosso pintor entrega sua alma, é para ele um substituto direto do pai”.192 Os peitos do Diabo correspondiam a uma projeção da própria feminilidade em relação ao pai. No curso do complexo de Édipo, Haizmann teria resistido a aceitar a