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Parte 1: Para uma arqueologia da sublimação

1.1.4 Desfazendo equívocos A sublimação após 1921: inibição, desvio, abandono e/ou

O caráter civilizatório da sublimação aparece em alguns textos de Freud. A

moral sexual civilizada e o nervosismo moderno é o primeiro a sublinhar que essa

operação pode produzir formações culturais, e as “Cinco conferências...” a atentar para as contribuições da sublimação na realização social e artística da humanidade. E Sobre a

mais generalizada degradação da vida amorosa – contribuições à psicologia do amor II (1912), a ressaltar que as pulsões sexuais se transformam em conquistas grandiosas

via sublimação. Mas não é senão de maneira vaga a forma pela qual os três textos se referem aos objetos das pulsões sublimadas, de valor cultural. Segue ambígua a relação entre patrimônio cultural e atividade sublimatória, ainda que esta última se situe, ao lado das repressões e das formações reativas, como responsável pela coerção das pulsões sexuais e, portanto, da domesticação das pulsões em estado de civilização.

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A novidade trazida por Psicologia das massas e análise do ego à concepção de sublimação permite-nos desfazer um pouco seu estatuto ambíguo. Uma espécie de sublimação aparece operando em todos os tipos de vínculos de meta inibida nos quais estaria presente um desvio em relação à meta sexual. Nos termos de Freud, nesses vínculos libidinais estaria em jogo “um início de sublimação das pulsões sexuais”.58 Figuras como a do terno devoto, do admirador e do amigo são evocadas para caracterizar esse tipo de ligação pulsional. A diferença entre meta sexual direta e meta sexual inibida repousaria sobre a quantidade da energia conservada. Isto é, a meta sexual direta perde energia cada vez que se satisfaz, e espera sua renovação pelo novo acúmulo da libido sexual. A meta inibida, por sua vez, por não se satisfazer completamente, é capaz de criar ligações duradouras.

Se a sublimação favorece a inibição da meta sexual e se a inibição da meta cria o laço social, o tipo de vínculo duradouro, poderíamos atribuir a sublimação à empresa de Eros, responsável pelas ligações entre os indivíduos e por sua união em unidades cada vez maiores. É precisamente nesse sentido que “Psicologia das massas...” enriquece o conceito de sublimação, ao situá-lo como um elemento integrante do mecanismo produtor dos laços sociais e, por isso mesmo, como uma operação sem a qual Eros não subsistiria diante da força das pulsões de morte.

É preciso destacar outro texto, intitulado Dois artigos de enciclopédia:

“Psicanálise” e “Teoria da libido” (1923) que desenvolve as premissas de “Psicologia

das massas...” e acrescenta dados inteiramente novos à definição da sublimação. O primeiro desses dados baseia-se na retomada das hipóteses de 1914 concernentes à libido narcísica e à libido objetal e na idéia de que a transposição de libido de objeto em libido narcisista implicaria um processo de dessexualização, abandono das metas sexuais específicas. Pela primeira vez o termo dessexualização das metas sexuais aparece − embora estivesse implícito desde o caso Dora – e a expressão inibição das tendências sexuais quanto à meta.

A inibição não implicaria a sublimação das pulsões. É marcada uma diferença entre as pulsões inibidas quanto à meta e as pulsões que abandonaram sua meta. As pulsões sociais, por exemplo, pressuporiam a inibição da meta sexual, mas não o

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abandono da meta diretamente sexual.59 A inibição conserva o mesmo objeto antes visado pelas pulsões sexuais não inibidas. O abandono da meta sexual, em contrapartida, não. O processo de sublimação passa, assim, a reunir as seguintes operações: a inibição da meta sexual, o abandono da meta e a mudança do objeto. O que nos faz concordar com Porret (1994), para quem “[...] esta progressão, partindo da inibição para ir até o abandono da meta, passando pelo desvio deste, assim como pela mudança do objeto, parecem essenciais, apodíticos, para obter as verdadeiras sublimações”.60

Outro dado que nunca havia sido claramente anunciado antes: “O destino mais importante da pulsão pareceu ser a sublimação, na qual o objeto e a meta sofrem uma mudança de via, de modo que a pulsão originariamente sexual se satisfaz em uma operação que já não é mais sexual, mas recebe uma valoração social ou ética superior”.61 É a primeira vez que o objeto aparece no cerne da atividade sublimatória ao lado da meta, ainda que estivesse implícita na definição dessa atividade que todo o processo ocorre somente na medida em que a mudança da meta incidir sobre um objeto valorizado socialmente; um objeto que pode ter sido originalmente sexual mas que foi substituído por outro, distante do sexual.

Quais as consequências, para a concepção de sublimação, da explicitação do “objeto” no seio dessa operação? Ao que parece, o sentido do conceito alonga-se, já que passa a designar dois tipos de transformações concernentes à pulsão sexual: uma relativa à meta e outra relativa ao objeto. Sublimar torna-se, agora, a descarga/satisfação a partir de uma meta distante da sexual mediante favorecida pelo investimento pulsional sobre um objeto valorizado socialmente. Quanto à sublimação ser o destino pulsional mais importante parece estar subentendida a idéia de que ela é relevante para a cultura por tornar úteis grandes parcelas de energia sexual “inúteis”; a mesma energia sexual produtora das neuroses e das perversões.

Vemos, assim, que até O ego e o id (1923) a sublimação reúne as seguintes definições: além ser a operação de desvio da meta e do objeto − do sexual em direção ao não sexual −, participa do processo que resulta nos vínculos de meta inibida e

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“Elas não abandonaram sua meta diretamente sexual, mas são impedidas, pelas resistências internas de aceder a elas, se contentam com a aproximação da satisfação, e instauram justamente por esta razão ligações particularmente sólidas e duráveis entre os homens”. S. Freud, Dois artigos de enciclopédia:

“Psicanálise” e “Teoria da libido” (1923), AE XVIII, 1989, p. 251. 60

J.M. Porret, La consignation du sublimable: les deux théories du processus de sublimation et notions

limitrophes. Paris: PUF, 1994, p. 51.

caracteriza-se como uma atividade humana. Com a introdução da segunda tópica e da segunda teoria das pulsões, a idéia de desvio de meta e de objeto é situada na discussão entre as instâncias psíquicas, e a sublimação, do ponto de vista tópico, torna-se uma tarefa do ego. Do ponto de vista econômico, é atribuída às pulsões de vida. E, pelo fato de favorecer a defusão pulsional e disponibilizar quantidades de energia não ligada, passa a engrossar também o caldo das pulsões de morte.

A história do conceito de sublimação, assim como de tantos outros conceitos metapsicológicos, foi diretamente influenciada pelas mudanças de direção, acréscimos e revisões realizados por Freud durante a elaboração da sua teoria. Talvez se possa afirmar que a conceituação do ego e seu desenvolvimento – que culminaram na introdução da segunda tópica – favoreceu a forma definitiva que o conceito assumiu. Foi sobretudo a partir do conceito de narcisismo e dos Trabalhos de metapsicologia que o ego e seu processo de evolução foram colocados no centro das preocupações teóricas de Freud. Até esse momento de sua produção, a sublimação foi definida tendo como pano de fundo a teoria das pulsões, nunca com uma preocupação de situá-la em uma discussão tópica. O ego e o id (1923) possibilita uma mudança de direção nesse sentido ao considerar a sublimação uma operação realizada pelo ego.

O texto de 1923, que retoma Psicanálise e Teoria da libido (1923), fornece a definição mais completa de sublimação. Tenta integrar os desenvolvimentos de 1914 concernentes à libido narcísica e aqueles de 1920 sobre a pulsão de destruição. O pressuposto extraído da investigação do luto e da melancolia segundo o qual, na perda de um objeto significativo, ocorre um desinvestimento objetal e um retorno da libido para o ego, concomitantemente a uma identificação inconsciente com o objeto perdido e a liberação da agressividade sobre esse objeto, contribuiu para a sua definição de sublimação. Daí a afirmação de Hornstein (1990):

Em O ego e o id Freud consegue dar uma definição muito mais completa do processo sublimatório do que em seus trabalhos anteriores. A sublimação, como processo particular e independente, não pode ser concebida senão a partir das relações que se estabelecem entre o luto, o narcisismo, a problemática identificatória e, por último, a pulsão de morte. Partindo-se dessa nova articulação conceitual, será delimitada essa vicissitude da pulsão. Dá-se um apoio invertido: os “interesses”do ego apóiam-se na sexualidade. Eros sustenta o ego e, portanto, as atividades sublimatórias.62

Na medida em que as pulsões nunca se manifestam isoladamente, em que medida se pode falar de sublimação das pulsões agressivas? Apesar de Freud não

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explorar as consequências da introdução da noção de pulsão de morte para o conceito de sublimação, não se pode negar que essa classe de pulsão, teoricamente, pode ter seu alvo direcionado a uma finalidade diferente da destrutiva, já que as pulsões de vida e de morte apresentam-se nos fenômenos em doses variáveis. Não se trata, aqui, de especular as razões pelas quais essa segunda classe de pulsão não é incluída no rol das pulsões consideradas sublimáveis. Mas observar, apenas, que, talvez, a natureza mesma das pulsões de morte, voltada para o esvaziamento das tensões, seja incompatível com as atividades sublimatórias, motores da produção do patrimônio cultural e dependentes das ligações originalmente eróticas. Ao mesmo tempo, porque as pulsões de morte visam a destruição e a autodestruição, seu modo de funcionamento vai na contramão dos modos de satisfação considerados elevados e distantes do sexual. Novamente deparamo-nos com a questão da valoração social. E certamente, para Freud, as manifestações diretas das pulsões agressivas estavam longe de serem consideradas elevadas, do ponto de vista ético.

A transposição de libido de objeto em libido narcisista implicaria, no dizer do autor, “uma espécie de sublimação” na medida em que as metas sexuais seriam dessexualizadas. No entanto, não se pode confundir os termos. Como observa Hornstein (1990), há duas operações paralelas: a transformação da libido objetal em libido narcisista e a sublimação. “Estas duas operações mostram uma implicação recíproca, pois a libido narcisista é aquela que será sublimada, já que, ao perder sua relação com os objetos, fica à disposição do ego”.63 Veremos adiante que a dessexualização das metas pulsionais implicada na transformação da libido de objeto em libido narcisista não é sinônimo de sublimação. Não por acaso Freud se refere a “uma espécie de sublimação”. A sublimação propriamente dita inclui a dessexualização, mas não se resume a ela.

O ego e o id é repleto de passagens confusas. Dentre elas destaca-se uma que

nos interessa particularmente: aquela que define a energia de deslocamento como libido dessexualizada e, em seguida, como “libido sublimada”. Freud sugere que o caminho universal em direção à sublimação se dá pela mediação do ego, que primeiro transforma a libido de objeto em libido narcisista e em seguida coloca outra meta.64 A energia do ego seria susceptível de ser deslocada sobre atividades não sexuais e, como lembra

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Anzieu, La sublimation: les sentiers de la création, p. 42.

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Ouçamos: “Aqui se coloca uma questão que merece ser tratada a fundo: não é este o caminho universal em direção à sublimação? Não se realizará toda sublimação pela mediação do ego, que primeiro transforma a libido de objeto em libido narcisista, para depois, talvez, colocar outra meta?”. S. Freud, O ego e o id (1923), AE XIX, 1989, p. 38.

Anzieu (1992), “[...] estaria a serviço da intenção maior de Eros, que é de unir e ligar tanto as partes do ego quanto as partes do objeto”.65 Essa energia deslocável circularia tanto no ego quanto no id.

A formação do ego se dá a partir da sedimentação de investimentos de objetos abandonados favorecida pela identificação com os modelos parentais. Para operar, o ego utiliza a libido objetal do id. Ao desviá-la para si ele se coloca frente ao id como o único objeto de amor. A mudança da libido objetal em libido narcisista implicaria um abandono das metas sexuais e uma dessexualização. A libido dessexualizada do id disponibilizaria energia para as atividades culturais e por isso operaria a favor de Eros. Por outro lado, ela resultaria na defusão pulsional, na diminuição de força do componente erótico das pulsões de vida. Isto é, na perda da força que liga a destruição e na sua liberação como inclinação à agressão dentro do superego.66

A confusão dessa passagem se traduz por uma impressão de nivelamento dos conceitos. Porret (1994) anuncia essa impressão: “Ao ler a passagem ao pé da letra, parece que estamos diante de uma equação reducionista na qual todos os termos da cadeia reenviam uns aos outros, em uma espécie de equivalência mútua dos conceitos: identificação = libido narcísica = Eros dessexualizado = dessexualização = sublimação”.67 Ora, a identificação pressupõe uma espécie de sublimação das pulsões sexuais na medida em que dessexualiza a libido objetal. A libido narcisista é, segundo Freud, Eros dessexualizado pelo fato de ser mais plástica e mais susceptível de ser deslocada do que as pulsões de destruição. Eros dessexualizado faz alusão igualmente à inibição da meta sexual. Sua importância para a sobrevivência da cultura está longe de ser negligenciada por Freud; favorece as relações ternas de meta sexual inibida e a manutenção do laço social.

Os termos dessexualização e sublimação aparecem ligados pela conjunção “e”, assim como na passagem de outro texto, O sepultamento do complexo de Édipo (1924), em que as tendências libidinais que pertencem ao Édipo, diz Freud, são em parte dessexualizadas “e” sublimadas. Em ambos os trabalhos há a aceitação da diferença entre dessexualização e sublimação: a dessexualização parece compor uma etapa do

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Anzieu, La sublimation: les sentiers de la création, p. 16.

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“[...] defusão esta que dá origem a outros resultados diferentes da sublimação e que são de ordem patológica”. R. Fabrini, Sublimação: o subliminar e o sublime. São Paulo: Educ, 1999, p. 75.

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Porret, La consignation du sublimable: les deux théories freudiennes du processus de sublimation et notions limitrophes, p. 63.

processo maior de sublimação. O mesmo parece ocorrer na relação estabelecida em O

ego e o id entre inibição e sublimação. Os termos aparecem ligados pela conjunção “e”

– pulsões inibidas “e” sublimadas – o que indica o reconhecimento de uma diferença entre os termos. A inibição parece preceder toda modificação da meta e do objeto. No entanto, as pulsões inibidas quanto à meta ainda não são pulsões sublimadas pois não são pulsões que abandonaram suas metas. Elas conservam o mesmo objeto que visavam antes as pulsões não inibidas. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica

entre os sexos (1925) introduz a conjunção “ou” entre inibição e sublimação,

eliminando toda diferença entre os termos.

Nos interessa sublinhar que no processo de sublimação parece haver a soma das operações de inibição da meta, abandono, desvio em direção a uma meta não sexual, mudança de objeto, tudo isso favorecendo a dessexualização da meta sexual.68 A presença dos três termos − inibição, desvio e abandono − indica que a meta sexual é susceptível de suportar diferentes espécies de transformações no aparelho psíquico, e isso não somente no curso dos processos psíquicos distintos, mais provavelmente no curso de um mesmo processo psíquico. Porret (1994) sugere que para chegar à sublimação, às sublimações, ou seja, ao resultado do processo de sublimação, que são as atividades sublimatórias, algo deve provavelmente vir a ser acrescentado: “uma

ressexualização atenuada da nova meta e do novo objeto não diretamente sexuais, ou

uma nova quota de libido erótica no ego, com visada diretamente objetal [...]”.69

Discordamos de Porret, para quem a nova meta ou a nova quota de libido erótica no ego seria ressexualizada. O acento atribuído por Freud ao falar da sublimação repousa sempre sobre a retirada da libido e não sobre o acréscimo do elemento sexual, ainda que atenuado. Em sua maioria, os termos empregados para explicar a passagem da meta sexual para uma meta não sexual fazem alusão a uma diminuição do componente sexual. São eles: dessexualização, supressão e atenuação; todos eles designam processos de retirada de energia sexual, o que não significa afirmar que a satisfação obtida via atividade sublimatória não seja originalmente sexual. Freud nunca negou a importância de uma quantidade de energia disponível para a operação sublimatória, embora o grau

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A terminologia empregada por Freud desde 1920 para designar a passagem de uma meta sexual a uma meta não sexual é diversificada, mas “[...] a insistência de Freud parece se focalizar principalmente sobre a inibição (Hemmung), o desvio (Ablenkung) e o abandono (Aufgeben) da meta”. Porret, La consignation

du sublimable: les deux théories freudiennes du processus de sublimation et notions limitrophes, p. 60. 69

Porret, La consignation du sublimable: les deux théories freudiennes du processus de sublimation et notions limitrophes, p. 66.

de satisfação propiciado por ela seja incomparavelmente menor à satisfação obtida da consumação das moções diretamente sexuais.

Ainda em O ego e o id, ao afirmar que Eros compreende a pulsão sexual não inibida e as moções pulsionais sublimadas e de meta inibida, Freud esclarece um certo malentendido de Pulsões e destinos da pulsão e reforçado por Psicologia das massas e

análise do ego. Sublinhemos duas proposições diferentes que se tornam claras no texto

que introduz a segunda tópica. A sublimação passa a ser pensada também como uma categoria da libido, a “libido sublimada”, produto de um processo de dessexualização efetuado pelo ego a partir da libido narcisista. Segunda proposição: a inibição da meta sexual participa da sublimação na medida em que a dessexualiza e a torna deslocável. Do mesmo modo, ela participa de outros processos, como a identificação e o pensamento.70 Isso não significa afirmar que as amizades, os vínculos fraternos de um modo geral, as identificações e o trabalho do pensamento sejam sublimações. São, no dizer de Freud, “espécies de sublimação”. Sublimação no sentido estrito do termo parece ser, a um só tempo, um processo que trabalha com a energia deslocável no ego e no id oriunda do estoque narcísico de libido – a “libido sublimada” −, a operação de dessexualização de metas pulsionais sexuais, uma faculdade que atua a serviço de Eros e que resulta em atividades humanas consideradas superiores, desenvolvida em uns mais do que em outros.