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Parte 1: Para uma arqueologia da sublimação

1.1.5 A sublimação no âmbito da cultura: sua última roupagem

A trajetória realizada até aqui, que recuperou os momentos decisivos na genealogia do conceito de sublimação, baseou-se na discussão de textos considerados capitais no seu processo de teorização. Partindo da discussão do Caso Dora e dos “Três ensaios...”, passando por textos fundamentais na edificação do pensamento de Freud, como Introdução ao narcisismo (1914), Pulsões e destinos da pulsão (1915), “Psicologia das massas...” e O ego e o id, explicitamos alguns efeitos para o conceito. A opção de percorrer sobretudo os trabalhos teóricos deve-se ao fato de que são neles que Freud anuncia os acréscimos realizados na conceituação da sublimação; lembrando

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O processo de pensamento que implicaria uma sublimação de força pulsional erótica é incluído por Freud, no sentido mais amplo, entre os deslocamentos. Reside, na opinião de Hornstein (1990), no paradigma do funcionamento do processo secundário: com energia ligada, associa a elevada carga que pressupõe a atenção com o deslocamento de pequenos investimentos que o possibilitam.

sempre que, se comparado a outros conceitos metapsicológicos, este é certamente um dos menos elaborados.

Uma das particularidades de O mal-estar na civilização (1930) é inserir a discussão da sublimação no âmbito da cultura, esclarecendo alguns pontos até o momento obscuros. A sublimação aparece como uma técnica de defesa contra o sofrimento pelo fato de promover deslocamentos libidinais e de produzir tipos de satisfação aceitos pelo mundo exterior. Partindo da hipótese econômica que atribui à sublimação a obtenção de um tipo de prazer, Freud retoma a discussão de A moral

sexual civilizada e o nervosismo moderno e do trabalho sobre o Leonardo e precisa a

maneira pela qual a elevação da obtenção de prazer aparece na cultura. A sublimação potencializaria o prazer favorecido por dois tipos de realizações consideradas supremas pelo autor: o trabalho artístico e o trabalho intelectual.

Freud traz a discussão para o plano cultural:

Satisfações como a alegria do artista no ato de criar, de personificar – ou corporificar − os produtos de sua fantasia, ou como a que procura o investigador a solução de problemas e o conhecimento da verdade, possuem uma qualidade particular que, por certo, algum dia poderemos caracterizar metapsicologicamente. Por ora, só podemos dizer, de modo figurado, que nos parecem “mais finas e superiores.71

Examinaremos a fundo essa idéia na discussão, da segunda parte do capítulo, da ciência e das experiências estéticas. Limitarnos-emos neste momento a assinalar que pela primeira vez a sublimação aparece associada à alegria, à produção de um estado afetivo prazeroso.

De qualquer modo, reaparece o movimento oscilatório em relação ao alcance da sublimação, entre uma capacidade universal e para uma minoria. Na maior parte dos trabalhos discutidos até o momento, a faculdade de sublimar, embora tenha sido reconhecida como universal, válida para todos, é sempre situada como uma aptidão mais presente em uns do que em outros. A passagem de O mal-estar na civilização que afirma não ser a sublimação de aplicação universal mas uma atividade acessível para poucos seres humanos deve ser interpretada pois, se for tomada ao pé da letra, pode dar margem a equívocos. Freud parece querer dizer que poucos possuem a aptidão “completa” para a sublimação, a “autêntica” sublimação, em suas palavras, a obtenção de um estado intenso de felicidade propiciado pelas atividades artísticas e intelectuais. O que não significa que essa operação se restrinja ao círculo dos artistas e dos

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intelectuais nem, tampouco, que ela não possa produzir uma elevação na obtenção de prazer em atividades variadas, em menor grau, dependendo da disposição pulsional de cada um.

As mulheres teriam menor capacidade de sublimar segundo Freud, o que apareceria na menor aptidão à criação de tarefas complexas e difíceis. Essa idéia é repetida da seguinte forma na 32a das Novas conferências de introdução à psicanálise (1933) intitulada “Angústia e vida pulsional”: “O homem com 30 anos é flexível e a mulher rígida. Sua libido adota posições definitivas e parece incapaz de abandoná-las por outras”.72 Certamente não se trata, agora, de trazer a discussão sobre a natureza da feminilidade para Freud, mas apenas sublinhar que a argumentação parece basear-se no pressuposto de que a mulher é dotada de menor plasticidade pulsional que o homem, somada ao fato de seus interesses se centrarem na família e na vida sexual; restando pouca energia pulsional para ser colocada “à disposição do desenvolvimento cultural”.73

Na 32a das Novas conferências de introdução à psicanálise (1933) é retomada a definição de pulsão e a idéia apresentada nos Dois artigos de enciclopédia:

“Psicanálise” e “Teoria da libido” (1923) em relação à mudança de via do objeto

pulsional: “Distinguimos com o nome de sublimação certa classe de modificação da meta e mudança de via do objeto na qual intervém nossa valoração social”.74 O fato de a sublimação aparecer pela segunda vez associada à mudança de objeto e não apenas ao desvio da meta pulsional reafirma a opção de Freud de ampliar a teoria da sublimação, agregando à sua definição os elementos do campo das atividades ditas sublimadas, que inclui os tipos de objetos por meio dos quais esta operação é consumada.

Um texto no qual se traduz o esforço de situar a sublimação como uma produção extrapsíquica é Moisés e a religião monoteísta (1939), que destaca a exigência de sublimações entre as propriedades da religião monoteísta.

Em um capítulo posterior iremos expor como as particulares propriedades da religião monoteísta tomadas de empréstimo aos egípcios exerceram seu efeito sobre o povo judeu e deram cunho

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S. Freud, 32a das Novas conferências de introdução à psicanálise - “Angústia e vida pulsional” (1933), AE XXII, 1989, p. 121.

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Lemos na 32a conferência: “O trabalho de cultura se converte cada vez mais em um assunto de homem, quem cria tarefas de crescente dificuldade que exigem sublimações pulsionais a cuja altura as mulheres não chegaram”. Mais adiante, em relação às mulheres, ele se refere ao caráter anti-social, “[...] traço inequívoco de todos os vínculos sexuais. Os amantes se bastam um ao outro e ainda a família é resistência a sua inclusão em associações mais amplas”. E finalmente lemos: “[...] é como se o difícil desenvolvimento em direção à feminilidade tivesse esgotado as possibilidades da pessoa”. 32a das Novas

conferências de introdução à psicanálise - “Angústia e vida pulsional”, AE XXII, p. 125. 74

duradouro ao seu caráter pela desautorização da magia e da mística, a incitação a progressos na espiritualidade, a exigência de sublimações; como o povo, invadido pela possessão da verdade, subjugado pela consciência de ser eleito alcançou a alta estima pelo intelectual e a insistência no ético, e como os tristes destinos, as desilusões reais desse povo, puderam reforçar todas essas tendências.75

Mesmo que a exigência de sublimações apareça, nesta passagem, ao lado da possessão da verdade, da alta estima pelo intelectual e da insistência no ético, ela parece estar de algum modo relacionada a esses elementos. O espírito investigativo ao qual Freud associa a capacidade de sublimar é sempre associado à busca pela verdade e pelas ações éticas. Na próxima parte do capítulo, propomo-nos a examinar mais detalhadamente a relação entre sublimação e aptidão à investigação, como parte de um esforço maior de identificar as contribuições das elaborações freudianas no campo da estética para uma compreensão mais abrangente do conceito de sublimação.

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Parte 2: Contribuições da análise estética freudiana para a elaboração do