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Capítulo II: A Pulsão de morte na cultura

Parte 1. Os germes da agressividade na primeira teoria pulsional e na esfera cultural

2.1.3 Sobre a gênese da pulsão de morte na esfera cultural

Em 1900, com A interpretação dos sonhos, vem a público a idéia de que os primeiros sentimentos despertados nas crianças com relação aos pais são sentimentos de amor e ódio. As noções de complexo de Édipo e de ambivalência emocional já atribuíam um lugar determinante na estruturação do psiquismo humano às moções de sentimentos hostis. No caso Dora (1905), por exemplo, Freud fracassa por não ter analisado a transferência negativa da paciente, obstáculo à continuidade do tratamento.

Nos Três ensaios de teoria sexual (1905) é esboçada uma teoria da perversão que, mais

tarde, é retomada em Pulsões e destinos da pulsão (1915) na conceituação do sadismo e do masoquismo. Até a publicação de Totem e tabu, os desejos inconscientes homicidas, os fenômenos destrutivos de maneira geral, haviam sido tomados em consideração na análise psicanalítica do indivíduo normal, bem como no campo específico da psicopatologia freudiana. No entanto, a escolha do parricídio como ato fundante da civilização parece ter ampliado a relevância da destrutividade humana na investigação de Freud. Ao pressupor que o estado de cultura surge de um assassinato e que este crime produz as leis organizadoras da sociedade − a lei de proibição do incesto e a lei do “não matarás” −, os fundamentos da religião monoteísta e as instituições sociais, o autor assume a violência e a destruição como aspectos constitutivos da história humana. A hipótese de um ato fundante lhe permite derivar a destrutividade de um acontecimento real, e não mais de uma tendência psíquica ambivalente que assume a forma de uma fantasia de morte contra os progenitores. Assim, Freud justifica a natureza das tendências de ódio operante no funcionamento psíquico normal, e prepara o terreno para examinar a destrutividade em ação em outras formações sociais, tais

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Esta concepção traz consequências prenhes para a teoria psicanalítica. Entre elas, as bases da conceituação do superego, como tentaremos demonstrar no próximo capítulo.

como os grupos e as guerras. Graças a Totem e tabu, as moções hostis, antes situadas no plano da formação dos sintomas, dos conflitos edipianos e dos chistes, tornam-se a causa maior do fato que teria dado início à cultura. O texto antropológico sublinha o caráter temeroso, para os irmãos e fiés, da substituição do pai por totem ou deus. O substituto do pai é menos um meio de expiar a culpa e mais um veículo de coerção, de punição e produção de culpa.

Sobre o pai e o filho da horda darwiniana, Freud decifra o ciúme do pai e o nascimento da instituição na violência; sobre a refeição totêmica, segundo Robertson Smith, ele decifra a ambivalência do amor e do ódio, da destruição e da participação, que anima a simbólica da refeição, descendo até sua mais brutal expressão canibalística; sobre o luto inaugural da festa, decifra a perda do objeto, porta estreita de toda metamorfose do amor; sobre o remorso e a

obediência retrospectiva, decifra a passagem à instituição, no duplo sofrimento do crime e da renúncia; em suma, por esse novo mito trágico, ele interpreta toda história como herdeira do crime.250

Ao mesmo tempo, o crime fornece elementos para uma espécie de “má” previsão para o destino da civilização, como veremos nas teses do texto sobre o mal- estar do homem moderno. A constatação de que a civilização deriva de um crime parece ter contribuído para a reacomodação da teoria pulsional até então vigente, e favorecido a introdução de um conceito que concedesse aos fenômenos destrutivos um lugar à altura de sua importância e representatividade na esfera cultural: a pulsão de morte.

A respeito do impacto das teses de Totem e tabu, Enriquez (1996) opina:

Na verdade essa obra marca não apenas uma descentralização do olhar do analista (até então centrado no indivíduo), em direção ao “socius”, mas principalmente o aparecimento de uma teoria radicalmente pessimista, fazendo a humanidade nascer de um crime cometido em

conjunto, crime do qual a humanidade não pode jamais se liberar. Assim, o primeiro crime não é

senão o prelúdio de uma série ininterrupta de assassinatos, que parece ser o corolário normal da existência humana em sociedade. Não existe mais a esperança de um destino feliz para a comunidade humana associado a um desenvolvimento harmonioso da sexualidade. Ao assinar

Totem e tabu (bem antes de formular explicitamente a hipótese de uma pulsão de morte), Freud

enterra definitivamente a idéia (que será mantida por Reich contra todos e contra tudo) da liberação possível do indivíduo pelo ato de assumir sua sexualidade genital, assim como a teoria da maturação do indivíduo por meio de sua aceitação, realização e sublimação das pulsões sexuais, idéias que obcecam, em maior ou menor grau, a prática psicanalítica, mesmo que o discurso que o acompanha enuncie explicitamente o contrário.251

250

Ricoeur, Da interpretação: ensaio sobre Freud, p. 172.

251

E. Enriquez, Da horda ao Estado - Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.

Enriquez reconhece que o crime gerou consequências tais que a sociedade não pode ser compreendida sem, no entanto, considerar que a natureza humana é portadora de um impulso destrutivo e irrefreável. A questão da incoercibilidade das pulsões é também sublinhada por Wladimir Grannof (apud Mezan), para quem o ponto central de

Totem e tabu reside na incoercibilidade do desejo de matar o pai.

A tese de que as pulsões sexuais são irrefreáveis, irreprimíveis e que trazem más consequências ao bem-estar subjetivo do homem está presente nas primeiras formulações freudianas sobre a cultura, em Moral civilizada e o nervosismo moderno (1908). Esse artigo discute a visão de que a felicidade humana é possível desde que se reprima menos a sexualidade; visão que parece ser modificada se nos detivermos na concepção presente em Totem e tabu: aqui predomina uma visão fundamentalmente pessimista com relação ao destino da civilização. A constatação de que a história da humanidade tem início com um crime e a idéia de que as tendências destrutivas são irrefreáveis − quer causando danos terríveis quando postas em ação, quer causando o mal-estar subjetivo quando devidamente reprimidas − inauguram mais fortemente a visão de que uma sociedade feliz é pura utopia.

Seis meses após a eclosão da primeira guerra mundial, Freud publica Reflexões

para os tempos de guerra e morte (1915), em que retoma a tese sobre a renúncia do

pulsional anunciada em a Moral sexual civilizada e o nervosismo moderno (1908). Aprofunda um ponto levantado por este último artigo e que nos interessa particularmente: as condições extremadas de irrupção da destrutividade humana e os estragos que ela é capaz de fazer. Se em Totem e tabu (1913) ele identifica o parricídio como o crime fundante da cultura, e reconhece a força da destrutividade na determinação dos primeiros códigos sociais, neste texto dedicado à guerra e à morte volta a realçar a natureza destrutiva do homem e seus efeitos sobre o plano da cultura. O sentimento de desilusão provocado pela guerra se pautaria em um grande equívoco, baseado na ilusão de que os homens são, por natureza, bondosos. Não, diz Freud, os homens não são naturalmente bons ou maus: sua essência é composta de moções pulsionais cujas metas satisfazem necessidades primitivas. É a sociedade que determina as pulsões como boas ou más. Na nossa, as pulsões más são as pulsões egoístas e cruéis.

Quanto mais extremadas forem as normas éticas, mais vasta será a renúncia da satisfação pulsional, escreve Freud em Reflexões para os tempos de guerra e morte. Os homens abandonam a pressão da cultura, deixando de sufocar suas pulsões destrutivas, quando têm uma chance. Uma das condições que predispõem a eclosão da violência é a

renúncia do Estado ao seguimento das restrições éticas. Ao perceberem que o Estado renuncia a tais restrições, os homens “[...] deixam de sufocar tanto suas pulsões, abandonando a pressão contínua da cultura e se permitindo satisfazer suas pulsões refreadas”.252 A guerra seria expressão da violência, da consumação da destrutividade: é sangrenta, devastadora e cruel. Capaz de interromper o desenvolvimento de relações éticas entre os indivíduos, de transgredir restrições do tempo de paz e do direito internacional, de ignorar os direitos da propriedade privada e da população combatente, a guerra extermina os laços comunitários entre os povos. Vai no sentido oposto ao da evolução da civilização e revela o homem primitivo que existiria nos homens. Enriquez (1996) sublinha o traço inconsciente que estaria por trás dos fenômenos destrutivos:

Nosso inconsciente deseja a morte do outro. A guerra seria o momento no qual o inconsciente não se exprime mais lateralmente, através de sintomas ou de atos falhos, mas pode se exprimir diretamente sob a cena do visível. [...] Freud nos sensibiliza para a conseqüência inevitável do

aparecimento, fora de lugar, do inconsciente: a destruição generalizada.253

“Reflexões...” investiga a natureza da guerra e os estragos que ela produz. Reafirma um traço fundamental da essência do homem: sua inclinação para a maldade e para a destruição.254 Enquanto Moral sexual civilizada e o nervosismo moderno discute os efeitos das normas morais sobre a pulsão sexual, o artigo sobre a guerra descreve o impacto das normas sobre a pulsão destrutiva. Esta parece adquirir, no contexto cultural, uma nova coloração, novos aspectos que, sem a cultura como pano de fundo, não apareceriam. A abordagem freudiana da guerra e de sua capacidade de destruição de parte do patrimônio físico-cultural e dos vínculos interpessoais resulta na identificação de prismas a partir dos quais a pulsão de agressão se expressa livremente, ultrapassando a barreira e a pressão exercidas pela cultura. O acento da análise recai sobre a facilidade com a qual a brutalidade humana elimina e se sobrepõe aos códigos de convivência pacífica e às proibições sociais que regulamentam a vida em comunidade. A guerra seria uma forma de expressão pura da violência, considerada por Freud infinitamente mais forte do que a capacidade da cultura de bloqueá-la ou neutralizá-la.

252

S. Freud, Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), AE. XIV, 1989, p. 278. Outra chance ou condição favorável à eclosão da destrutividade é a formação de grupos, tema discutido exaustivamente em Psicologia das massas e análise do ego.

253

Enriquez, Da horda ao Estado - Psicanálise do vínculo social, p. 148.

254

No segundo e último capítulo intitulado “Nossa atitude frente à morte”, Freud comenta que nosso inconsciente tem poderosos desejos de morte e “[...] cada agravo ao nosso ego todo poderoso e autocrático é, no fundo, um crime de lesa-majestade”. Reflexões para os tempos de guerra e morte, AE

Reflexões para os tempos de guerra e morte examina a cultura “moderna” e a

capacidade da guerra de reeditar os mesmos impulsos assassinos que conduziram os irmãos ao parricídio. O texto dá continuidade à investigação freudiana sobre a cultura: não analisa suas condições de surgimento, mas evidencia os efeitos do ato inaugural, reafirmando a essência cruel e brutal do homem e as condições de sua livre expressão. Com este texto, Freud recoloca a questão da destrutividade humana em pauta, mas desta vez pela análise dos conflitos emergentes. Ao assumir que a força do homem para frear os atos de violência é inferior à sua própria capacidade de destruição, ele põe em evidência a premissa “pessimista” anunciada em O mal-estar na civilização, e antecipa, por assim dizer, uma tese fundamental de Além do princípio do prazer (1920). Enriquez aborda essa questão de forma clara: “[...] a humanidade, constituída no crime e através do crime, dirige-se inexoravelmente para a destruição? Assim como o organismo humano, ela morre por razões internas? A meta da vida é a morte?”.255 Freud parece, assim, vislumbrar uma idéia que, mais tarde, é explicitada em termos biológicos.

Ao lado de Totem e tabu, Reflexões para os tempos de guerra e morte participa do processo de elaboração que culmina na introdução da pulsão de morte. O reconhecimento da destrutividade humana no registro das relações sociais, da vida compartilhada e, a um só tempo, da crueldade como traço constituinte da natureza humana conduz a um deslocamento para o plano da cultura do debate da agressividade, antes restrito ao plano dos sintomas e das perversões. Freud amplia a investigação da destrutividade, centrada sobre os fenômenos patológicos e individuais, e fortalece a relevância da discussão sobre o “mortífero” no homem.

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Parte 2. A pulsão de morte em cena: a ampliação dos seus sentidos