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Capítulo II: A Pulsão de morte na cultura

Parte 2. A pulsão de morte em cena: a ampliação dos seus sentidos operada pela

2.2.3 Vestígios da pulsão de morte na formação grupal

Psicologia das massas e análise do ego (1921) analisa as formações grupais com

base na segunda teoria das pulsões e, nesse sentido, inaugura a análise freudiana de alguns fenômenos culturais apoiada na recém-introduzida teoria pulsional. O que nos interessa na reflexão deste texto é a explicação freudiana do comportamento violento do

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Monzani, Freud, o movimento de um pensamento, p. 244.

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Esta opinião encontra-se em J. Laplanche, O inconsciente e o id - Problemáticas IV. São Paulo:

indivíduo dentro do grupo e a descrição das condições que um grupo ou uma massa oferecem para a exteriorização dos atos destrutivos. A ação da pulsão de morte no contexto grupal parece favorecer a ampliação de seu sentido.

Retomando as premissas da segunda teoria das pulsões, Freud justifica a tendência dos indivíduos a se unirem em grupos: a massa se manteria unida em virtude do poder de Eros, que determinaria a união de tudo. A alusão ao texto metapsicológico é clara. A tendência das pulsões de vida à união e à aptidão para neutralizar, em parte, as manifestações das pulsões de morte propiciaria as condições de possibilidade para a formação dos grupos. Parte das pulsões de morte seria neutralizada por Eros e a outra parcela voltar-se-ia para o exterior na forma de agressividade. Ao ingressar no contexto grupal, o indivíduo renunciaria às repressões de suas moções pulsionais inconscientes e exteriorizaria nada menos que o próprio inconsciente. Mais precisamente, toda a maldade da alma humana seria exteriorizada, desaparecendo o sentimento de responsabilidade e a função coercitiva da consciência moral.283 A essência de um grupo se basearia nos laços libidinais que nele existem e que limitam o narcisismo. O que nos interessa é compreender a justificativa para o fato de o sujeito, quando inserido no grupo, suspender suas inibições e repressões, dando livre curso aos seus impulsos destrutivos. Parece ser a intensidade das moções afetivamente investidas nos vínculos que permite a renúncia das censuras psíquicas e a liberação da agressividade. O amor equânime do líder em relação a cada membro faz que os impulsos cruéis e hostis não recaiam sobre os componentes do grupo, mas sobre aqueles que estão fora dele. A relação terna de cada membro com o líder é condição para a pulsão de morte não ser exteriorizada sobre o grupo.

Centrando-se nos processos que ocorrem no interior do ego, Freud acrescenta dois elementos que lhe permitem compreender o estranho fenômeno da mudança de comportamento dos sujeitos quando inseridos no grupo: o aumento dos comportamentos violentos contra outros grupos e a restrição de traços da personalidade de cada membro. Os integrantes do grupo se identificariam entre si pelo fato de elegerem um e mesmo objeto − o líder −, substituindo-o por seus ideais de ego. A identificação entre os membros e o afeto investido no líder, − que na categoria de objeto substitui os ideais de ego dos sujeitos −, forneceriam, em última análise, as condições para as mudanças de

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Le Bon e Mc Dougall, embora reconheçam como característica da coesão grupal a livre satisfação pulsional de todos os instintos cruéis e destrutivos, na opinião de Freud, os autores não acrescentam nenhum elemento novo à compreensão da estrutura libidinal dos grupos.

atitude do sujeito no grupo e, conseqüentemente, para a expressão irrestrita da agressividade. Se a identificação e a operação de substituição de um objeto por um ideal mantém um grupo coeso, o fracasso das relações libidinais resulta na sua desintegração. Esta última − que se manifesta na desobediência ao chefe e na desconsideração pelos colegas − é atribuída ao afrouxamento da estrutura libidinal grupal.284

Quando o vínculo de amor com o líder é afetado e os indivíduos passam a não mais se sentirem amados por ele, impulsos hostis irrompem contra os próprios membros do grupo. Se o amor do líder impedia o ódio pelo próximo de se exteriorizar, também criava condições para esse ódio se voltar para o exterior. A economia libidinal intrínseca a cada religião obedeceria à mesma lógica: “No fundo, cada religião é uma religião de amor por todos aqueles a quem abrange, e exerce a crueldade e a intolerância frente aqueles que não são seus membros”.285 A intolerância só não se apresenta de forma tão violenta e cruel como se apresentava nos séculos passados devido à suavização dos costumes humanos e ao enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles dependem.

O amor equânime do líder por todos os indivíduos do grupo e a satisfação obtida desse vínculo amoroso impede a hostilidade, inerente a cada membro, de se voltar para o interior do agrupamento. O afrouxamento dos laços produz a mudança de direção dos impulsos hostis. Nessa mudança, a violência é retirada do inimigo externo e depositada sobre os componentes do grupo, arruinando os laços fraternos mantidos pela identificação. Freud retoma exemplos retirados da história dos povos para ilustrar o que,

em O mal-estar na civilização, ele denomina de “narcisismo das pequenas diferenças”,

isto é, o fenômeno de desprezo e ódio contra estrangeiros:286

Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnia sobre o escocês, (...) não

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O pânico, conseqüência da decomposição do grupo, surgiria ou em decorrência do aumento de uma situação de perigo ou com o fim das ligações afetivas que ligam o grupo. O termo “pânico” é usado por Freud para explicar ocasiões nas quais o fato não justifica o aumento da angústia.

285Psicologia das massas e análise do ego, AE XVIII, p. 94. 286

Baseando-se no trecho aqui citado, Enriquez menciona que ao introduzir a questão do ódio e da intolerância contra estrangeiros Freud apresenta o elemento que faltava à compreensão dos vínculos afetivos que unem os membros de uma organização: “O amor não basta, é necessário que o ódio esteja presente, ódio componente da pulsão de morte em sua vertente de pulsão de destruição dirigida ao exterior. Uma organização para existir e durar precisa então construir inimigos”. Enriquez, Da horda ao

Estado - Psicanálise do vínculo social, p. 70. Em Política e psicanálise: o estrangeiro, Koltai (2000) nos

lembra da ligação entre destrutividade e narcisismo no ódio contra os estrangeiros: “Assim, baseada no narcisismo, constantemente alimentada por ele e remetendo mais profundamente ao desamparo infantil, a intolerância assimila estrangeiro a hostil”. C. Koltai, Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000, p. 95.

ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo alemão, o ariano pelo semita e as raças brancas pelos povos de cor.287

Principalmente com relação a estranhos os homens mostrariam seu lado hostil. Ele continua: “Os homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar”.288 Esse caráter elementar é o aspecto mortífero da pulsão descrito um ano antes em Além

do princípio do prazer.

O acento de Freud sobre a irrupção extremada da agressividade na formação grupal recai sobre um mecanismo de regressão da atividade psíquica a um estágio anterior, e, em menor grau, sobre as duas condições apresentadas anteriormente: identificação e substituição do ideal de ego pelo objeto. A desinibição dos afetos, a tendência a transgredir barreiras na exteriorização dos sentimentos e a total descarga na ação é explicada pela volta a uma etapa anterior da organização psíquica. Como com os selvagens e as crianças, a regressão seria também característica da massa, sublinha Freud, retomando as teses de Totem e tabu. O grupo é considerado a revivescência da horda primeva. O líder é comparado ao chefe da horda e o restante do grupo, aos irmãos. A investigação da hipnose o conduz à suposição de que na relação com o líder os membros do grupo têm suas heranças arcaicas reanimadas; ecos da hipótese filogenética. Todavia, diferentemente dos irmãos do clã totêmico que teriam se unido pelo ódio comum do chefe, os membros do grupo se unem pelo vínculo de amor, vínculo de meta sexual inibida. Na identificação dessa diferença, torna-se mais clara a continuidade entre Totem e tabu e “Psicologia das massas...”. É de Enriquez (1996) a afirmação de que o primeiro texto relata a união pelo crime e o segundo, a união pelo amor.289

Freud, embora tenha se referido apenas duas vezes a Além do princípio do

prazer, é possível identificar a atuação da pulsão de morte em alguns contextos. Como

elas operam essencialmente em silêncio, no dizer de Freud, e, portanto, só podem ser reconhecidas quando dirigidas para fora, sabemos que é a expressão da pulsão destrutiva que qualifica os efeitos mais acessíveis e manifestos das pulsões de morte. “Psicologia das massas...” tem a esfera da cultura como pano de fundo e apresenta derivados da pulsão de morte. Inicialmente, retoma as formulações de Totem e tabu e de

287Psicologia das massas e análise do ego, AE XVIII, p. 96. 288Psicologia das massas e análise do ego, AE XVIII, p. 97. 289

“Reflexões...” para situar a agressividade como um traço constitutivo do sujeito. Após se perguntar o que ocorre com a “violência inata” nos sujeitos dentro de um grupo, Freud nos diz coisas importantes. Em primeiro lugar, que um investimento amoroso − no caso, do líder com cada membro do grupo − impede que a pulsão agressiva se volte para o interior do agrupamento. Em segundo lugar, pelo fato de a identificação se basear num vínculo de meta sexual inibida, ela permite vínculos duradouros. Mais do que isso, bloqueia, em certa medida, a expressão da hostilidade contra os semelhantes. Até aqui compreendemos por que a destrutividade não é consumada dentro do grupo. Freud anuncia, em terceiro lugar, que a dinâmica grupal coloca em marcha as mesmas relações do clã fraterno e, nesse sentido, reencarna o ódio legado pelo parricídio e transmitido filogeneticamente. Ele justifica a origem e a força do ódio.

Ora, uma vez criadas as condições para a pulsão agressiva ser reprimida dentro do grupo, como ela se manifesta? Contra os grupos rivais, contra os estrangeiros e estranhos. Há, assim, um equilíbrio energético: o amor preserva a ligação grupal e a livre expressão do ódio sobre o exterior evita que ele dilua o grupo. A pulsão de morte parece obedecer a um sistema de compensação. Quando o sujeito do grupo dirige sua destrutividade para outro grupo, eleito como inimigo, do ponto de vista de sua economia psíquica ele só faz isso devido à magnitude do investimento afetivo na figura do líder, e, em menor grau, na figura dos colegas. O sujeito tem seu narcisismo restringido. A pulsão de morte só não é reintrojetada − o que dissolveria o grupo − porque o investimento no outro impede o refluxo do investimento libidinal, impede o incremento narcisista e a liberação de uma determinada magnitude de pulsão de morte sobre os colegas. As pulsões de morte são reprimidas se, e principalmente, o líder for maciçamente investido e se o sujeito se identificar com os colegas. Quando o laço afetivo sofre algum abalo, o equilíbrio se desfaz: o narcisismo é incrementado e a destrutividade se volta diretamente contra o grupo, corroborando para sua desagregação. Estamos falando das condições de advento da pulsão de morte. A descrição de tais condições parece favorecer melhor definição das pulsões de morte e de seus alvos. Após assumir que elas são parte integrante do homem e mostrar-se insatisfeito com o caráter especulativo de sua hipótese, Freud desloca a discussão no ano seguinte de Além

do princípio do prazer para o domínio da cultura e das experiências compartilhadas. A

pulsão de morte é situada em um fenômeno fundamental da vida em sociedade: os grupos. Dentro dele ela é inibida, mas exterioriza-se de forma generalizada. Dirige-se

contra a categoria do “diferente”, preservando o grupo dos “iguais ou semelhantes”. Vimos sua ação nas guerras, como assassinato, na agressão contra grupos rivais, como acusação, preconceito e intolerância. Freud, ainda que não se reporte a essas questões, ele as aborda indiretamente. Seja pela violência generalizada, seja por uma violência indireta, a pulsão de morte aparece amplamente na esfera da cultura. De acordo com os tipos de ligação libidinal em jogo e dos mecanismos psíquicos atuantes, ela assume aspectos diferentes, não se manifesta sempre da mesma forma, sob as mesmas condições. Nas entrelinhas, o texto nos diz que não importa o tipo de organização humana, a pulsão de morte sempre será exteriorizada de alguma forma.290 Nesse sentido, a cultura nos fornece uma série interminável de exemplos de atuação das pulsões de morte. No movimento de exemplificar a ação da pulsão de morte, parece-nos que Freud encontra no terreno dos fenômenos culturais um campo fértil para o enriquecimento dos sentidos desse conceito.