• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese

3.1 Ascese: exercícios espirituais para a afirmação da vida

3.1.3 A ascese kazantzakiana: amor fati, amor à vida

O que se propõe em Ascese os Salvadores de Deus assemelha-se à tarefa do homem de A gaia ciência, quando Nietzsche destaca certo potencial no ser humano, tendo em vista a sua superação:

Seria pensável um prazer e força da autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre par excellence (NIETZSCHE, 1974, p. 223).

Essa é exatamente uma das propostas do “exercício ascético” do livro de Kazantzákis: libertar-se da crença, do desejo de certeza e promover verdadeiros espíritos livres. Já na etapa que abre a Ascese (A Preparação) trata-se justamente de procurar se libertar do simples comprazimento da mente que pensa em colocar todas as coisas em ordem e espera dominar fenômenos, e, do mesmo modo, também se libertar do anseio do coração que procura e espera encontrar a essência das coisas. E isso significa se libertar de toda e qualquer crença e do desejo de adquirir certeza do que quer que seja. Então, essa etapa da ascese kazantzakiana se encerra com aqueles dizeres: “Agora sei: não espero nada, não temo nada, libertei-me da mente e do coração, subi mais alto, sou livre. É isso que eu quero. Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 58).

Essa ascensão delineada por uma via de negação poderia levar logicamente à conclusão de uma absoluta inutilidade da ação. Rondaria, dessa forma, as fronteiras de um niilismo radical. Entretanto, não é o que acontece, pois Ascese é na realidade um insistente chamado para a luta, ainda que seja uma luta sem esperança nem recompensa. Lembremos: “Seja como for, lutamos sem nenhuma certeza e nossa virtude, por não estar segura de recompensa, se reveste de maior nobreza” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 132). Em todo caso, Kazantzákis interioriza sim em sua obra um tipo de niilismo, mas um “niilismo heroico” (cf. PAES, 1997, p. 13; 1985, p. 160), e que não tem nada a ver com a recusa da vida ou renúncia do mundo; leva, antes, à sua total aceitação, leva ao amor fati. Uma aceitação, portanto, heroica, dionisíaca, de participar da vida em sua plenitude, nas suas alegrias e nas suas dores.

O que se pode reconhecer nas entrelinhas de Ascese é que a vida possui um valor supremo, único, acima mesmo das ideias religiosas ou científicas que a qualificam de outra maneira. A vida como tal pode inclusive não possuir um sentido, uma razão de ser, mas nem assim perde sua grandeza e seu valor. A defesa de Kazantzákis em favor da vida terrena é absoluta. Quer dizer, da mesma maneira que Nietzsche, num certo sentido, ele também a defende para que não caia no niilismo do cristianismo-platonismo que nega o valor desta vida, ele a defende, pois, da tentação da religião que tradicionalmente coloca “o centro da gravidade da vida [...] não na vida, mas no ‘Além’ – no nada –, tira-se em geral à vida o centro de gravidade” (NIETZSCHE, 2009, pp. 64- 65). E aqui também deve ser lembrado que a ciência possui o seu “além”: o seu a priori, a “verdade” posta na natureza. O que se deve notar é que o ser humano tem dificuldades para viver tanto sem o além da religião quanto sem a metafísica da ciência e da filosofia, porque tudo gira em torno da “verdade absoluta”. Ao ser questionado todo o quadro valorativo em torno do qual gira a civilização, o ser humano entra em uma grande crise e se sente perdido no tempo e no espaço e uma falta de sentido toma conta dele.

Kazantzákis apela com suas palavras (seu exercício ascético) a não retroceder por falta ou ausência de sentido, ou a pôr em dúvida o amor à vida. De fato, na ascese kazantzakiana a concepção de amor fati parece se estabelecer como uma postura de vida que lhe cabe perfeitamente. Assim, por exemplo, podemos ler:

Aonde vamos? Não me perguntes! Sobe e desce. Não existe começo, não existe fim. O que existe é o momento presente, cheio de amargor e de doçura, e eu o desfruto por inteiro.

A vida é boa, a morte é boa, e a Terra é redonda e firme como um seio de mulher em minhas mãos experientes.

Eu me dou a tudo. Amo, sofro e luto (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 57).

Na ascese de Kazantzákis o mundo trágico não perde sua beleza, a tragédia da vida humana não é rejeitada e o absurdo do incompreensível não provoca a diminuição no desejo de viver. Por isso, recomenda-se o seguinte: “Morre a cada dia. Nasce a cada dia. Renega a cada dia o que possuis. A virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela liberdade./ Não te dignes a perguntar: ‘venceremos ou seremos vencidos?’. Luta!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 134). Trata-se de uma ascese que não tem em vista um sentido já definido para a vida, mas que incentiva cada um a criar o seu próprio caminho, e nesse caminho a ser criado tudo deverá adquirir “inesperada santidade – a beleza, o conhecimento, a esperança, a luta econômica, os cuidados diários, tidos por insignificantes” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 132). Todos esses dados deverão adquirir valor por si mesmos, e não porque existe um sentido para além deles.

Os exercícios espirituais de Kazantzákis procuram restituir ao ser humano o potencial criativo e de transformação, introjetando aquele niilismo heroico ou ativo (o amor fati) que lhe dará a coragem para “mesmo diante de abismos” continuar a dançar. Assim, o niilismo heroico como um rompimento com os valores estabelecidos, para reavaliação destes e a futura fundação de uma nova postura diante do mundo, se coaduna com a visão que procura explorar em si as potencialidades divinas de criação, a luta ininterrupta por manter-se heroicamente dançando quando tudo parece exigir a inação.

A atribuição do niilismo heroico a Kazantzákis, ou seja, essa postura carregada de amor fati como exigência para se cumprir a ascese da afirmação da vida, pode ser identificada ainda por aquilo que o próprio escritor chamou de olhar cretense49. Ora, o “olhar cretense” não é senão uma declaração vitalista e corajosa, isenta de dogmas de fé, uma maneira imanente e afirmativa de pôr a vida em movimento, de transubstanciar em algo positivo tudo o que desafia o ser humano. Significa olhar fixamente o abismo sem temer, lançar-se sobre e como um relâmpago, suportar toda a violência do caos ou da realidade sem se cegar, tal é, pois, a disposição de espírito do “olhar cretense”, e que também poderia ser qualificada de “luciferiana-nietzschiana” (PIZARRO, 2007, p. 154). Enfim, sendo a síntese de uma filosofia nômade, metamórfica, consciente da existência

49 Este conceito já foi rapidamente apresentado no primeiro capítulo desta dissertação; conferir as páginas

de muitos pontos de partida e de chegada, o olhar cretense se fundamenta pela ideia de uma conquista desafiante, por uma força de ânimo necessária para enfrentar os perigos e capaz de estar à altura de qualquer situação.

Portanto, aquele que vivenciar em seu íntimo algo como o “olhar cretense” e praticar com heroísmo a ascese da afirmação da vida seguirá dançando, “mesmo diante de abismos”, conforme a proposta de Nietzsche. Interessante notar que em Ascese a imagem da dança aparecerá no final, sob a forma de uma dança de fogo, que é, segundo Kazantzákis, “a primeira e a última máscara do meu Deus. Dançamos e choramos entre duas grandes fogueiras” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 146). O fogo deve ser aqui entendido como aquilo que ao mesmo tempo consome e é consumido. É o próprio ritmo da vida.

Por sua vez, a palavra “abismo” surge frequentemente no texto de Kazantzákis como figuração multívoca do incriado, do caos, do nada, da eternidade e do próprio Deus. Mas, sobretudo, “abismo” conota a noção de perigo. E isso é fundamental naquilo que pode ser visto como um agir heroico e afirmativo em Ascese, justamente por ser no enfrentamento do perigo que a heroicidade se assegura como tal. Esse agir será impulsionado por aquilo que Kazantzákis denomina de “grito”,50 que também é uma expressão recorrente em Ascese, e que sempre nasce nas entranhas do ser humano exatamente como um ímpeto a lhe ordenar. Semelhante ao estandarte do “viver perigosamente” proclamado e erguido pelo Zaratustra de Nietzsche, que tem em vista o Übermensch – o além-do-homem –, lemos numa das passagens de Ascese o seguinte: “Podes e deves, em teu próprio setor, tornar-te herói./ Ama o perigo. Que há de mais difícil? Pois é o que quero! Que estrada tomarás? A subida mais íngreme e pedrosa. Essa é a que tomo; acompanha-me!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 67).

Em suma, é com uma disposição heroica desse tipo que a ascese kazantzakiana da afirmação da vida vai se constituindo. Com coragem tanto nas dores como nas alegrias, subindo sem esmorecer de pico em pico, ultrapassando cada uma das etapas e com total consciência de que a altura não possui fim. Dever-se-á, então, chegar ao final, que na verdade não é um final, mas sempre um recomeço, reconhecendo o valor daqueles que conseguiram se unir a “Deus” para se fazer Um com ele, e santificando ainda mais os “que carregam nos ombros, sem vergar ao seu peso, o grande, o extraordinário, o terrível segredo: sequer este Um existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p.

150). Trata-se, afinal, de se manter firme diante do abismo. Ascese não como fuga deste mundo, mas como encontro do ser humano consigo mesmo em sua integralidade. Exercício ascético como sentido até diante do sem sentido, isto é, um mundo sem sentido não mais como empecilho para viver intensamente esta vida. Pelo contrário, uma ascese exercida como estímulo para a afirmação desta vida.