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Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese

3.3 O Silêncio final da Ascese: lugar de um novo começo

3.3.1 O silêncio kazantzakiano e o Nirvana

Suspeito que atrás de todas as aparências há uma essência em luta. Quero unir- me a ela.

Suspeito que a essência em luta busca também, atrás das aparências, unir-se ao meu coração. Mas o corpo se ergue entre nós e nos separa. A mente se ergue entre nós e nos separa.

Qual é o meu dever? Romper o corpo; lançar-me à união com o Invisível. Calar a mente para poder ouvir o clamor do Invisível.

Caminho trêmulo à beira do abismo. Duas vozes lutam em mim.

A mente: “Por que nos preocuparmos em perseguir o impossível? Nosso dever é reconhecer no sagrado recinto dos cinco sentidos os limites do homem”.

Uma outra voz em mim – a que chamamos sexto sentido ou coração – resiste e brada: “Não! Não! Não reconheças nunca os limites do homem! Rompe os limites! Nega o que os teus olhos veem! Morre e diz: a morte não existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 48-49).

Daniel Dombrowski explica que não se deve “assumir aqui que Kazantzákis espera por uma imortalidade pessoal; ao contrário, é o Invisível que é imortal” (DOMBROWSKI, 1997, p. 85). Qualquer conceito ou ideia de último “fim” do ser humano, do último estado de realidade e estado da vida é pura imaginação e deforma a verdade. Quem tem medo de morrer está apegado ao seu ego, por mais que se queira revestir com argumentos racionais. Podemos inferir a partir daí que em sua proposta para salvar Deus, Kazantzákis não olhou somente para as concepções bergsonianas, mas também para os ensinamentos budistas que apontam para o caminho da superação do reino fenomênico, conhecido por samsara57, e para a extinção e libertação da fonte do sofrimento, o desejo e a existência. Isso permitiria, pois, que todos os obstáculos que impedem a união com Deus desaparecessem.

57 Algumas ideias que também ajudam a entender samsara são: a existência condicionada; o nascimento e

Da parte do budismo o egoísmo é um mal, e por consequência o “eu” só se doma por disciplina moral. Mas o egoísmo é mantido pela “egoidade”, e simples mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tiver sido eliminada a opinião tão comum e errônea que costuma se utilizar de expressões do tipo: “isto, sou eu”. O “eu” está constantemente querendo se afirmar, e só depois de ter descoberto perfeitamente a verdadeira natureza deste “eu” inconstante é que se deverá combatê-lo, e dele fazer um servidor e melhor aliado. Segundo Ananda K. Coomaraswamy, o Buda, em seus ensinamentos, enfatizava: “‘Aquilo não é meu, eu não sou aquilo, aquilo não é minha Ipseidade’. Se disto vos libertais para sempre, se renunciais totalmente às noções de ‘eu sou fulano’, ‘eu sou o agente’, ‘eu sou’, será ‘vosso benefício e felicidade’” (COOMARASWAMY, 1952, p. 41). No que se refere à existência de Deus, sabe-se que em sua doutrina o Buda se recusou a “responder sim ou não. Dizer sim seria participar do erro ‘eternalista’; dizer não, do erro ‘aniquilacionista’” (COOMARASWAMY, 1952, p. 44).

A seção final de Ascese, “O Silêncio”, é a mais budista de todas. Lembremos que, para Kazantzákis, “Silêncio quer dizer: Cada qual, após cumprir seu tempo de serviço como combatente, chega ao mais alto cimo do esforço – passados os combates, não luta mais, não grita mais: amadurece por inteiro, silenciosamente, indissoluvelmente, eternamente, com o Universo” (KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 147- 148); e poderia ser comparado aqui com a concepção de nirvana.

O Nirvana [...] é um termo fundamental da terminologia budista, e sem dúvida o mais mal compreendido de todos. O Nirvana é uma morte, um fim (no sentido de estar “terminada” e “aperfeiçoada”). [...]. O Nirvana não é nem um lugar nem um efeito; ele não está no tempo, ele não se obtém por quaisquer meios; [...]. Os “meios” empregados na prática não são em si os meios de se atingir o Nirvana, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa “visão” do Nirvana, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala escura nos permite ver o que aí já se encontrava. Compreendemos agora porque o “eu” (attã) deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e posto fora de atividade. O Arahant, o Homem Perfeito, é aquele cujo “eu” é domado (atta-danto), cujo “eu” foi despojado (atta-jaho); seu fardo foi deposto (ohitabharo); o que tinha a fazer, foi feito (katam-karaniyam). A ele são aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais qualquer nome pessoal; é “liberto” (vimutto); é extinto (nibutto); para ele não há mais porvir; obteve o repouso da fadiga (yoga-

k-kheman); é “desperto” (buddho) – epíteto que se aplica a todo Arahant e não

somente a Buda, por excelência –; é imutável (anejo); é “Ariano”; não é mais discípulo (sekho), é um Mestre (asekho) (COOMARASWAMY, 1952, pp. 38- 39).

Então, o significado de Nirvana pode ser entendido como um “morrer”, ou “extinção”, como se diria de um fogo, de uma chama. Ora, assim como o fogo se nutre

de combustível, toda a existência da vida se mantém pelo alimento material ou mental. Segundo o budismo, o fogo do ego, da egoidade, é mantido pelo combustível do desejo, do ressentimento, da cólera e da ilusão ou ignorância. Por isso, o mundo está em fogo e nós queimamos. “É esta ‘extinção’ (do fogo) que se chama o ‘expirar’ (nibbana=sânscrito. Nirvana) e que se encontra naturalmente associado à ideia de um ‘refrescar’” (COOMARASWAMY, 1952, p. 38).

Kazantzákis parece estar ciente da imagem do fogo e a utiliza em várias passagens de “O Silêncio”. Ele inicia a seção dizendo: “A alma do homem é uma chama: pássaro de fogo [...]”; depois, “O Universo todo se torna uma árvore de fogo. Entre as chamas e os fumos, repousando no ápice da fogueira, seguro o fruto puro, fresco, e sereno do fogo – a Luz”; “E um fogo dentro de mim se adianta para responder. Chegará sem dúvida o dia de o fogo purificar a terra. Chegará sem dúvida o dia de o fogo destruir a terra”; “A alma é uma língua de fogo que lambe e forceja por queimar a massa sombria do Universo. Um dia o Universo inteiro se converterá num grande incêndio”; “O fogo é a primeira e última máscara do meu Deus. Dançamos e choramos entre duas grandes fogueiras”; “Brilham, cintilam nossos pensamentos e nossos corpos. Mantenho-me tranquilo entre as duas fogueiras” (cf. KAZANTZÁKIS, 1997, pp. 145- 147).

Porém, de acordo com Andreas K. Poulakidas, em Kazantzákis as imagens do fogo – da chama; da fogueira – indicariam um contínuo “queimando” em vez de um “apagando”, o “resfriamento” que levaria ao Nirvana, ao Silêncio.

Seu conceito de Nirvana é escatológico – no futuro, onde o processo do vir a ser cessará – em vez de ético, um estado alcançado aqui e agora, de acordo com Buda. Neste Silêncio ou Nirvana, existe uma realidade: que é o da unidade do eu e Brahma. Se essa realidade é ou não é, não se sabe. Buda se recusou a divulgar esse segredo ou a discuti-lo, como fez Bergson, enquanto que Kazantzákis se compromete (POULAKIDAS, 1975, pp. 216-217).

De acordo com a interpretação de Poulakidas, portanto, Kazantzákis se compromete porque como sabemos, no final da sua Ascese, ele revelou “o grande, o extraordinário, o terrível segredo:/ Sequer este Um existe!” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 150).

Trata-se de um final enigmático, onde o último verso soa bastante desconcertante e contraditório, sobretudo se lembrarmos que o Silêncio para Kazantzákis significava um amadurecer por inteiro, indissoluvelmente, eternamente, com o Universo. Todavia, ao que tudo indica, para o escritor grego somente quem for

capaz de abraçar “o terrível segredo” deverá alcançar a liberdade suprema, ou seja, se desprender da última das amarras: a finalidade. Com efeito, a ação em si mesma deve ser reconhecida como seu próprio fim. E a ascese kazantzakiana se assemelharia, assim, à definição de Raimon Panikkar acerca da experiência de Vida no budismo. De fato, no entender deste estudioso, poder-se-ia compreender o budismo mediante estas três visões: “insatisfação constitutiva, ‘trabalhar com diligência em nossa salvação’ e esperança de um salto no vazio. Então o caminho já é a meta. Daí a paz (tradicional no budismo) que irradia o Buda” (PANIKKAR, 2007, p. 236).

Diante disso, cabe então o comentário de Ana Martínez Arancón a respeito do final de Ascese:

Em última análise, é indiferente que Deus exista ou não, que seja uma invenção, ou ainda uma ilusão da mente (as ilusões são criações em cumplicidade com o desejo) que se desvaneça, conosco, no nada, e nada disso importa porque no empenho por romper uma a uma as amarras, o espírito acaba por livrar-se também da última delas, a mais agradável: o ser (ARANCÓN, 1999, p. 146).

Assim como acontece com o budismo, não poucas vezes a Ascese de Kazantzákis tem sido interpretada como um manifesto de pessimismo e niilismo. Poulakidas, por exemplo, entende que ele não tem uma teologia: “Se, em essência, sequer este Um existe, então certamente não se pode falar de Deus, ou de uma natureza, ou do homem ser um Deus e ser salvo. Existe apenas o ilimitado e mortal silêncio do Abismo” (POULAKIDAS, 1975, p. 217). Contudo, veremos a seguir se outra possibilidade pode ser aberta a partir da mística cristã.