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Capítulo 2 – Ascese: Os Salvadores de Deus: trajetória de uma escrita em busca de

2.3 Apontamentos para uma caracterização literária de Ascese

2.3.1 A junção literário-filosófica em Zaratustra: um modelo para Ascese

no máximo, um literato, um poeta, um artista da linguagem; para outros, um grande modelo de filósofo, alguém que leva ao limite as possibilidades do pensamento. Para alcançar coerência em suas reflexões, trabalha uma linguagem altamente metafórica, e até mesmo poética em alguns textos. A preferência pelo estilo poético sobre o conceitual distingue sua obra das demais obras filosóficas, característica, aliás, que resultará numa forte influência até os dias de hoje. E é em Assim falou Zaratustra que se pode ver a junção literário-filosófica com maior clareza, ou seja, a coexistência da prosa filosófica com a poesia. Nesse sentido, esta obra parece ser o experimento criativo de Nietzsche que pode ajudar a pensar mais claramente a relação entre filosofia e literatura.

Assim falou Zaratustra é uma obra singular se comparada com as outras obras de Nietzsche; não houve outra igual em estilo. É uma obra construída em prosa-poética, e

se pensarmos em termos tradicionais, é o livro menos “filosófico” de Nietzsche. Um livro confuso, cheio de desencontradas narrativas, entrecortado por discursos e acontecimentos, por vezes, desconexos. Olhado de fora, um livro que em nada lembra um tratado filosófico à moda aristotélica ou espinosiana, muito menos pode ser facilmente encarado como uma obra literária. Olhado por dentro, ou seja, percebendo e colocando a obra no contexto das outras obras e, sobretudo, no contexto das noções fundamentais do pensamento de Nietzsche, talvez seja seu livro mais “filosófico”, exatamente por querer fazer filosofia mediante elementos que fugiam da forma tradicional de fazer filosofia, o que o torna também, ainda sob um viés tradicional, o mais literário livro de Nietzsche.

A obra não deixa de seguir o estilo aforístico que é a marca registrada de Nietzsche, mas a dimensão poética ativa o pensador. A musicalidade, a metaforização, a divisão da frase em seguimentos, caracterizam a junção da poesia com a prosa filosófica. Massaud Moisés faz o seguinte comentário da obra “literário-filosófica” de Nietzsche:

Sentir e pensar a um só tempo, um pensar que se derrama em frases coordenadas, breves como hemistíquios, sem propósito aparente de rigor silogístico ou científico. Cada parágrafo explode num jacto, numa irrupção nervosa, brotada de um intelecto a funcionar em alta rotação, abrindo-se para os horizontes de onde nasce a poesia. A reflexão aforística é, ao mesmo tempo, conhecimento e emoção, como se os ventos da irracionalidade soprassem para dentro do pensamento. Zaratustra/Nietzsche fala das palavras e dos sentidos, dos sons, do além-túmulo, e da exterioridade, em abstrato, consoante pede a investigação filosófica, em busca de uma saber universal e perene. Mas, na verdade, o alter ego do filósofo divisa tudo de seu prisma pessoal, egolatricamente, convicto de não haver nada fora dele, como um autêntico poeta lírico [...] De súbito, arrastado pelo transe em que atropela seus pensamentos, era como se a razão filosófica se identificasse com a subjetividade do pensador. Ou como se a Razão apenas cintilasse no espaço atravessado pela emoção, ou seja, onde o saber filosófico, que se pretende conceptual e por isso persuasivo, se aliasse à poesia. Afinal, noutro passo Zaratustra se diz “poeta, adivinho de enigmas”, querendo com isso apontar a congruência entre a reflexão do filósofo e a intuição do vate (MOISÉS, 1967, p. 28).

Assim, Zaratustrainsere-se no projeto filosófico de Nietzsche, e essa inserção se torna mais clara quando articulada com o primeiro livro de Nietzsche, O nascimento da Tragédia, no qual o jovem Nietzsche pretendia inaugurar, pela filologia, uma crítica diferente ao espírito racionalista da modernidade pelo viés trágico. Para ele, esta era a única forma de livrar o homem moderno do pessimismo negador da vida, o qual, já nesse momento, é percebido em várias expressões da organização da sociedade. Frente a isso, afirmava a necessidade de se expressar não por conceitos, mas por figuras

significativas. Será, então, em Assim falou Zaratustra que Nietzsche alcançará com maior êxito este objetivo. Isso, depois de um processo de amadurecimento vital e reflexivo, longe da academia e dos seus grandes mestres, que gerou nele uma série de noções novas e críticas, todas desenvolvidas sob a noção do trágico, que, portanto, deveriam ser expostas de forma diferente. Zaratustra mostra-se como a tentativa mais ousada de Nietzsche de expressar suas concepções. Ousadia que vem em decorrência de novas necessidades desse novo conjunto de descobertas, mas cujo filão original já havia sido descoberto anteriormente. Dessa maneira, os limites entre as compreensões tradicionais de filosofia e literatura começam a ruir.

No estudo Zaratustra – tragédia nietzschiana, Roberto Machado procura analisar todas essas questões em suas especificidades e significados. Suas análises confirmam o que até aqui expusemos acerca da ideia de que Assim falou Zaratustra esteja escrito de forma poética e que seja a concretização, nas palavras do comentador, de um “projeto de fazer da poesia o meio de apresentação de um pensamento filosófico não conceitual e não demonstrativo. Um pensamento emancipado, portanto, da razão” (MACHADO, 2001, p. 23).

De acordo com Machado, Nietzsche desejava “fazer a escrita atingir a perfeição da música, considerada sempre por ele, na esteira de Wagner e Shoppenhauer, a arte superior” (MACHADO, 2001, p. 25). Com efeito, Zaratustra parece ter sido a concretização desse projeto, aproximando-se, assim, do ditirambo dionisíaco, que é uma apresentação da palavra e da música como componentes da tragédia, o apolíneo e o dionisíaco respectivamente. Contudo, o Zaratustra não pode ser explicado somente por meio dos ditirambos, uma vez que ele também pode ser dança e até mesmo sinfonia, lembrando que para Nietzsche “escrever é dançar com a pena, [e] o maior desejo de um filósofo é ser um bom dançarino” (MACHADO, 2001, p. 25).

Então, aqui, é ressaltado o seguinte aspecto:

Só que Assim falou Zaratustra pretende escapar da ideia de sistema ou de tratado de um modo específico: através da narrativa e do drama, formas que, em consonância com a temática do apolíneo e do dionisíaco, aproximam o livro tanto da epopeia quanto da tragédia (MACHADO, 2001, pp. 26-27).

Portanto, Assim falou Zaratustra já não é somente um canto, uma dança, uma poesia filosófica. É possível reconhecer também um paralelo com a narrativa dramática, seja ela a tragédia ou a epopeia. Obviamente que Zaratustra não é uma tragédia como gênero determinado nos moldes de Ésquilo, de Sófocles ou de Eurípedes. “Em sua

forma híbrida, polivalente, múltipla, Assim falou Zaratustra me parece um resultado da independência do trágico com relação à tragédia clássica...” (MACHADO, 2001, p. 28). De fato, essa proximidade com a tragédia pode ser entendida a partir da união do apolíneo com o dionisíaco na figura do próprio Zaratustra, que num determinado momento apresenta-se como herói luminoso, solar, e mais adiante como herói tenebroso.

Pois bem, sem me estender mais, passo, então, a esboçar ligeiramente algumas possibilidades da proximidade de Ascese com Zaratustra. Ainda que, de acordo com Ana M. Arancón, uma leitura mais apurada possa revelar profundas diferenças em relação ao conteúdo, pois “Nietzsche tem antes de tudo um propósito hermenêutico, enquanto Kazantzákis está animado mais por uma intenção soteriológica” (ARANCÓN, 1999, p. 137). Entretanto, o próprio Kazantzákis reconhecia em Zaratustra a intenção profética que também poderia ser atribuída a Ascese, ou seja: a de ser um novo evangelho. De fato, em Testamento para El Greco, ele comenta:

Tu [Nietzsche] dissestes: Uma obra nova deve ser criada, é meu dever de criar – para poder pregar um novo evangelho à humanidade. Mas como? Um sistema filosófico? Não. O pensamento deve jorrar com lirismo. Um épico? Profecias? E subitamente a forma de Zaratustra lampejou na tua mente (KAZANTZAKIS, 1975, p. 226).

Com efeito, Ascese se servirá de uma estrutura semelhante à de Zaratustra, num misto de prosa, poesia e discurso filosófico. Além disso, tal como a obra de Nietzsche, deve-se considerar que Ascese tem em vista como leitores os chamados “espíritos livres”. Zaratustra é uma espécie de profeta, um anunciador da superação de si, do eterno retorno e da afirmação dionisíaca; o além-homem aponta para uma nova maneira de sentir, pensar e avaliar. Kazantzákis, ao seu modo, não faz diferente. Como teremos oportunidade de mostrar, o elocutor ou herói/leitor de Ascese protagoniza uma espécie de escalada, onde recomendações como a superação de si, a remodelação de um novo deus, a afirmação como criação em meio ao caos, vão construindo a estrutura da obra. Mediante a desconstrução de valores, a obra pretende recriá-los por meio do pensar e do sentir, por meio da prosa em união com a poesia, por meio do discurso conceitual – em busca da verdade – e do discurso religioso – que fala mais ao sentimento do que à razão –, arraigados por séculos no processo de construção do conhecimento. Dessa forma, Kazantzákis, tal como Nietzsche, desenha um itinerário de libertação (redenção) dessa tradição de valores, fundados e criados pela religião e pela filosofia, numa linguagem sonora, ritmada e narrativa.

Após essas constatações de semelhanças entre Zaratustra e Ascese, agora será preciso providenciar um comentário mais detalhado em torno da prosa e da poesia, e do movimento destes gêneros, especialmente na modalidade conhecida por prosa poética, e indicando, assim, seus traços em Ascese.

2.3.2 A circularidade entre prosa e poesia e a questão dos personagens em