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Capítulo 2 – Ascese: Os Salvadores de Deus: trajetória de uma escrita em busca de

2.2 Resumo das seções de Ascese

O pequeno livro de Kazantzákis mostra cinco etapas mediante as quais o ser humano pode exercitar o seu espírito e se preparar para a busca da liberdade. Trata-se da ascese kazantzakiana para a redenção. As etapas são: A Preparação; A Marcha; A Visão; A Prática; O Silêncio. Cada uma destas seções se subdivide em diferentes

deveres e graus que permitem vislumbrar um caminho ascendente para lutar contra o temor do nada e da morte, incessantes combates para se alcançar os mais altos picos da libertação, buscando superar os limites da natureza humana, da servidão e da concepção de um Deus que não passa de um mero reflexo dos desejos e interesses humanos. As cinco etapas da Ascese procuram nos levar, assim, a apreciar a liberdade em suas mais variadas formas: como ausência de medo e de esperanças, como autossuficiência, como libertação da necessidade e como libertação da própria liberdade. Passaremos, agora, para uma apresentação resumida de cada um desses momentos de Ascese.

A obra se inicia com uma espécie de prólogo, que não passa de uma página, e prepara, por assim dizer, um pouco do palco emocional e da perspectiva que ela deverá tomar direção. Começa dizendo o seguinte: “Viemos de um abismo de trevas; findamos num abismo de trevas: ao intervalo de luz entre um e outro damos o nome de vida” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 38). 42 A vida define-se, pois, como uma espécie de centelha, um breve instante de luz entre dois nadas escuros, e, a partir daí, é tida como um caminho entre o brotar e o apagar-se. Tal dinamismo constante faz que a vida não seja nunca repouso: é um morrer contínuo e também um nascer, pois se renova sem cessar. Esta explosão de luz no meio do nada parece surpreender Kazantzákis, a ponto de ele dizer que a vida “parece uma reação ilegítima, desnaturada...”, um verdadeiro escândalo. Mas logo corrige e compreende que a própria inesgotabilidade da vida, sua imensa capacidade de renovação, revela-se como um impulso do Universo. Com efeito, ser humano e Universo compartilham esse assombro, esta estupenda e improvável capacidade de existir. E então o existir se manifesta como algo ao mesmo tempo inevitável e excepcional; sua situação entre os dois nadas, o já e o ainda não, o definem como tensão perpétua, uma luta por manter quente e iluminada a chama frente ao sopro gelado das trevas.

A partir daí inicia-se as etapas da Ascese. A primeira é A Preparação. Indicado já no prólogo, ou seja, neste breve espaço entre o abismo escuro de onde viemos e o abismo escuro para onde vamos, o principal problema do ser humano é o de deixar de ser. Como enfrentar essa realidade? Antes de tudo, nesta etapa de preparação é preciso cumprir três deveres. O primeiro consiste em adquirir uma consciência tal que se chegue a ter muito claro os limites inerentes à inteligência, ao entendimento humano. Trata-se

42 Todas as citações extraídas de Ascese referem-se a esta mesma edição, e, a partir de agora, citarei

de reduzir o conhecimento humano ao âmbito do fenomênico. Com efeito, o primeiro dever é aceitar os seguintes pontos:

1) A mente do homem só pode apreender os fenômenos ou aparências, jamais a essência; 2) e não todos os fenômenos, só os da matéria; 3) e nem sequer os fenômenos da matéria, apenas as relações entre eles; 4) e tais relações não são reais, independentes do homem; ele é que as gera; 5) e não são as únicas possíveis, mas tão só as mais convenientes para as necessidades práticas e teóricas do homem (pp. 43-44).

Kazantzákis pensa que é uma etapa bastante dura, pouco gratificante e que requer muita coragem, mas também alegre, enquanto supõe uma libertação.

O segundo dever é o de superar os limites impostos pela mente. Agora é preciso dar mais um passo e não aceitar que seja apenas com a razão tudo o que podemos conhecer. Não resignar-se a ela e ouvir a voz do coração. Este sente angústia frente a esses limites, se rebela e luta para ir mais além, pois pretende alcançar o grande mistério, a essência que supostamente se encontra por trás dos fenômenos. Viver intensamente o conflito e a angústia dos limites do saber e do desejo de ir além, “dar um sentido humano à luta sobre-humana” (p. 52), é o segundo dever.

Chega-se, então, ao terceiro e último dever nesta etapa de preparação. Agora, Kazantzákis deseja incutir que se abstenha de qualquer esperança. O terceiro dever consiste em empreender o combate amando simplesmente a luta em si. É preciso se libertar da mente e do coração, a partir da grande tentação da esperança que ambos oferecem de subjugar fenômenos ou de encontrar a essência das coisas. Libertar-se da simples complacência da mente que pensa em colocar todas as coisas em ordem e espera dominar fenômenos. Libertar-se do anseio do coração que procura e espera encontrar a essência das coisas. Desprezar qualquer esperança de triunfo ou de recompensa. É, portanto, quando se pode dizer: “Agora sei: não espero nada, não temo nada, libertei-me da mente e do coração, subi mais alto, sou livre. É isso que eu quero. Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade” (p. 58).

A Marcha. Depois de cumprir os três deveres impostos em A Preparação, chega-se à segunda etapa, na qual o ser humano ouve um grito que surge do mais profundo do seu ser. E é dever do homem ouvir esse grito que lhe impulsiona para a luta, uma vez que sua liberdade está nessa luta. Esse grito, essa ordem, está no início da marcha, e, portanto, o colocará em movimento. É preciso eleger agora o caminho a seguir.

Dos dois caminhos eternos, qual hei de escolher? De repente dou-me conta de que a minha vida toda depende dessa decisão; dela depende a própria vida do Universo.

Dos dois caminhos, escolho o que sobe. Por quê? Sem nenhuma razão, sem certeza alguma; sei o quão impotente se demonstra o intelecto nesse momento crítico e quão precárias são as certezas humanas.

Escolho a subida porque até ela me impele o coração. “Para cima! Para cima! Para cima!” brada-me o coração e eu o sigo cheio de confiança (pp. 63-64). A marcha se inicia e deverá avançar através de quatro degraus. O primeiro deles é o “Eu”, onde se deve exercitar o corpo e manter lúcida a mente para o combate, e não deixar que se extinga o fogo aceso no coração. Para usufruir esses objetivos são indicados uma série de mandamentos, tais como amar o perigo, aprender a obedecer e a comandar, apreciar a responsabilidade, buscar companheiros para o combate, ser sempre insatisfeito e inadequado. Ao terminar o primeiro degrau se pode dizer: “Sou uma ponte ligeira; Alguém passa sobre mim e desabo após sua passagem” (p. 69). Avança-se, assim, para o segundo degrau.

Este segundo degrau é a “Raça”. Aqui se diz: “O Grito não é teu. Não és tu que falas; inúmeros antepassados falam por tua boca. Não és tu que desejas; inúmeras gerações de descendentes desejam com o teu coração” (p. 70). Os versículos poéticos de Kazantzákis vão enunciando três deveres fundamentais: sentir no fundo do ser a presença de todos os antepassados, prosseguir e acabar as obras iniciadas por eles e, finalmente, ensinar aos filhos a grande tarefa de superar lhes.

O terceiro degrau é a “Humanidade”, momento no qual se deve ultrapassar a noção de raça e ampliar o círculo de pertencimento: toda a humanidade com as suas inumeráveis gerações. “Somos uma humilde letra, uma sílaba, uma palavra da gigantesca Odisseia. Estamos imersos numa canção gigantesca e brilhamos como brilham as humildes conchas imersas no mar” (p. 82).

Continuando esse trajeto de superação, rompe-se uma vez mais os limites, agora os da humanidade, e chega-se ao quarto degrau: a “Terra”. Alcança-se, desse modo, o nível superior desta etapa.

Não és tu que gritas. Não é a raça que grita dentro do teu peito efêmero. Não gritam em teu coração apenas as gerações de homens brancos, amarelos e negros. Grita dentro dele a Terra inteira, com suas águas e suas árvores, seus bichos, seus homens e seus deuses (p. 86).

Depois deste último degrau, o ser humano integrou seu pensamento e coração com toda a natureza. O espírito chegou à beira de um abismo. Como prosseguir? A

partir daí, as relações se estabelecem para além do mundo visível, onde o Invisível se converte em visão, onde o mortal combate com o imortal e o homem se enfrenta com seu Deus, acontecimento que dá passo para a terceira etapa da ascese kazantzakiana.

A Visão. Nesta seção começam a serem descritas as imagens da visão sobre Deus.

Atrás da corrente do meu corpo e do meu cérebro, da raça e dos homens, dos animais e das plantas, vejo, a tremer, o Invisível que espezinha tudo quanto seja visível e ascende. [...].

Seu semblante é severo, mudo e sombrio; está além da alegria e da dor, além de toda esperança (p. 99).

Frente a essa visão sobressai-se um sentimento de terror. Daí, logo em seguida, a pergunta dirigida a esse ser estranho: “Tremo. És tu o meu Deus?” E diante do que é descrito na sequência, têm-se a impressão de se estar enfrentando uma visão monstruosa e feroz:

Teu corpo está repleto de lembranças. Como um prisioneiro de longa data, trazes tatuados nos braços e no peito árvores estranhas e dragões peludos, aventuras sanguinolentas e gritos e cronologias.

Senhor, Senhor, ruges como uma fera! Teus pés estão sujos de sangue e lama; tuas mãos também. Pesadas como pedras de moinho são as tuas mandíbulas trituradoras.

Tu te aferras às arvores e aos animais, calcas o homem e chamas. Escalas o negro e infindo precipício da morte e tremes (p. 99).

E seguem fluindo as linhas repletas de imagens que procuram expressar a visão acerca do Invisível. Uma das afirmações marcantes nesta etapa de Ascese é a de que “A essência do nosso Deus é a LUTA” (p. 101). Uma luta, aliás, cuja finalidade escapa totalmente à compreensão humana. De fato, existe somente um impulso de Deus que pode ser reconhecido pelo ser humano: “Entre todos os impulsos de Deus, qual o que o homem pode perceber? Somente este distinguimos: uma linha rubra sobre a terra, uma rubra linha de sangue que luta por ascender, da matéria inanimada às plantas, das plantas aos animais, dos animais ao homem” (p. 103).

Diante da sequência de descrições de imagens tão complexas, de difícil compreensão, há uma passagem no final desta seção que se mostra bastante lúcida quanto à dificuldade de expressar o Invisível e que também traz uma recomendação: “Aquilo que vives durante o êxtase jamais o poderás pôr em palavras. Não obstante, esforça-te o tempo todo. Com mitos, comparações e alegorias, com palavras comuns ou raras, com gritos e rimas, procura dar-lhe carne, exprimi-lo” (p. 105). Portanto, nesta

passagem é dado ao ser humano, na recomendação de se esforçar o tempo todo, o papel de lutador e criador e que deverá levá-lo a uma ação, a uma prática.

A Prática. Ao chegar a esta etapa o indivíduo já deve ter adquirido a consciência de sua liberdade e do seu papel criador. E nesse sentido, se já foi estabelecido sua verdadeira identidade e seu lugar no universo, agora é preciso perguntar o que se vai fazer sobre isso. Esta seção é principalmente sobre a responsabilidade, ou seja, a responsabilidade do ser humano para com a força da vida sempre ascendente, em direção ao outro e em direção à Terra. Ora, cabe-lhe contribuir para o amadurecimento de todas as coisas, inclusive a sua própria. Pois se o ser humano é a culminação sublime dessa luta, não é por isso menos incompleto, ainda em processo de criar-se a si próprio. Não lhe é permitido descambar para a satisfação, porque ainda há muito por fazer. Há, portanto, o dever e a necessidade do ser humano ultrapassar a si mesmo e de ajudar universalmente para o amadurecimento.

Com efeito, A Prática divide-se em três subseções. A primeira delas recebe o nome de “A relação entre Deus e o homem”, onde a prática é indicada como a última forma, “a forma mais sagrada da teoria” (p. 109). Entretanto, o ponto alto desta subseção se funda no desenvolvimento da exploração da natureza de Deus. Aqui se trata de indicar que este Deus não é onipotente, posto que a luta de cada uma das suas criaturas com a morte é sua própria luta, e que não pode assegurar nenhuma vitória. Não é todo bondade, tal como a vida, é duro e, às vezes, cruel; ama num instante e esquece para sempre. Não é onisciente, porque é aperfeiçoável, porque vai em busca de si mesmo através do labirinto da criação; um Deus cuja luta, ainda que em maior escala, é a mesma que a do ser humano, pois combate pela vida e por conhecimento. Nesse sentido, o ser humano trabalha, atua e luta junto a Deus, o qual precisa de ajuda em sua nobre tarefa, fato que permite entender o subtítulo da obra em questão, Salvadores de Deus. Isso fica expresso na seguinte passagem: “Deus inteiro corre perigo. Não poderá salvar-se se nós, com nossa luta, não cuidarmos disso; e não nos poderemos salvar se ele não salvar-se” (p. 117); e fica ainda mais evidente quando, um pouco mais adiante, é feita a afirmação de que “Não é Deus que nos irá salvar; nós é que o salvaremos lutando, criando, transfigurando a matéria em espírito” (p. 119).

A segunda subseção desta etapa é denominada “A relação de homem a homem”, momento em que a humanidade é caracterizada com os seguintes dizeres: “Nós, homens, somos miseráveis, pusilânimes, mesquinhos, insignificantes. Mas há em nós uma essência superior que nos impele impiedosamente para cima” (p. 123). Esta

essência superior é o que promove a identificação do ser humano com o Universo, e é o que gera as duas grandes virtudes éticas: a responsabilidade e o sacrifício. Assim, é dever de cada um ajudar a libertar aquele Deus que está sufocado dentro da humanidade. Somos todos um, todos uma essência em perigo. Por isso, a salvação do Universo é a nossa salvação e se fala da solidariedade entre o gênero humano: “[...] a solidariedade entre os homens não é um luxo de corações ternos, mas uma profunda necessidade de auto conservação. Uma necessidade como, num exército em combate, a salvação do companheiro em fileira” (p. 131). Mesmo assim, no final desta subseção, uma passagem paradoxal deixa em aberto os caminhos para a salvação, uma vez que “Cada qual tem seu próprio caminho para a redenção – uns a virtude, outros o mal” (p.133).

Na terceira subseção, “A relação entre o homem e a natureza”, o mundo não é visto como uma ilusão ou fantasia colorida representada por nossa mente, mas também não é totalmente independente da força do cérebro. Reafirma-se nesse momento nossa conexão com as forças da natureza, forças antagônicas: uma descendente, a qual quer dissipar-se ou morrer; e uma ascendente, que nos permite buscar a liberdade e a imortalidade. Essas forças se entrechocam o tempo todo e os sinais visíveis disso são as plantas, os animais, os seres humanos. Frente ao caos de tais forças cabe ao ser humano submetê-las a leis, impor-lhes uma ordem, pois

Quando, no combate contra o caos, o homem submete uma série de fenômenos às leis de sua mente e define essas leis com rigor verbal, o mundo respira, os gritos se ordenam, purificam-se as coisas vindouras [...].

Com o auxílio da mente, obrigamos a matéria a seguir-nos (p. 138).

Consequentemente, somente através da humanidade, e não da natureza, é que Deus tem a chance de ser salvo. Nessa relação do ser humano com a natureza, chega-se a uma nova concepção que é fundamental. É quando se coloca que “Ao lutar com o mundo visível que nos circunda e ao submetê-lo, não libertamos Deus apenas: nós o criamos” (p. 138). Portanto, nesta perspectiva, salvar Deus é criá-lo, e isso se estende às lutas diárias de cada um, ao seu trabalho. Quer dizer, não seria outra coisa senão o máximo desenvolvimento das próprias faculdades e as exercendo, cada qual em seu campo de ação, da melhor maneira possível. Assim, um camponês salva Deus quando ele trabalha para ajudar a terra a dar frutos; ou quando um sábio mata velhas ideias para criar novas. Mas, enfim, descobre-se agora que “Pela primeira vez, Deus contempla sua própria luta sobre esta terra, através de nossas mentes e corações” (p. 142).

O Silêncio. É a seção final de Ascese.

Silêncio quer dizer: Cada qual, após cumprir seu tempo de serviço como combatente, chega ao mais alto cimo do esforço – passados os combates, não luta mais, não grita mais: amadurece por inteiro, silenciosamente, indissoluvelmente, eternamente, com o Universo (pp. 147-148).

Nesta etapa é preciso desvincular-se de todos os nexos concretos, um desapego necessário para se encontrar com o Universo e unir-se com o Abismo. A seção é finalizada com uma espécie de oração ou exorcismo contendo uma série de nove versículos em letras maiúsculas, onde o primeiro deles expõe a concepção de um Deus guerreiro, denominado “guarda-fronteiras”, o qual protagoniza a eterna luta entre a luz e as trevas, combatendo incessantemente para vencer e fecundar a matéria. A oração prossegue e os três versículos finais adquirem a forma própria das bem-aventuranças, sendo que o último deles revela o maior e mais desconcertante dos segredos: “E três vezes bem-aventurados os que carregam nos ombros, sem vergar ao seu peso, o grande, o extraordinário, o terrível segredo: sequer este Um existe!” (p. 150).

Obviamente que o resumo de uma obra como Ascese Os Salvadores de Deus não consegue dar conta de expor toda a grandeza de sua complexa filosofia e do forte apelo da sua beleza poética. Ao mesmo tempo, também devemos estar cientes de que ao descrever e resumir uma obra já começamos a interpretá-la. Por isso, ninguém está dispensado de fazer uma leitura atenta da obra para tirar suas próprias conclusões. Entretanto, ao passarmos brevemente em revista cada uma das etapas que constituem este livro, acreditamos ter mostrado seus ingredientes básicos e que nos aproximam, assim, daquilo que lhe é essencial, ou seja: a temática da luta, os tipos de liberdade, a necessidade de superação, a natureza e as imagens de Deus. O passo seguinte em nosso estudo terá como objetivo fazer uma análise sucinta da caracterização literária de Ascese.