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Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese

3.4 Salvatores Dei: uma espiritualidade da luta e da liberdade

Ao longo deste terceiro capítulo discutimos alguns pontos do caráter religioso de Ascese. A bem da verdade, a esta altura já deve estar suficientemente claro que devemos ser cautelosos em atribuir a palavra religião para o que estamos refletindo, pois se trata de uma busca muito mais ampla, imprecisa e ilimitada, e por isso achamos melhor falarmos de uma mística sui generis, ou, no caso, de espiritualidade. Em se tratando de Kazantzákis é melhor falarmos de “um esforço indomável, uma tentativa de saída a seus impulsos por filosofar sem dogmas e para viver uma fé de maneira examinada e não cega. É a essa força daimônica de lucidez e êxtase a que chamaremos ‘espiritualidade’ em Kazantzákis” (PIZARRO, 2005, p. 8).

Apesar de termos feito uma abordagem razoavelmente dilatada e aberta acerca de temas tão diversos, mas essenciais a essa espiritualidade, penso que tenha ficado transparecido a dimensão da luta e da liberdade que por ela perpassam. Agora, ao irmos fechando este capítulo, nossa intenção não será exatamente elaborar uma síntese ou

recapitular o que já foi dito, ainda que alguns pontos e muitas passagens já apresentados anteriormente se repitam aqui. A ideia é ressaltar e reforçar os aspectos que em Ascese a luta e a liberdade vão tomando e que podem nos ajudar a compor um comentário mais nítido e conciso sobre sua espiritualidade. Com esse intuito também acrescentarei notas e comentários que se encontram em outros textos de Kazantzákis, mas que iluminam e corroboram o que está expresso em Ascese, aceitando assim a visão do próprio escritor: “Tudo o que escrevi depois não foi mais que um comentário e uma ilustração de Askitikí” (apud BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 208) 62.

Isto posto, quero começar retomando a primeira seção de Ascese, “A Preparação”, mais especificamente o encerramento do Terceiro Dever, quando nos deparamos com a seguinte declaração:

Desesperado mas intrépido, deves caladamente voltar a proa para o abismo. E dizer: Não existe nada!

Agora sei: não espero nada, não temo nada, libertei-me da mente e do coração, subi mais alto, sou livre. É isso que eu quero. Não quero senão isso. Eu buscava a liberdade” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 58).

O escritor grego deixa entrever nessa citação que é preciso abster-se de qualquer esperança. Devemos lembrar ainda que a síntese desta citação também é a palavra final de Kazantzákis, isto é, o seu epitáfio: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”. Os “nadas” enfáticos que nela aparecem poderiam dar a entender que se trata de uma postura assumidamente niilista. Mas, como já foi visto, não é bem assim. O que se tem em Ascese é na verdade um constante chamado para a luta. Percebe-se claramente, a partir da citação, que é preciso se libertar tanto da mente que ordena os fenômenos na esperança de subjugá-los, quanto do coração que busca e essência na esperança de encontrá-la, ou seja, é preciso se libertar morrendo para a autossuficiência. A partir daí, “caladamente voltar a proa para o abismo”; e dizer: “Não existe nada!” e “É isso que eu quero”. Assim se superará “os limites da pretensa razão e do pretenso onipotente coração, para ser livre para então se pôr em marcha em direção a um sentido, sem lhe impor condições” (VILLAS BOAS, 2013, p. 201).

Ser totalmente livre para se colocar em marcha e criar um sentido, qual seja: a ininterrupta busca e notável luta com Deus. Nesse sentido, vale a pena relembrarmos

62 A visão do autor de que todos os seus trabalhos posteriores eram representações deste trabalho central –

uma posição que ele também manifestou, por exemplo, em 1951, a Max Tau: “[Ascese] é meu credo, o centro da minha obra; mais ainda, o centro de toda a minha vida” (apud BIEN, 2007, p. 142).

aqui aquela passagem já mencionada por nós da carta enviada ao amigo Börje Knös, onde Kazantzákis confessa:

O tema principal, quase único, de toda minha obra, é o combate do homem com ‘Deus’, a luta acirrada do verme chamado ‘homem’, contra as forças todo- poderosas e tenebrosas que se encontram nele e em torno dele; a obstinação, a luta, a tenacidade da pequena Faísca que trata de penetrar e vencer a imensa Noite eterna. A luta e a angústia por transformar as trevas em luz, a escravidão em liberdade (KAZANTZAKI, 1974, pp. 408-409).

No prólogo de A última tentação de Cristo, o escritor comenta que por causa da ambiguidade do mundo, essa luta com Deus envolve conflito ou perigo, e que pode suscitar diferentes qualidades de resposta:

Eclode em todos o combate entre Deus e o homem, acompanhado do anseio pela reconciliação. Na maioria das vezes é um combate inconsciente e efêmero. Uma alma fraca não tem a capacidade de resistir à carne por muito tempo. Torna-se pesada; transforma-se ela própria em carne, e a luta termina. Entre os homens responsáveis, homens que dia e noite mantém os olhos concentrados no Dever Supremo, o conflito entre a carne e o espírito irrompe sem tréguas e pode se estender até a morte (KAZANTZAKIS, 1988, pp. 5-6).

Na perspectiva de Kazantzákis, sabemos que cada pessoa adquire o nível do inimigo com o qual luta. Por isso ele gostava de dizer que lutava com Deus. E se Deus pegou no barro para criar o ser humano, ele, poeta que era, se utilizou das palavras. Lutando com Deus, portanto, Kazantzákis se sentia Um com Ele, se sentia um criador. Com as palavras ele criava o mundo. Mas não só isso. Com as palavras ele também criava Deus. Em outra passagem podemos ler: “Deus está sendo construído. Também eu incluí minha pedrinha, uma gota de sangue, para dar-lhe solidez. Para que Ele não morra. Para que Ele possa me solidificar para que eu não morra” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 18). E dessa maneira, “Com as letras do alfabeto (as únicas pedras e o único concreto que possuo) pavimentei a nova estrada que leva à salvação” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 245). Com esse objetivo, Kazantzákis reconhecia que escrever era um grave dever. Mais do que por beleza, por simples efeito estético, escrever para nosso autor era uma forma de se lutar pela redenção.

Sua luta e redenção/liberdade derivam do seu ímpeto criador. E o Deus que Kazantzákis forja com a palavra, se funde com o bem e com o mal, com o corpo e com a alma, com a razão e com a intuição, com o céu e com o inferno. Este Deus com o qual ele luta e cria, o Criador ao qual ele se une e carrega dentro de si, combate nas fronteiras da linguagem para impedir que o sentimento de separação avance. É, pois, o grande esforço de fazer comunicável, por apenas um momento, alguma fração do Inefável.

Com efeito, “a harmonia, a beleza, é o resplendor da luta por conquistar esse equilíbrio, é o exercício pleno da liberdade, não só na arte, mas também [como afirma Aziz Izzet] em todas as frentes: a liberdade dos povos, dos seres humanos e a do espírito” (PÉREZ; AMÉSTICA, 2000, p. 49).

Para Kazantzákis Deus está em contínuo processo de construção, deve estar sempre sendo criado. E um dos propósitos declarados em Ascese tem a ver justamente com ajustar e atualizar o rosto Deus com o nosso suor, ou melhor, “com nossa própria carne e sangue”, já que o poeta grego entendia que as feições dadas por outras épocas e povos a essa “prodigiosa essência sem rosto” são máscaras datadas.

Nada mais de acordo com sua época do que dar a Deus um rosto de luta. Uma vez que “nossa época histórica é um momento de crise violenta, um mundo desaba e o outro ainda não nasceu. A nossa não é uma época de equilíbrio, em que a cortesia, a concórdia, a paz e o amor possam ser virtudes fecundas” (KAZANTZÁKIS, 1997, 129). Conceber um Deus que toma o rosto duro, vulgar e atormentado de uma época, que trabalha enfurecido pelo cansaço e pela fome, que seja identificado com as lutas sombrias do ser humano e que, apesar de tudo, conserve a radiação do Infinito. Para Kazantzákis faltava um Deus que fosse o reflexo das “angústias e das lutas do ser humano de sua época, mas que conservasse, de todos os modos, seu implacável distanciamento da aventura humana, que continue sendo ‘um ímpeto sem começo nem fim, superior a toda origem e a toda meta’” (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 141).

Diante disso, a espiritualidade inerente à ascese kazantzakiana é conduzida mediante uma árdua subida, vivente e combativa, com esse Deus. O tom dessa espiritualidade também pode ser percebido numa pequena passagem de Carta a Greco: “[...] iniciei uma luta para conciliar os inconciliáveis, reconciliar a esperança extrema com o extremo desespero, abrir uma porta para lá da razão e da certeza” (KAZANTZAKI, s/d, p. 319). Mas, como está escrito em Ascese, “talvez a vitória se consolide a cada ação valorosa de nossa parte, talvez todas essas lutas em prol da redenção e da vitória sejam inferiores à natureza da divindade”; por isso, uma vez mais, chegamos àquela máxima: “seja como for, lutamos sem nenhuma certeza e nossa virtude, por não estar segura de recompensa, se reveste de maior nobreza” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 132). Essa postura implica numa espiritualidade bastante incomum, em muitos sentidos, quando comparada com a pregação e interesses religiosos que se revestem com a cara da esperança e do temor dos seres humanos. Por isso: “Não é somente a dor a essência de Deus; tampouco a esperança na vida futura ou

na vida terrena; e muito menos o é a alegria ou o triunfo. Toda religião, erguendo em adoração uma dessas máscaras de Deus, constringe-nos o coração e a mente” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 101). E em Testamento para El Greco, Kazantzákis expressa: “Não, o homem que espera pelo céu ou teme o inferno não pode ser livre. Vergonha caia sobre nós se continuarmos a nos embriagarmos nas tavernas da esperança ou nos celeiros do medo!” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 231). Portanto, retomando o seu epitáfio, podemos dizer que apenas quando não esperamos nada, quando não tememos nada é que somos livres.

Creio que seja interessante notar aqui o quão próximo dessa ideia está o filósofo francês André Comte-Sponville, que ganhou notoriedade nos últimos anos com o pensamento que defende o desespero como superação de uma vida pautada por expectativas: “o desespero, no sentido em que emprego a palavra, não é tristeza, menos ainda o niilismo, a renúncia ou a resignação: é antes o que eu chamo de um gaio desespero, um pouco no mesmo sentido em que Nietzsche falava do gaio saber” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 67). Comte-Sponville parte da fórmula de Espinosa, na Ética63, que diz: “não há esperança sem medo nem medo sem esperança” (ESPINOSA, 1983, p. 203). A partir daí, o filósofo francês considerará a esperança como um obstáculo a ser superado e, nesse sentido, irá propor a inversão radical de seu estatuto, não sendo mais vista como uma virtude – como é no cristianismo, uma das três virtudes teologais junto com a fé e a caridade –, passando por uma crítica que a desmascara como fonte de temor e infelicidade. Comte-Sponville costuma evocar a noção de “alegre desespero”, que consiste em viver o presente, impulsionado pela força alegre do desejo, preferindo sempre a ação à espera, a intervenção ativa à reza, o amor à carência, sem temores nem desencantos. Ele declara:

Crer em Deus é crer que tudo estará bem, amanhã ou depois de amanhã; que, no fundo, vivemos no melhor dos mundos possíveis, e, sobretudo, que depois da morte o essencial estará adquirido.

Ser ateu é o contrário. É pensar que nem tudo estará melhor amanhã, que nada está jamais adquirido nem prometido, enfim, que todas as nossas esperanças só desembocam, no final das contas, no nada. Não é o mais fácil, mas, ainda uma vez, a esperança, o conforto ou a facilidade não são argumentos. É o que Clément Rosset chama de ‘a lógica do pior’: tomemos as coisas pelo pior, mas também pelo mais provável, pois, desse pretenso Deus, não se conhece nada, dessa vida depois da morte, não se conhece nada; o que constatamos é a vida como ela é, e a morte como ela advém.

E, diante desse pior, tentemos viver o melhor de que somos capazes. Tentemos atingir a maior felicidade possível, tentemos amar tanto quanto podemos, tentemos agir tanto quanto podemos! (COMTE-SPONVILLE, 2002, pp. 71-72).

Antecedendo, pois, à reflexão de Comte-Sponville, Kazantzákis sentencia que o ser humano é tão mais digno de ser humano quanto mais estreito for o abraço com o abismo. Mais uma vez recorreremos a Carta a Greco para expor o seu pensamento:

Optemos pois pela visão mais desesperada do mundo e, se acontecer enganarmo-nos e existir alguma esperança, tanto melhor; em todo o caso, a nossa alma nunca cairá no ridículo e não haverá ninguém, deus ou demônio, que possa divertir-se à sua custa, afirmando que ela se embriagou como um fumador de haxixe criando, por ingenuidade e cobardia, paraísos artificiais que dissimulem o abismo. E assim me parece que a fé mais desesperada não só é a mais verídica, como a mais viril; e a esperança metafísica um engodo incapaz de iludir o homem autêntico. É a fé mais difícil aquela que eu considero digna dum homem, que não lamenta, que não suplica, que não mendiga, é essa que eu anseio (KAZANTZAKI, s/d, p. 330).

Como se pode ver há certa semelhança no tom das duas declarações, cuja crítica à esperança, no fundo, é uma mensagem de liberdade e de responsabilidade para os seres humanos. Quanto a isso, Kazantzákis também dirá: “Até agora confiáramos a Deus a inteira administração do mundo. Teria chegado a vez do homem de tomar a si esta responsabilidade” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 231). E é nesse sentido, para promover tal consciência, que a espiritualidade da ascese kazantzakiana se encaminha. Quer dizer, com a esperança colocada sob suspeita e a trágica lucidez da ausência de recompensa, Kazantzákis vai desenvolvendo em Ascese aquilo que poderíamos designar por sua espiritualidade teológica. Nela encontra-se a intenção de substituir um paraíso imaginário por uma realidade incontestável, a morte. De fato, Ascese é o fruto, a síntese dessas aspirações tão humanas e, contudo, tão sobre-humanas, “impossível de realizar a priori [...]; seu sabor é áspero, inesperado, cujas sementes lançadas a todos os ventos têm todo o futuro para madurar” (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 142).

Tal compreensão também indica as marcas da sua visão sobre aquele a quem ele admirava profundamente e que escandalizará a muitos em seu romance A última tentação de Cristo: o Cristo sem a ressurreição é um indivíduo trágico, mas heroico porque superou a última tentação, enfrentou a cruz, olhou para o abismo e deu o salto. Para o escritor, Cristo revelou a todos que a morte é a libertação final do homem, é a sua salvação, que não se deve temê-la ou mesmo desviar-se dela. Kazantzákis tenta mostrar que o destino de Cristo se cumpre na morte e que não é preciso olhar para além dela.

Em Ascese, portanto, o escritor havia assumido o desafio de entrelaçar esse pano de fundo teológico tão sui generis, tão pessoal, com partes também dos ensinamentos do budismo. “De Buda, em contraste com Jesus, a lição mais importante aprendida foi a de

procurar um salvador que pudesse ‘libertar a humanidade da salvação’. A mensagem do Buda é livrar-se do medo e da esperança, abandonando o desejo” (CALIAN, 1971, p. 40). Ainda que posteriormente, em alguns aspectos, tenha rejeitado Buda, o escritor nunca deixou de reconhecer sua dívida com este mestre que foi uma de suas fontes de inspiração para escrever Ascese e que, de algum modo, contribuiu para sua própria salvação, aguçando-lhe a perspectiva sobre a realidade e promovendo sua intensa busca por Deus.

Examinando um pouco mais de perto a metodologia kazantzakiana sempre retornamos à concepção de luta, sempre tão presente em seu desenvolvimento teológico. O combate dá sentido às forças confusas que confrontam o ser humano em sua existência. E a característica desta luta é dialética, uma vez que a natureza humana está enraizada em contradições. Aliás, a batalha dos contrastes pode ser percebida inclusive na elaboração do texto de Ascese, na medida em que se percebe nesta obra o empenho por sintetizar figuras e ensinamentos contrastantes: Cristo, Buda, Nietzsche, Bergson, Lênin, e outros. Estes são os grandes portos da trajetória ascética e estética de Kazantzákis. Todavia, desses encontros tão divergentes ele só reterá aquilo que pode ser útil momentaneamente para criar seu pensamento e elaborar seu credo.

Na realidade, mais que uma síntese de visões sobre a divindade, o que surge em Ascese é uma nova criação, uma nova imagem de Deus. E assim a luta vai se revestindo com um caráter sagrado, pois é um ingrediente primordial nesse modelo de Deus que Kazantzákis vai moldando ao longo da obra. Com efeito, a grandeza do ser humano está em escapar da conformidade para se tornar um criador, um lutador junto com Deus. Neste ponto encontraríamos um reflexo da noção hebraica da criação.

O homem é fruto de uma evolução pela qual Deus lutou; depois da criação do homem, foi preciso que ele atingisse a inteligência que significa, biblicamente, o conhecimento: eis a “queda”. A partir desse instante, o homem criado torna-se não apenas um criador, mas um criador livre, um colaborador de Deus. Ele é cooperador de Deus (I, Cor., 3,9). Assim, Deus é criação eterna. Compete agora ao homem criar; auxiliar a recriação eterna de Deus (IZZET, s/d, p. 8).

Para Kazantzákis, Deus vai cada vez mais se identificando com uma força primordial que impele o ser humano a superar-se. Desse modo, a empresa à qual o ser humano está envolvido é a mesma da divindade que nos pede que o salvemos, e esse pedido de socorro é a raiz do grito interior que nos dá o impulso de partida para chegarmos a transubstanciar a matéria em espírito. E tudo isso quer dizer que a

liberdade de criação e a luta são ingredientes primordiais que constituem os seres humanos e que se interpenetram na elaboração da trajetória para a divinização.

Portanto, divinizar-se significa ser criador, e ser criador significa lutar para ser livre. Então, para alcançar a liberdade, o ser humano deve sempre “ascender”. Retomemos aqui o que Kazantzákis diz sobre a importância do caminho que sobe:

Durante toda a vida tive certeza de uma coisa: que uma estrada, e somente uma, leva a Deus – a ascensão. Nunca a descida ou a estrada horizontal, somente a ascensão. Minha inabilidade em distinguir os conteúdos da palavra Deus com clareza, esta palavra tão manchada e usada pelos homens, fez-me hesitar muitas vezes, mas eu nunca hesitei em olhar a estrada que leva a Deus, ou seja, o topo supremo do desejo do homem (KAZANTZAKIS, 1975, p. 335).

A ascensão será sempre o meio supremo para Kazantzákis. Subir permanentemente, lutar a cada instante para se chegar ao degrau mais alto e quando ali chegar, subir ainda mais alto. O ser humano deve sempre lutar para superar-se, pois, como já foi assinalado, “a virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela liberdade” (KAZANTZÁKIS, 1997, p. 134), já que o triunfo nunca será definitivo, senão uma luta sem fim. Na espiritualidade kazantzakiana o ponto de chegada será também sempre um novo ponto de partida; é o Mistério abissal para onde tudo vai e de onde tudo começa.

Em suma, a espiritualidade que se encontra em Ascese procura reinventar os valores com as cores da contemporaneidade, mas, para reinventar, precisa mergulhar nos valores da Tradição com o espírito de seu tempo, para atingir a essência inspiradora e abstrair-se da forma limitante, na medida em que não ajuda a busca.

Encerraremos com uma passagem que ilustra bem a disposição de espírito que permeia a trajetória da ascese kazantzakiana. O texto que faz ressoar profundamente o sentido místico/poético ao estilo de Kazantzákis nos é dado em Carta a Greco:

Verdadeiramente, nada se parece tanto com o olhar de Deus como o da criança que pela primeira vez vê e cria o mundo. O mundo era dantes um caos, e todas as criaturas, árvores, homens e pedras passavam, inextricavelmente confundidas, diante da vista da criança. Não diante dela: mas nela. Tudo: as formas, as cores, as vozes, os perfumes passavam como relâmpagos, e ela não podia fixá-los, nem ordená-los. O mundo da criança não é feito de barro capaz de resistir; é feito de nuvens, uma brisa fresca sopra nas têmporas da criança e o mundo condensa-se, rarefaz-se e desaparece. Era assim que, antes da criação, o caos devia passar diante dos olhos de Deus (KAZANTZAKI, s/d, pp. 39-40).

Na liberdade, na inocência espiritual – tal qual a inocência apontada no Zaratustra de Nietzsche64 –, se observa o que é essencial e contemplamos o mundo como se fossemos deuses. E talvez seja mesmo essa inocência a mais heroica e a mais mística de todas as lutas. Diante disso, a espiritualidade que desponta em Ascese não se comprometerá com promessas de recompensas e nem de castigos, mas unicamente com a possibilidade de que na luta se renovem nossos olhos virginais, e tudo o mais, vida e morte, seja o que Deus quiser e o que quer que seja Deus.

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No decorrer deste terceiro capítulo procuramos analisar alguns pontos que expressam o teor da espiritualidade contida em Ascese. Para começar foi investigado o