• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese

3.1 Ascese: exercícios espirituais para a afirmação da vida

3.1.2 O amor fati nietzschiano

Para entendermos este conceito em Nietzsche devemos fazer uma breve digressão em torno do seu pensamento. Sabe-se que Nietzsche não é um pensador sistemático, e isso não se deve somente ao estilo específico que adota ou ao tratamento

peculiar que dá a certas questões, como também à recusa explícita dos sistemas filosóficos. Seus principais conceitos não são trabalhados em obras específicas, mas apresentados e ampliados em diferentes obras. Assim, ao tratarmos de um conceito como amor fati estaremos também às voltas com outros conceitos que se inter- relacionam na obra do filósofo, tais como: transvaloração dos valores, eterno retorno, além-do-homem etc.

Ora, em Nietzsche costuma-se reconhecer um projeto fundamental que se refere ao conceito de transvaloração dos valores48. Uma vez anunciada ou proclamada a “morte de Deus” todos os valores em pé, todas as tábuas de valores provenientes da raiz platônico-cristã perdem sua razão de ser, perdem seu fundamento. Desse modo, a transvaloração aparece como uma nova postura, um plano que visa superar os valores arraigados pelo cristianismo e pelas estruturas sociais que deles derivam, é outra visão valorativa cujo critério deve ser a vida mesma concebida como plenitude dionisíaca. Em Nietzsche a transvaloração passa pela erradicação absoluta do cristianismo: “Fui compreendido? Dioniso contra o crucificado...” (NIETZSCHE, 2003, p. 154). Para o filósofo alemão, Dioniso e o Crucificado se relacionam mediante a experiência da dor, porém, sob perspectivas vitais distintas.

Dioniso é a vida mesma, a vida que em sua imanência se constrói e se destrói, com seu duplo movimento de nascimento e morte, de prazer e de dor. O Crucificado, por sua vez, é o símbolo de um sofrimento que aponta para além da vida terrena, para a transcendência (COLOMER, 1990, p. 322-323).

O que realmente incomodava Nietzsche era a renúncia ao corpo, aos sentidos e ao mundo em função de uma salvação num “mais além”, questões postuladas pelo ideal ascético cristão. Para o filósofo alemão esta forma de ascetismo tem por fundamento a rejeição do prazer, o apagamento dos sentidos e, no limite, a negação da própria vida, uma espécie de ânsia virtual em deixar de viver um aqui e agora “imperfeito” e “ilusório” para renascer numa suposta perfeição e na “verdade” de um além. Em outros termos, o ideal ascético era visto por Nietzsche como um empobrecimento da vida, na medida em que recusava os abundantes valores desta em nome de um único valor a ela alheio: um além que só servia para degradar o aquém. Contra isso, o filósofo dispara: “A noção ‘Deus’, inventada como noção antítese à vida – tudo nocivo, venenoso, caluniador, toda a hostilidade mortal contra a vida enfeixada em uma unidade horrível!” (NIETZSCHE, 2003, p. 153).

Por isso, na compreensão de Nietzsche, o ideal ascético cristão faria a apologia de um falso amor fati, que consistiria em suportar – sem amar – os fatos da existência, na esperança de que Deus, enfim, nos livre de todos os fatos, dando-nos uma outra vida. Contrariamente, o ideal dionisíaco aceita a vida em plenitude, em si e por si, nas suas contradições, no seu perene fluir onde nascimento e morte são duas faces de uma mesma moeda. Para Nietzsche, “o maravilhoso fenômeno do dionisíaco” era “uma fórmula da suprema afirmação, um dizer sim sem reserva, mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, mesmo a tudo o que é problemático e estranho na existência” (NIETZSCHE, 1974, p. 32).

Em Nietzsche, o amor fati (amor ao destino) é uma ideia inseparável de sua concepção de eterno retorno. “Sob a égide do eterno retorno, querer será sempre querer o necessário: amor fati. É aqui que está o segredo da superação do niilismo, assim como a dificuldade final da filosofia de Nietzsche: fazer com que coincidam o querer e o destino, a liberdade e a necessidade” (MOURA, 2005, p. 283). Com efeito, amor fati é amar o inevitável, amar o destino, amar o justo e o injusto, o próprio amor e o desamor. Ou seja, ser, antes de tudo, um forte para amar a vida como ela é, ainda que com os sofrimentos. Não se trata de amar o sofrimento, mas a vida que não existe sem o sofrimento. Trata-se de um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como ele é: “a grande participação panteísta em alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais terríveis e problemáticas propriedades da vida” (NIETZSCHE, 1974, p. 401).

O termo aparecerá em A gaia ciência de maneira bastante clara no seguinte trecho:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001, p. 188).

O amor fati foi usado por Nietzsche em Ecce homo no sentido de designar a “fórmula para a grandeza do homem”, isto é: “não querer ter nada de diferente, nem para frente nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário –, mas sim amá-lo” (NIETZSCHE, 2003, pp. 67-68). Essa é a formula para o homem se tornar o além-do-homem. A grandeza do ser humano, sua superação, está, pois, em converter o impedimento em meio, o obstáculo em estímulo e, dessa maneira,

poder afirmar com alegria o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer sim à vida. Portanto, nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva, mas amor; nem lei, nem causa, nem finalidade, mas fatum (destino).

Na concepção nietzscheana de amor fati se acha reunido o que aparentemente não se pode reunir: a atividade em vista de realizar o que ainda não é e a aceitação amorosa do que advém. Em vez de esperar que um poder transcendente justifique o mundo, o ser humano tem de dar sentido à própria vida; e em vez de aguardar que venham redimi-lo, deve amar cada instante como ele é. Por isso, o amor fati, como afirmação incondicional da vida, contrapõe-se a uma prática ascética que seja a da renúncia, da negação, da oposição ao mundo.

Estando agora de posse do conceito de amor fati e dos seus possíveis desdobramentos, veremos como este conceito pode servir de chave de leitura para se compreender o significado da ascese kazantzakiana.