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Capítulo 2 – Ascese: Os Salvadores de Deus: trajetória de uma escrita em busca de

2.1 Os antecedentes e as motivações da composição de Ascese

2.1.2 A revisão de 1928

38 “A Prática” era a seção final da primeira versão de Ascese, antes que lhe fosse acrescida a seção “O

Silêncio” na revisão de 1928.

39 Essas três bem-aventuranças não aparecem mais na versão disponível para nós hoje. Mas elas são

Ao nos aproximarmos de Ascese, e conforme vamos mergulhando no estudo desta obra, vamos descobrindo a sua trajetória por trás do desenvolvimento e da fixação do texto. Como foi visto, em sua passagem por Viena, Kazantzákis já havia esboçado a sua estrutura. Mas é depois, em Berlim, entre o final de dezembro de 1922 e abril de 1923, que ele efetivamente escreverá a primeira versão da obra. E será ainda neste ano de 1923 que Ascese conhecerá a sua primeira tradução para o alemão feita pelo helenista Karl Dietrich, e nessa forma ele também a enviará para a União Soviética. Na Grécia, o opúsculo só aparecerá publicado em julho-agosto de 1927, em dois números sucessivos da revista ateniense Anayénnisi (Renascença).

Contudo, um ano depois, em 1928, numa de suas viagens para a Rússia40, Kazantzákis resolve fazer uma revisão no final de Ascese e lhe acrescenta, assim, o último capítulo, intitulado “O Silêncio”. A este respeito, em El disidente, Eléni nos informa: “Ascese, o Credo que Kazantzákis havia começado a escrever em Viena, tomaria forma definitiva em Berlim. Seria a ele acrescentado apenas um capítulo, o último, O Silêncio, que redigiu anos mais tarde, durante uma viagem a Sibéria” (KAZANTZAKI, 1974, p. 75).

A decisão de revisar o final do opúsculo e acrescentar-lhe O Silêncio ocorre, portanto, em sua última viagem para U.R.S.S. que durou exatamente um ano (abril de 1928 até abril de 1929) e que acabou por ser um dos mais importantes períodos de seu desenvolvimento, concluindo, assim, um ciclo que havia se iniciado em 1925, onde seu ativismo foi diminuindo na medida em que seu subjetivismo foi se reafirmando. O enfraquecimento do ativismo de Kazantzákis neste período se deve, em muito, por aquilo que ele viu na Rússia e interpretou como alienação daquele povo, ou seja, por achar que os soviéticos não conseguiam enxergar nada além dos objetivos práticos, e, por isso, não estavam prontos para o seu metacomunismo. Em outras palavras, depois de um primeiro entusiasmo com o comunismo, Kazantzákis vai pouco a pouco, ao longo de suas viagens para a Rússia, se dando conta que o regime comunista forma um tipo de pessoa que não somente lhe é alheio, mas que lhe repugna por seu materialismo grosseiro, por sua estreiteza de pontos de vista, por sua total incapacidade de conceber a vida interior.

Desse modo, tal desapontamento na área de aplicação de seu credo o leva para longe da vida de participação direta nas lutas do povo. “A forma sagrada da teoria é a

ação, mas se a ação só encontra frustração, a teoria sempre pode ser reelaborada no papel” (BIEN, 2007, p. 78). Além disso, seu interesse pelo divino se volta cada vez mais para a ideia de um “deus” que é indiferente às preocupações humanas.

Tais fatores levariam Kazantzákis à revisão de Ascese. Desse modo, na versão revisada o conteúdo sobre o silêncio recebe algumas mudanças e acaba por se separar, tornando-se um capítulo à parte. Sobre isso, o escritor comentará: “Estou corrigindo Ascese. Adicionei um pequeno capítulo: ‘Silêncio’ – uma bomba que explode totalmente Ascese. Mas explodirá os corações apenas de poucas pessoas” (apud OWENS, 1998, p. 332). As “bem-aventuranças” da primeira versão também são alteradas, e o conceito de silêncio recebe, então, um significado estendido. O texto revisado de 1928 só será efetivamente publicado em Atenas em 1945, e foi dedicado por Kazantzákis ao seu fiel amigo e conterrâneo cretense Pendélis Prevelákis. O título que anteriormente era Askitikí (Ascese) passava agora a ser Askitikí: Salvatores Dei (Ascese: Os Salvadores de Deus).

Não obstante, é preciso lembrar que entre os anos da revisão e da publicação de Ascese, Kazantzákis escreve, em 1936, o romance O jardim dos rochedos e em cuja narrativa incorporou, sob a forma de interpolações sucessivas, boa parte do texto de Ascese. O romance foi escrito diretamente em francês e tal como já havia feito em outro romance, Toda-Raba (1929), onde nos passa a visão de sua experiência na Rússia, Kazantzákis quis dar agora em O jardim dos rochedos a quintessência de suas experiências no Japão e China, países por onde havia empreendido uma viagem em 1935. É a época em que os japoneses preparam a invasão da China41 e a obra nos leva por ambos os países, na companhia de personagens significativos de um e outro lado. Assim, entre personagens condenados a um destino ameaçador, a inquietação da existência, o mal e o sofrimento acabam se convertendo em protagonistas de um relato em que a ação muitas vezes fica suspensa e com reflexões repletas de lirismo. Segundo Aziz Izzet,

O jardim dos rochedos é uma espécie de laboratório em que todas as

experiências do autor são submetidas duramente à prova. No espírito de Kazantzákis, se tratava sem dúvida de por Ascese ao alcance do leitor, mas também, ao mesmo tempo, de comprovar a solidez dos resultados de sua própria ascese (apud KAZANTZAKI, 1974, p. 270).

41 Ou seja, trata-se do contexto da Segunda Guerra Sino-Japonesa travada de 1937 a 1945 entre a China e

o Japão, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos conflitos permanentes entre as duas nações existirem desde 1931, chamados de “incidentes”, a guerra em larga escala começou em julho de 1937 e só terminou com a rendição incondicional do Império Japonês aos Aliados em setembro de 1945.

Então, ao incorporar parte de Ascese no romance, Kazantzákis imaginava, ao que parece, atingir duas finalidades: tornar mais acessível o complexo livro com sua visão trágica, dando-lhe uma espécie de justificação ou de uma explicação romanesca, e ao mesmo tempo verificar, de certo modo, a solidez de sua experiência espiritual, pondo-a a prova num mundo em fermentação, fragmentado entre a teoria e a prática, entre o passado com seus mortos e um futuro com seus delírios, que o presente ambíguo e violento preparava. Além disso, parece ter havido também um fator prático que não pode ser desconsiderado. Ora, ao incluir Ascese neste livro escrito diretamente em francês, o autor esperava atingir um número maior de leitores e, com isso, torná-lo famoso na Europa, redimindo seu fracasso ao ser publicado na Rússia, Alemanha, França e Inglaterra.

Costuma-se mencionar ainda como versões alternativas: a de Octave Merlier, uma tradução francesa publicada em Atenas, em 1951, e na revista Les Quatre Dauphins, em Aix-en-Provence, em 1957, que apresenta certas diferenças com texto grego e com a versão francesa incorporada no romance, mas que contou com a colaboração parcial de Kazantzákis. A outra versão é a que foi estabelecida também em francês por Aziz Izzet, redigida depois da morte do escritor grego e publicada em 1959, e que levou em conta o máximo de proximidade com o texto grego, sem perder de vista o uso que Kazantzákis lhe atribuíra no seu romance, considerando quando possível o texto de Merlier. Na elaboração de sua versão, Izzet contou com as opiniões da viúva do escritor, Eléni.

Resta dizer também que das edições de Ascese que nos chegaram aqui no Brasil, primeiramente contamos com a de Aziz Izzet, traduzida por Ivo Barroso e publicada pela editora Record, sem data precisa. Depois, em 1997, foi a vez de José Paulo Paes nos brindar com a sua tradução direta do texto grego da versão revisada. Esta tradução veio acompanhada com uma valiosa introdução de Paes, e foi publicada pela editora Ática. E é com esta edição que estamos trabalhando em nosso estudo. Feito tais esclarecimentos, nosso objetivo agora é apresentar um resumo da obra em questão.