• Nenhum resultado encontrado

Uma escrita em busca de redenção. Nikos Kazantizákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascene os salvadores de Deus

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Uma escrita em busca de redenção. Nikos Kazantizákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascene os salvadores de Deus"

Copied!
144
0
0

Texto

(1)

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UMA ESCRITA EM BUSCA DE REDENÇÃO

Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade

em

Ascese Os Salvadores de Deus

Por

José Renato dos Santos

São Bernardo do Campo

(2)

JOSÉ RENATO DOS SANTOS

UMA ESCRITA EM BUSCA DE REDENÇÃO

Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade

em

Ascese Os Salvadores de Deus

Dissertação apresentada à banca examinadora em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do grau de Mestre, sob orientação do professor Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro.

(3)

A dissertação de mestrado sob o título “Uma escrita em busca de redenção. Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese Os Salvadores de Deus”, elaborada por José Renato dos Santos, foi apresentada e aprovada em 20 de fevereiro de 2014, perante banca examinadora composta por: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg (Titular/UMESP) e Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé (Titular/PUC-SP).

____________________________________________ Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

___________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

(4)

Três espécies de almas, três orações:

1) Sou um arco em Tuas mãos, Senhor. Estenda-me para que não apodreça. 2) Não me estenda demais, Senhor. Quebrarei.

3) Estenda-me Senhor, e quem se importa se eu quebrar!

(5)

Agradecimentos

Michele – pelo apoio, carinho e companheirismo constantes;

CAPES – por ter me concedido bolsa integral e possibilitado, assim, que a presente pesquisa fosse realizada;

Ao professor Claudio de Oliveira Ribeiro – pelo comprometimento atencioso e sempre tão amigável com a orientação;

À Carolina Bernardes – pesquisadora e incentivadora dos estudos de Kazantzákis no Brasil;

Aos professores Etienne Alfred Higuet e Rui de Souza Josgrilberg – que estiveram presentes em minha qualificação e deram valiosas sugestões;

Ao professor Marcelo Furlin e ao grupo de pesquisa Relegere – que proporcionam encontros e discussões tão agradáveis sobre literatura;

Às amigas Ivna e Vera – companheiras de descobertas na relação entre Religião e Literatura;

(6)

SANTOS, José Renato. Uma escrita em busca de redenção. Nikos Kazantzákis e a espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese-Os Salvadores de Deus. São Bernardo do Campo: UMESP, 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), 141f.

Resumo

O escritor grego Nikos Kazantzákis (1883-1957) carrega as marcas de poeta e de pensador, e cuja obra é mais que expressão literária: revela sua busca por redenção. Inserido nesta perspectiva está o livro Ascese-Os Salvadores de Deus – obra fundamental para compreender o pensamento do autor e que descreve o esforço que o ser humano deve empreender para adquirir uma nova concepção de vida. A presente pesquisa pretende investigar os elementos constitutivos desse livro e analisar sua profunda espiritualidade. Ao longo da obra termos como Deus, liberdade e luta se interpenetram e se confundem, formam um complexo conceitual e são constantemente reinterpretados. Complexidade é a sua marca: composta numa forma poética, nela interage os discursos literário, filosófico e religioso, constituindo, assim, uma tentativa de conciliação entre diversos pontos de vista. Dentre as muitas influências é possível vislumbrar indícios das filosofias de Nietzsche e de Bergson. Sua trajetória é uma ascese da afirmação da vida e do empenho por reelaborar incessantemente um novo rosto para Deus. Na perspectiva de Kazantzákis, Deus é sentido a partir de uma espiritualidade da luta e da liberdade. Uma luta permanente contra a imobilidade e em direção à espiritualização da vida: o desafio de “transubstanciar a matéria em espírito”. É o sentido da criação/liberdade no qual o ser humano deve lutar para salvar Deus.

(7)

SANTOS, José Renato. The written in search of redemption. Nikos Kazantzakis and spirituality of struggle and freedom in Ascese-Os Salvadores de Deus. São Bernardo do Campo: UMESP, 2014.

Abstract

The Greek writer Nikos Kazantzakis (1883-1957) carries the marks of a poet and thinker, and whose work is more than literary expression, reveals his search for redemption. Inserted in this perspective is the book Ascese-Os Salvadores de Deus – this work is key to understanding the author's thought and describes the effort that the human being must take to acquire a new outlook on life. The present research intends to investigate the constituent elements of this book and analyze his deep spirituality. Along of this work terms as God, freedom and struggle be interpenetrating and be confused, make a complex conceptual and are constantly reinterpreted. Complexity is your mark: composed in a poetic form, it interacts with the literary, philosophical and religious discourses, thus constituting an attempt to reconcile different points of view. Among the many influences can discern evidence of the philosophies of Nietzsche and Bergson. His journey is an ascent of the affirmation of life and commitment to continually redesign a new face to God. At the point of view by Nikos Kazantzakis God is feeling from now of the spiritually of freedom and struggle. A permanent struggle against immobility in direction the spiritualization of life: the challenge of “Transubstantiate the matter in spirit”. This is the sense of creation/freedom in which being human must struggle to save God.

(8)

Sumário

Introdução ...10

Capítulo 1 – Vida e obra de Kazantzákis: a expressão de um “Grito”...14

1.1Uma vida em constante movimento: viagens e criação literária incessante...15

1.2Deus, luta e liberdade: o eixo temático das obras de Kazantzákis...24

1.2.1 Nas obras anteriores a Ascese...24

1.2.2 Na Odisseia – ampliação e transposição épica de Ascese...28

1.2.3 Nos romances tardios e no “relatório final” (Testamento para El Greco)...32

1.3 Considerações gerais sobre o pensamento filosófico e religioso de Kazantzákis...39

Capítulo 2 – Ascese: Os Salvadores de Deus: trajetória de uma escrita em busca de redenção...50

2.1 Os antecedentes e as motivações da composição de Ascese...51

2.1.1 Um credo filosófico-religioso e político – o “metacomunismo”...55

2.1.2 A revisão de 1928...61

2.2 Resumo das seções de Ascese...64

2.3Apontamentos para uma caracterização literária de Ascese...71

2.3.1 A junção literário-filosófica em Zaratustra: um modelo para Ascese...72

2.3.2 A circularidade entre prosa e poesia e a questão dos personagens em Ascese...75

Capítulo 3 – A espiritualidade da luta e da liberdade em Ascese...84

3.1 Ascese: exercícios espirituais para a afirmação da vida...85

3.1.1 Sobre os sentidos e as finalidades da áskêsis (ascese)...85

3.1.2 O amor fati nietzschiano...88

3.1.3 A ascese kazantzakiana: amor fati, amor à vida...90

3.2 A face imanente e evolucionária de Deus...94

3.2.1 Élan vital e união mística com a criação em Bergson...95

3.2.2 Uma figuração místico-poética do élan vital bergsoniano em Ascese...100

(9)

3.3.1 O silêncio kazantzakiano e o Nirvana...107

3.3.2 Uma abordagem a partir da mística cristã...110

3.3.2.1 Bebendo nas fontes da tradição apofática...111

3.3.2.2 O comentário de Kazantzákis acerca do “Sequer este Um Existe”...117

3.4 Salvatores Dei: uma espiritualidade da luta e da liberdade...119

Considerações Finais...128

(10)

Introdução

Nikos Kazantzákis (1883-1957) foi um homem de letras: romancista, poeta, dramaturgo, jornalista, advogado, tradutor. Uma personalidade cosmopolita, conhecedor de outras culturas. Viajante incansável. Percorreu extensamente a Europa, a Ásia e o Extremo Oriente. Sua vasta obra expressa uma concepção de mundo terminantemente pessoal e inteiramente livre das ataduras do academicismo. Um asceta moderno, de grande inquietude intelectual, peregrino de insaciável curiosidade e ávido de experiências. Um homem que se dedicou, e não somente por meio da criação literária, a fazer valer a atitude do ser humano frente a si mesmo e à sociedade, imerso em todos os acontecimentos essenciais de sua época. Em suma, Kazantzákis não foi apenas “um dos maiores escritores do século XX, mas um dos maiores espíritos do seu tempo” (BUENO, 2007, p. 1).

Enquanto no Brasil ainda nos deparamos com a falta de informações a respeito de Kazantzákis e a ausência quase absoluta de estudos sobre sua obra, em outros países, como Chile e Estados Unidos, por exemplo, o escritor vem sendo consideravelmente pesquisado. Mas, de um modo geral, a impressão que temos é a de que se trata de um autor a ser redescoberto neste início de século1. Diante disso, o juízo feito pelo escritor inglês Colin Wilson, no seu livro de 1962, The Strength to Dream, pode trazer ainda algum significado:

O nome de Kazantzákis permanece quase totalmente desconhecido. É um caso curioso, talvez devido ao fato de que escrevesse em grego e que os leitores modernos não esperam descobrir um escritor grego importante. Até seu nome tem uma consonância desalentadora. Se tivesse escrito em russo e se chamasse Kazantzovski, sem dúvida alguma suas obras seriam universalmente conhecidas e admiradas, (...). Há uma espécie de tragédia nisso, pois se trata de um escritor que poderia situar-se junto aos gigantes do século XIX, Tolstói, Dostoiévski, Nietzsche (com o qual tem afinidades) ... (apud KAZANTZAKI2, 1974, pp. 376-377).

1 Nesse sentido foi realizado em março de 2007, na New York University, o Simpósio intitulado: “Why

Should We Read Kazantzakis in the Twenty-first Century?” (Por que devemos ler Kazantzákis no século XXI?), em homenagem ao cinquentenário da morte de Kazantzákis.

2 No decorrer do nosso texto o nome do escritor, quando citado, aparecerá com pequenas diferenças na

(11)

O escritor inglês não está se referindo somente aos principais romances kazantzakianos que levaram, por exemplo, Thomas Mann a comparar o escritor grego aos grandes prosistas russos. De fato, a influência de Dostoiévski e Tolstói é perceptível no escritor grego. E a de Nietzsche é muito clara. Kazantzákis nunca escondeu a veneração que sentia pelo filósofo alemão e o apontou reiteradas vezes como uma das personalidades que mais marcou o seu espírito. Como poeta e criador que era, talvez a única regra que seguiu tenha sido a máxima de Zaratustra: “Escreve com sangue e descobrirás que o sangue é espírito” (NIETZSCHE, s/d, p. 43). Assim, com tal disposição, Kazantzákis criou sua obra. Dentro dela ocupa um lugar especial o opúsculo

Ascese: Os Salvadores de Deus. E talvez sejam as características desta obra que influenciaram com maior intensidade no juízo de Wilson.

De difícil classificação, a obra Ascese traz em si as marcas do literário, do filosófico e do religioso. Pode-se dizer que em sua breve extensão ela condensa um excelente resumo do pensamento do autor e da sua atitude diante da vida. Este livro, em seu esforço por “transubstanciar a matéria em espírito”, por dar forma ao que não a tem – por tornar sensível o impalpável – parece desafiar o impossível. Suas imagens estalam fulgurantes, incendiando num instante todo o mundo que nos cerca com seus rios, suas árvores, seus animais, e fazendo, em seguida, tudo desaparecer, deixando apenas uma sensação de angústia, de desconhecido, de perigo e de trevas. No entanto, o poeta em Kazantzákis socorre ao místico: a seus êxtases, a seus temores, a suas iluminações ele deu contorno e corpo. As imagens impressionantes de Ascese provocam um surpreendente sentimento de presença. Nesta obra, a proximidade com o sagrado também se traduz na imagem de um Deus todo coberto de feridas, mas que, ainda assim, luta conosco.

(12)

presente trabalho faremos desde abordagens aproximativas a partir de elementos biográficos, passando pelo aporte de uma análise literária da obra Ascese e indo até a investigação filosófico-religiosa da mesma para compreender sua espiritualidade e dimensão mística.

O trabalho se divide da seguinte forma: no primeiro capítulo faremos uma abordagem da vida, da obra e do pensamento de Nikos Kazantzákis, uma vez que o autor em questão é pouco conhecido no Brasil, e por isso parece-nos que esta primeira aproximação se faz necessária. A vida e a época de Kazantzákis foram bastante movimentadas e influenciaram diretamente na sua criação literária. Neste capítulo, portanto, mostraremos que os temas fundamentais que percorrem toda a obra do escritor grego giram em torno de Deus e da liberdade, e que a densidade filosófica com a qual ele os pensará se revelará profundamente atual.

Já no segundo capítulo, buscaremos maior familiaridade com a obra Ascese: Os Salvadores de Deus. Será percorrida a trajetória da sua composição, insinuada por nós como uma escrita em busca de redenção. Esta etapa do estudo se dará, primeiramente, por meio da análise do contexto, das possíveis motivações e influências que cercam a obra. Depois, apresentaremos um resumo descritivo do texto, e, por fim, partindo do exemplo do Zaratustra de Nietzsche, mais especificamente da relação entre literatura e filosofia, e também sob a perspectiva da prosa poética, faremos alguns apontamentos com a intenção de apresentar a característica literária de Ascese.

No terceiro capítulo, examinaremos a espiritualidade sustentada pela obra. De acordo com nossa hipótese tal espiritualidade se apoia na busca de um Deus que é a expressão da luta e da liberdade, ou, da liberdade em luta. Neste ponto, portanto, destacam-se alguns aspectos da dimensão religiosa de Ascese. Assim, o significado da “ascese” kazantzakiana se constituirá numa perspectiva de afirmação da vida e cujo embasamento para tal leitura nós o tomaremos do conceito de amor fati em Nietzsche. Por sua vez, a imagem de Deus enquanto um contínuo fluir ascendente será interpretada a partir do élan vital de Bergson. A seção final de Ascese, intitulada “O Silêncio”, poderá ser vista numa breve relação com o budismo, mas, principalmente, a interpretaremos do ponto de vista da mística cristã em sua vertente apofática. Enfim, em todos esses aspectos a luta e a liberdade aparecerão como motivos que atravessam e alimentam a espiritualidade proposta por Kazantzákis.

(13)
(14)

Capítulo 1 – Vida e Obra de Kazantzákis: a expressão de um

“Grito”

Toda minha vida é um grito e toda minha obra a interpretação deste grito

Nikos Kazantzákis

Reconhecido como o maior romancista da Grécia, Kazantzákis aparece entre os grandes escritores do século XX. Desde os anos de 1950 sua obra conheceu uma rápida e ampla difusão, chegando a ser traduzida para dezenas de idiomas, tornando-se o escritor grego contemporâneo mais traduzido. Seus romances, em especial O Cristo Recrucificado, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás e A Última Tentação de Cristo, contribuíram e muito para esta difusão3. Mas seus romances são apenas parte de uma produção muito extensa e que praticamente abrange todos os gêneros literários. A obra de Kazantzákis inclui mais de uma dezena de peças teatrais, além de livros (relatos) de viagens, da sua autobiografia romanceada (Testamento para El Greco), da série de 21 “Cantos” ou “Elegias” em terza rima dedicada àqueles que o escritor considerava guias de sua alma, e de uma epopeia moderna, a Odisseia. Compôs também opúsculos e ensaios filosóficos, tais como Ascese,Simpósio e a tese sobre Nietzsche na Filosofia do Direito e do Estado. Ele escreveu ainda livros para crianças, roteiros para cinema e foi tradutor de grandes obras, vertendo para o grego moderno a Ilíada e a Odisseia, A Divina Comédia, os Diálogos de Platão, obras de Nietzsche, Bergson, William James, Goethe, Shakespeare, e um grande número de poetas espanhóis e russos.

Trata-se, certamente, de uma obra grandiosa e de inestimável valor para a literatura mundial. Entretanto, cabe aqui dizer: Kazantzákis é pouquíssimo conhecido em território brasileiro. Quando se pergunta às pessoas, a resposta na maioria das vezes é negativa. Diante deste quadro, que se completa com a quase absoluta escassez de estudos sobre este escritor no Brasil, creio que se faz apropriado e relevante traçar um breve seguimento da vida e da obra deste autor para que possamos conhecê-lo um pouco

3 Estas três obras também receberam adaptações para o cinema. A este respeito faremos algumas

(15)

melhor4. Aliás, no caso de Kazantzákis, sua vida não se separa de sua obra, pois há uma similitude quase absoluta entre o homem e o escritor. Com efeito, neste primeiro capítulo nossa intenção será: 1) ressaltar alguns fatos e algumas datas importantes com o objetivo de contextualizar a vida e a obra de Kazantzákis; 2) destacar de dentro da sua produção literária algumas obras com o objetivo de sinalizar o eixo de suas preocupações temáticas; e 3) evidenciar o alcance do seu pensamento filosófico e religioso. Dessa forma, a partir de um contato prévio com o autor, sua obra e seu pensamento, seremos conduzidos, nos capítulos subsequentes, a um estudo mais detalhado e voltado para o objeto de nosso estudo, a obra Ascese Os Salvadores de Deus.

1.1 Uma vida em constante movimento: viagens e criação literária incessante

Nikos Kazantzákis nasceu em Candia, a atual Heráklion, capital da ilha grega de Creta, em fevereiro de 1883, ainda durante o domínio turco que se estendia desde 1669. Foi o primeiro dos quatro filhos do casal Maria e Michelis Kazantzákis. Seu pai, o

4 Com relação a este aspecto da falta de conhecimento e de estudos no Brasil sobre Kazantzákis é

necessário fazer algumas menções. Nesse sentido, ressaltamos o nome de José Paulo Paes, respeitado poeta, crítico literário, tradutor, e, além de apresentar dois ensaios sobre Kazantzákis em Poesia Moderna da Grécia e em Gregos e Baianos, é responsável pela tradução direta do grego de Ascese Os Salvadores de Deus e de uma valiosa introdução a esta obra, publicada em 1997 pela Editora Ática (edição utilizada por nós como referência neste trabalho). No âmbito da pesquisa acadêmica destaca-se o nome de Lucília Maria Soares Brandão que desenvolveu a pesquisa, para obtenção do título de mestre, A função do épico na obra de Kazantzákis (1996, UFRJ), e para a obtenção do título de doutor, De Homero a Kazantzákis: uma viagem através da epopéia grega (2001, UFRJ). Com relação a estudos centrados em Ascese, aparece o nome de Carolina Dônega Bernardes com a dissertação de mestrado Multidiscursividade em Ascese Os Salvadores de Deus, de Nikos Kazantzákis (2004, UNESP-Araraquara). Esta mesma pesquisadora defendeu em 2010 sua tese doutoral intitulada A Odisseia de Nikos Kazantzákis: epopeia moderna do heroísmo trágico (UNESP-São José do Rio Preto) e publicada em 2012 pela editora Cassará (Primeira e única publicação, até o momento, de um estudo de fôlego sobre Kazantzákis no Brasil). No que se refere à publicação das obras de Kazantzákis em nosso país é preciso dizer que (além de Ascese) apenas os seus grandes romances chegaram até nós. Merecem destaque os que foram reeditados nos últimos anos aqui no Brasil. Um deles, no ano de 2002, foi o romance biográfico de São Francisco de Assis, O Pobre de Deus (Editora Arx), que recebeu nova tradução, diretamente do grego, de Ísis Borges Belchior da Fonseca. Em 2011, foi a vez de seu mais aclamado e talvez mais conhecido romance, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás (Editora Grua), também com tradução direta do grego, por Marisa Ribeiro Donatiello e Silvia Ricardino. E agora, em 2013, com mais de meio século de atraso foi publicada pela primeira vez O Capitão Mihális: Liberdade ou Morte (Editora Grua), tradução direta de Silvia Ricardino. Também em 2013, graças a um site de financiamento coletivo (Catarse), a editora Cassará arrecadou fundos para custear uma tradução mais fiel e uma nova edição da obra Testamento para El Greco, cujo lançamento está previsto para junho de 2014.

(16)

“Capitão Michelis”, como gostava de ser chamado, era um homem calado e com olhar severo, temido e respeitado pelos vizinhos no vilarejo de Heráklion. De acordo com Nikos, apenas uma vez na vida lhe dirigiu palavras de aprovação. As palavras foram: “Você não desgraçou Creta [...]” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 27). Tal “elogio” ocorreu por ocasião de uma premiação concedida ao pequeno Nikos na escola comunal, no período em que a família havia se transferido para a ilha de Naxos. A mãe, Maria, diferente do pai, era uma pessoa amável e, nas ocasiões em que seu marido se ausentava, abria-se em doces sorrisos para os filhos. Ensinava-os a temer um Deus responsável por tudo o que era bom para os homens, mas que também os punia devido aos seus pecados.

Diante da diferença de temperamento do caráter de seus pais é possível imaginar as dificuldades e os conflitos que atuaram na formação de Kazantzákis, algo, aliás, que anos mais tarde, em Testamento paraEl Greco, ele expressará da seguinte maneira:

Intimamente me olho e estremeço. Do lado paterno meus ancestrais eram piratas sanguinários no mar, chefes guerreiros em terra. Não temiam nem a Deus nem aos homens. Do lado materno, eram amáveis, insípidos camponeses que se debruçavam confiantes sobre a terra de sol a sol, semeavam, esperando com fé a chuva e o sol, ceifavam. E na tarde do dia sentavam-se no banco de pedra em frente às suas casas, de braços cruzados, entregando suas esperanças a Deus.

Fogo e terra. Como poderia eu harmonizar estes dois ancestrais combativos no meu interior? (KAZANTZAKIS, 1975, p. 22).

Cursava ainda os primeiros anos do ensino primário, em 1889, quando irrompe uma das inúmeras revoltas dos cretenses contra o domínio turco. Durante alguns meses a família Kazantzákis deixou Creta e se refugiou em Pireu, um município vizinho a Atenas. Entretanto, a experiência de testemunhar os constantes atos heroicos da luta de seu povo para libertar a ilha da ocupação turca deve ter deixado marcas em Kazantzákis, e, possivelmente, foi o que desencadeou mais tarde a sua obsessão com o problema da luta, da liberdade e do culto ao herói.

(17)

literatura uma espécie de refúgio não só para a brutalidade da sociedade que o cercava, mas também para entender duas novas teorias apresentadas por seu professor de física e que haviam lhe abalado profundamente. Em Carta a Greco5 ele as descreve assim:

O primeiro segredo, atroz, era este: a Terra não é, como julgávamos, o centro do Universo; [...] o nosso planeta não passa de um astrozinho insignificante, atirado para um canto da galáxia, e gira servilmente em redor do Sol. A coroa real caíra da cabeça da mãe Terra. [...].

Esta foi a primeira ferida; e a outra: que o homem não é a criatura querida, privilegiada, de Deus, que Deus não lhe insuflou, não lhe deu uma alma imortal: que ele é, como os outros, um anel da cadeia infinita dos animais, netos, bisnetos do macaco. E que se rasparmos um pouco a pele, se cavarmos na nossa alma, encontraremos por baixo o nosso avô, o macaco (KAZANTZAKI, s/d, p. 107).

Diante desses dois “segredos terríveis” revelados pelo professor de física, o escritor confessa: “Nunca mais, desde então, as feridas que eles abriram em mim cicatrizaram por completo” (KAZANTZAKI, s/d, p. 107).

Ao concluir os estudos secundários, Kazantzákis deixa sua ilha natal para ir morar em Atenas, no outono de 1902, e lá se inscreve na Faculdade de Direito. Agora vivia na capital e tinha um maior acesso ao conhecimento e à cultura. Como sempre seus resultados enquanto estudante eram ótimos, porém, os anos passavam e suas inquietações permaneciam. São anos de revolta, solidão e desespero. “Meu coração chora quando recordo aqueles anos que passei como estudante na Universidade de Atenas. Embora olhasse, nada via” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 94). Como consolo para suas angústias existenciais e inquietudes ideológicas dedica-se à produção literária e, no mesmo ano em que se diplomou pela Faculdade de Direito, em 1906, escreve suas primeiras obras: o ensaio A doença do século, assinada com o pseudônimo Karma Nirvana; o romance em forma de diário O lírio e a serpente, e a obra teatral Amanhece, ambos com o mesmo pseudônimo. Com esta peça, no ano seguinte, sua vocação literária já dava, pois, sinal de si, ao ser premiada num concurso de arte dramática, na Universidade de Atenas.

Em1907, Kazantzákis começou a trabalhar como cronista no jornal Acrópoles de Atenas. Em suas crônicas usa o pseudônimo Akritas, fazendo alusão ao lendário herói de um poema épico bizantino6. E em outubro do mesmo ano decide ir para Paris, onde

5Carta a Greco (edição portuguesa)e Testamento para El Greco (edição brasileira) referem-se à mesma

obra de Kazantzákis: Anaforá ston Gréko. Na maioria das vezes citarei a edição brasileira. A edição portuguesa será utilizada por mim quando entender que o texto desta está mais bem colocado.

(18)

iria continuar seus estudos de Direito na Sorbonne. Estando lá, também teve a oportunidade de acompanhar o ciclo de palestras de Henri Bergson no Collège de France. Sobre a filosofia de Bergson, reconhecidamente uma influência marcante sobre suas concepções de vida, Kazantzákis escreverá alguns anos depois um longo ensaio. Outra forte influência veio dos dias e noites que passara encerrado na Biblioteca Sainte-Geneviève: um encontro com o livro Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Sobre esse encontro ele fará a seguinte declaração: “Este foi um dos momentos decisivos da minha vida. [...]. Esperando por mim estava o Anticristo, aquele guerreiro fogoso inteiramente coberto de sangue” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 221). Em 1909, Kazantzákis conclui sua tese doutoral que versou justamente sobre a filosofia do Direito e do Estado em Nietzsche. Neste mesmo ano ele viaja brevemente pela Itália e regressa a Creta. Publica, então, sua tese sobre Nietzsche; o ensaio A ciência está falida? e a peça dramática Comédia. Tragédia em um ato. Neste drama são discutidas questões profundas em torno de inquietudes existenciais.

A partir de 1910 também passou a se dedicar profissionalmente ao trabalho de tradutor, vertendo para o grego, além de Bergson e Nietzsche, autores como Willian James, Goethe e Darwin. Mais tarde, Kazantzákis “voltar-se-ia para um tipo de tradução de muito maior dificuldade técnica. [...] à tradução de poesia, campo em que enriqueceu o demótico com magistrais versões não apenas dA Divina Comédia e do Fausto como igualmente da Ilíada e da Odisseia” (PAES, 1985, p. 152).7

Em 1911, Kazantzákis casou-se com Galatea Alexiou, uma jovem escritora de Creta que ele havia conhecido um ano antes. Juntos passaram a escrever livros infantis, bem como compêndios escolares. A essa altura de sua vida, Nikos já estava profundamente engajado na campanha para a adoção do demótico como língua oficial do país, em substituição ao katharévousa, um idioma purista artificialmente criado por eruditos.8 A língua popular foi objeto de admiração e de cultivo especial por Kazantzákis desde seus anos de juventude. O escritor colaborou na revista Numás,

7 Paes ainda acrescenta: “... a quem possa estranhar essas traduções do grego antigo para o grego

moderno, que embora este conserve o vocabulário essencial daquele, o grande número de empréstimos estrangeiros e a simplificação de sua estrutura gramatical afastaram-no a tal ponto da língua-tronco que os gregos de hoje não entendem o grego de outrora, a menos que o tenham estudado quase como se estuda uma língua estrangeira”.

8 O demótico era a língua de uso diário, e o katharévousa era uma forma arcaica (mais perto do ático)

(19)

órgão criado em 1903 pelos demoticistas militantes, e participou do Círculo de Instrução de Atenas na longa e dura batalha para vencer os prejuízos e preconceitos linguísticos, conseguindo introduzir, em 1919, o estudo da língua popular nas escolas.

Nos anos de 1912 e 1913 ocorrem as Guerras Balcânicas9, conflito bélico no qual Kazantzákis se alistou como voluntário, mas do qual não chegou a participar. Entre os anos de 1914 e 1915, na companhia de um dos maiores poetas gregos, Angelos Sikelianós, viajou extensamente pela Grécia, além de ter empreendido uma jornada de quarenta dias, uma espécie de retiro espiritual, pelos monastérios do Monte Athos e da ilha de Sifnos. Ambos possuíam profundas inquietudes existenciais e religiosas, e encontravam-se dispostos a fundar uma nova religião. “Loucos de felicidade, viajamos de um monastério para outro, conversando a voz pequena como os antigos peregrinos, sobre Deus, o destino do homem e de nosso dever em particular – os três temas persistentes de nossa inteira viagem” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 140). A peregrinação ganha, então, nas palavras de Kazantzákis, a seguinte motivação: “Temos que reorganizar o ascetismo cristão – dissemos, fazendo disto um juramento. – Temos que soprar nele o sopro da criatividade. Temos. Esta é a razão de nossa vinda à Montanha Sagrada” (KAZANTZAKIS, 1975, p. 142). Mediante suas anotações em diários e correspondências sabe-se que nestes anos ele leu intensamente: Whitman, Claudel, Tagore, Bergson, Tolstói. Por essa época nascem as primeiras intuições daquela que é considerada a sua maior obra, a Odisseia, e também a consciência acerca da importância da libertação e do caminho ascensional, temáticas recorrentes no desenvolvimento de toda sua produção literária.

A partir daí, o período que se estende até 1920 é de intensa atividade política e humanitária. Em 1919, o então Primeiro Ministro da Grécia, Venizelos, nomeou Kazantzákis como diretor geral do Ministério da Assistência Social, com a missão de repatriar 150 000 gregos que estavam sendo perseguidos no Cáucaso, pelos bolcheviques. Aliás, conforme nos recorda José Paulo Paes, “O drama desses

9 Aqui se trata da Primeira Guerra dos Balcãs. Um conflito militar que durou de outubro de 1912 a maio

(20)

deslocados é referido nas cartas que o amigo do narrador, em Zorba, o Grego10, lhe escreve do sul da Rússia, onde estava lutando pela repatriação de seus concidadãos perseguidos” (PAES, 1985, p. 153). Vale lembrar também que a inspiração do personagem protagonista do romance, escrito entre 1941 e 1943, veio de um tal Yióriys Zorbás, homem simples, mas dotado de um vitalismo a toda prova, que Kazantzákis conheceu em 1917, por ocasião da exploração frustrada de uma mina de linhita, e que depois se tornaria seu assistente no trabalho de repatriação dos gregos caucasianos.

Todavia, frustração bem maior veio em 1920, diante dos reveses políticos. Sobretudo, o assassinato do líder demoticista, Dragoumis, e a derrota de Venizelos nas urnas desiludiram Kazantzákis a tal ponto que o levaram a renunciar ao Ministério da Assistência Social e a ir passar um breve período de tempo na França. Em seu retorno para a Grécia, em 1921, isolou-se em Kifissia e durante o verão daquele ano começou a trabalhar na tragédia intitulada Cristo. Depois, deixa a Grécia novamente e entre os anos de 1921 e 1924 vive por um tempo em Viena e Berlim, dedicando-se à escrita.

Em 1922, sua estada em Viena será marcada por uma estranha doença de fundo emocional, um eczema facial, que o terapeuta freudiano Wilhelm Steckel considerou como um exemplo típico de somatização histérica, conhecida por “máscara da sexualidade”, uma espécie de refúgio de pureza que aparece em ascetas e homens considerados “santos” 11. Kazantzákis estava profundamente envolvido com o estudo das escrituras budistas e começou a escrever a tragédia Buda, cujo texto, aliás, refez mais de uma vez. Em setembro do mesmo ano ele se muda para a Alemanha, mais precisamente para Berlim. Em meio à decadência do pós-guerra, e no final ainda daquele ano inicia Ascese, um pequeno livro místico-poético em que expressa suas inquietações religiosas e suas idéias metafísicas. Ele o completará em abril de 1923. Pouco depois, Kazantzákis percorrerá várias cidades da Alemanha; em Dornburg, próxima a Jena, ele se hospedará na casa que havia sido de Goethe; depois conhecerá Naumburg, a cidade onde Nietzsche passou sua infância. No início de 1924, Kazantzákis viaja pela Itália e escreve reportagens sobre o regime de Mussolini. Realiza sua primeira peregrinação a Assis, que o impacta. O escritor grego foi um grande

10 Este é, na verdade, o título da adaptação cinematográfica do livro Vida e proezas de Aléxis Zorbás.

Diante do sucesso nos cinemas, reedições posteriores do livro passaram a adotar o título do filme.

11 O episódio da moléstia facial está relatado em Testamento para El Greco, p. 246-248. Nesse relato, a

(21)

admirador de São Francisco, cuja inspiração lhe fará escrever, anos mais tarde, o livro O pobre de Deus.

Também em 1924, pouco depois do seu retorno a Grécia, em um passeio pelas imediações de Atenas, Kazantzákis conheceu Eléni Samiou, a mulher que se tornará sua futura companheira, sua segunda esposa. Com ela percorrerá sua ilha natal, e já no final do ano, em Heráklion, começará a composição de sua mais audaciosa obra, a Odisseia, num exaustivo trabalho de escrever e reescrever que se prolongou por catorze anos. Em 1925, saiu em viagem pelas ilhas do mar Egeu, e foi nessa viagem que ele descobriu Egina, o lugar onde mais tarde iria morar. Em outubro deste ano partirá para a União Soviética, como correspondente do diário Eléftheros Logos. Kazantzákis desempenhará uma intensa atividade cultural escrevendo para periódicos em Moscou e visitando escolas, bibliotecas, museus, teatros e pinacotecas. Por esta época se oficializará então o divórcio entre o escritor e sua primeira esposa, e marcará também um vasto período de viagens e peregrinações.

A fase de andanças por vários países resultou em alguns livros de impressões de viagens. De fato, esse foi um momento em que Kazantzákis percorreu e descreveu localidades tão diversas como Palestina, Chipre, Espanha, Itália, China, Japão, Egito, Rússia. Parte dessas viagens e suas impressões foram mais tarde coligidas no livro Do Monte Sinai à Ilha de Vênus. Nesta obra a descrição do encontro, em Moscou, com o escritor romeno Panait Istrati e o também escritor e ativista político russo Máximo Gorki, deixa entrever, por exemplo, sua simpatia por aquilo que ele chama de “milagre soviético”, ou seja, “aquela visão do mundo a um só tempo niilista e heroica a que sempre se manteve fiel e que muito pouco tem a ver com o marxismo”. (PAES, 1985, p. 154). Em outros países, os relatos referem-se à sua tendência para a espiritualidade e ao seu desejo de conhecer lugares considerados místicos. Assim, no Japão e na China, acentua-se seu interesse pelas doutrinas religiosas e filosóficas do Oriente, especialmente pelo budismo. No Sinai, conheceu o mosteiro de Santa Catarina. Na Espanha, esteve em Ávila de Santa Teresa.

Já pelos anos da década de 1930, Kazantzákis trabalhou em um ritmo intenso, escrevendo roteiros para cinema12 e poesia, compôs peças para teatro, elaborou romances em francês, compilou enciclopédias e dicionários, contribuiu em jornais gregos e russos, além de traduzir grandes obras de literatura. Em 1936 viaja pela terceira

12 Os roteiros cinematográficos escritos por Kazantzákis fazem parte de uma produção desconhecida de

(22)

vez para a Espanha, ocasião em que desempenhou a função de jornalista correspondente da Guerra Civil, realizando entrevistas com o general Franco e com o filósofo Unamuno. Desta experiência Kazantzákis também escreverá um livro sobre suas impressões da Espanha. No final desse ano, sua casa em Egina está concluída, e, ao lado de Eléni, pela primeira vez fixa residência. Agora só raramente saía de Egina, em algumas ocasiões para viajar, e, em 1938, para supervisionar a publicação de sua continuação moderna da Odisseia.

Durante a Segunda Guerra, a ocupação das tropas alemãs e os anos da guerra civil que a ela se seguiu na Grécia, Kazantzákis ali permaneceu e, a exemplo de milhões de compatriotas, lutou contra todas as agruras e privações. Nesse período, começou a escrever o romance Vida e proezas de Aléxis Zorbás e o esboço de O Cristo Recrucificado. Depois que os alemães se retiraram, ele retorna a Atenas, que estava sob o domínio do conflito civil, e à vida política, tornando-se líder do partido socialista e encarregado pelo governo para verificar as atrocidades alemãs em Creta. Ainda em 1945, se candidatou para a eleição de admissão na Academia de Atenas, mas a perdeu por dois votos. Em novembro do mesmo ano, oficializou sua união de muitos anos com Eléni Samiou.

No início de 1946, a Sociedade dos Escritores Gregos recomenda Kazantzákis para o Prêmio Nobel da Literatura. O escritor, no entanto, comunica que só aceitaria a indicação se fosse em conjunto com o amigo e poeta Angelos Sikelianós (Cf. KAZANTZAKI, 1974, pp. 357-358). O nome de Kazantzákis seria novamente indicado poucos anos depois. De fato, muitos personagens de destaque e contemporâneos ao escritor grego, tais como o teólogoAlbert Schweitzer, prêmio Nobel da Paz, juntamente com o escritor alemãoThomas Mann, por exemplo, empenharam-se para que lhe fosse conferido o Prêmio. Algo, porém, que acabou não acontecendo13. A este respeito vale a pena citar o que o poeta francês Alain Bosquet escreveria três dias depois da morte de Kazantzákis no periódico Combat14:

Uma das figuras mais excelsas e nobres da literatura entrou para sempre na memória dos homens do nosso tempo. Em mais de uma ocasião seu nome foi indicado para o prêmio Nobel. O fato de não haver conseguido é hoje em dia a principal garantia de sua grandeza. Junto com Kafka e Proust, e esse outro

13 Segundo consta, em 1957, Kazantzákis deixou de levar o Prêmio por apenas um voto de diferença para

o escritor francês Albert Camus.

14Combat foi um jornal francês. Sua fundação ocorre em meio a Segunda Guerra Mundial, sendo um

(23)

desconhecido Hermann Broch, é um dos maiores escritores do nosso século. (apud STASINAKIS, 1999, p. 237).

E Albert Camus, dois anos após a morte do escritor grego, numa carta enviada a Eléni Kazantzákis, faria o seguinte comentário:

Sempre senti muita admiração e, se me permite, uma espécie de afeto para a obra de seu marido (...). Não esqueço quando, no dia em que me lamentava por receber uma distinção (Prêmio Nobel) que Kazantzákis merecia cem vezes mais que eu, recebi dele o mais generoso dos telegramas. Com ele desaparecia um dos nossos últimos grandes artistas. Sou dos que lamentam e continuarão sentindo o vazio que nos deixou (apud KAZANTZAKI, 1974, p. 449).

Mas voltemos para 1946, pois, ainda neste ano, Kazantzákis viajaria para a Inglaterra a convite do Conselho Britânico. E estando lá também foi convidado para falar na BBC. Em seu discurso, o escritor grego sugere a criação de uma Internacional do espírito, uma espécie de organização cuja ideia central seria estimular os intelectuais do mundo inteiro a participarem de uma tentativa de ressaltar a prioridade dos valores artísticos e espirituais na condução da melhoria do mundo. Como já era de se esperar, o retorno de tal convocação foi fraquíssimo. Depois, Nikos vai para Paris, onde é nomeado assessor literário da UNESCO. Algumas de suas obras começam a ser traduzidas, e, com isso, vai ganhando cada vez mais notoriedade internacional.

A partir de 1951 sua saúde entrou em declínio constante, mas, ainda assim, sua produção literária era intensa e criativa. Nesse período escreve A última tentação de Cristo, romance em que a figura de Cristo representa a luta entre a carne e o espírito, luta que o escritor cretense deseja superar. Também por esse período é internado em um hospital na Holanda, onde aproveitou para estudar a vida de São Francisco de Assis, que resultaria no ano de 1953, em mais um livro: O pobre de Deus. Neste ano, após ter recebido um prêmio na Alemanha pela peça Sodoma e Gomorra, entra em um hospital para fazer tratamento, onde é diagnosticado com leucemia linfática. Contudo, em 1955, encontrou forças para realizar uma nova série de viagens, fundamentalmente para Itália e Suíça, onde se encontra com Albert Schweitzer, a quem dedicou o livro O pobre de Deus. Trabalhou ainda com Kimon Friar na tradução da Odisseia para o inglês, e começou a redigir o romance autobiográfico Testamento para El Greco.

(24)

pois, sua última viajem. Em Cantão, na China, deram-lhe a vacina contra cólera e varíola que acabou provocando uma reação gangrenosa em seu braço. É levado para tratamento no Hospital Nacional de Copenhague. Entretanto, seu quadro se agrava e ele é transferido para uma clínica em Friburgo, na Alemanha, onde contrai gripe asiática e em poucos dias viria a falecer. Tinha 74 anos.

Da Alemanha “seu corpo foi transportado a Atenas, onde a Igreja Ortodoxa lhe recusou enterro cristão. Isso a pretexto de tratar-se de um inimigo da fé” (PAES, 1997, p.18). Porém, o corpo é levado para Creta e velado na igreja Metropolitana de Heráklion que o acolheu com honras de herói. Em sua lápide, que ainda hoje é destino de visita de muitos que vão a Creta, encontra-se gravado o auto epitáfio que bem lhe resume a altiva filosofia de vida: “Não espero nada. Não temo nada. Sou livre”.

1.2 Deus, luta e liberdade: o eixo temático das obras de Kazantzákis

Diante da grande produção literária criada por Nikos Kazantzákis, produção que, conforme foi visto, se estende por uma longa carreira de escritor, podemos dizer que, em termos gerais, o temor à morte, assim como o problema da liberdade, a importância da luta e a relação do ser humano com Deus são os grandes temas, o leitmotiv, que aparecem reiteradamente em sua literatura. De fato, esses temas encontram-se constantemente interpenetrados em suas obras. Tal problemática constitui, nesse sentido, o eixo da luta interna e das inumeráveis preocupações filosóficas e metafísicas em Kazantzákis. Em Ascese toda a temática filosófica e religiosa ali contida se desenvolverá, pois, em torno da questão de Deus, da luta e da liberdade. Mas, antes mesmo de Ascese, esta preocupação já se fazia presente, e, posteriormente, continuará sendo o fio condutor de sua criação literária. Assim, com o objetivo de ilustrar essa problemática a partir de suas obras recordaremos, primeiramente, aquelas que antecedem Ascese; depois analisaremos sua Odisseia; e, por fim, três dos romances que lhe renderam fama internacional e seu relato semiautobiográfico, Testamento para El Greco.

1.2.1 Nas obras anteriores a Ascese

(25)

literária de sua época, pois, esse início já projeta certa luz sobre o que será sua produção posterior. Com efeito, pinçaremos as principais obras dessa fase inicial que, de algum modo, já antecipam e ilustram em boa medida a problemática acerca de Deus, a exigência da luta e o anseio com a liberdade.

Reconhecem-se como as primeiras obras de Kazantzákis aquelas que foram escritas a partir de 1906. É deste ano o ensaio A doença do século, considerado seu primeiro escrito oficial, quando era um jovem estudante de Direito em Atenas. Este ensaio foi publicado na revista Pinakothiki, em seus números 61, 62 e 63, correspondentes aos meses de março, abril e maio, assinado com o pseudônimo Karma Nirvana. Neste seu primeiro ensaio, o escritor grego já apresenta suas inquietações sobre uma crise geral dos valores da civilização ocidental. Como causa desta crise, o autor indica, por um lado, o anúncio da morte de Deus feita por Nietzsche e a necessidade da superação da metafísica, e, por outro, o desenvolvimento do pensamento científico que havia conduzido à desmistificação, sem poder, contudo, substituir o vazio metafísico.

Do mesmo ano, 1906, é O lírio e a serpente, o primeiro livro de Kazantzákis a ser efetivamente publicado, e também assinado com o pseudônimo Karma Nirvana. É um pequeno romance escrito em forma de diário e relata os últimos dez meses de um casal, um pintor e sua modelo, que se suicidam por asfixia em um quarto cheio de flores. Trata-se de uma obra impregnada de erotismo, segundo os críticos da época, a qual suscita opiniões divergentes (o próprio Kazantzákis a desaprovará posteriormente por considerá-la fraca), mas, ao mesmo tempo, todas elas coincidem em manifestar certa surpresa e estranheza de que tais ideias e tais paixões, tão nitidamente expressadas, pudessem ser obra de alguém tão jovem. É significativa, nesse sentido, a opinião de Palamás15 sobre o romance, entre outras coisas ele diz: “é ao mesmo tempo história e poema. A história se desenrola através do monólogo de um personagem... E a poesia a penetra totalmente. Poema juvenil, nocivo, belo e mortal, um romance perigoso para os jovens...” E Palamás conclui predizendo o êxito futuro do autor quando diz: “trata-se das primeiras manifestações da sensibilidade de um jovem escritor que, com o tempo, criará belíssimas obras” (apud OMATOS, 2009, p. 186). Aliás, opinião semelhante à de Vlassis Gavriilidis, um célebre jornalista grego da época, ao ressaltar que a aparição deste romance eleva a literatura grega, até então muito pobre, e que seria enriquecida

15 Kostís Palamás (1859-1943) foi um importante poeta grego e um dos mais respeitados críticos literários

(26)

com um jovem escritor de primeira linha. Nas palavras do jornalista, o jovem Kazantzákis “faz sua entrada no universo das letras com nova inspiração intelectual, estética e linguística. É o escritor novo, o escritor da chama, o escritor da vida...” (apud KAZANTZAKI, 1974, p. 35).

Mas é novamente de Palamás que vem o comentário que queremos destacar, quando ele diz: “o romance contém toda a contraposição ética, prisão do homem em que se combatem mutuamente e sem descanso a Carne e o Espírito” (apud OMATOS, 2009, 187). Esta observação é realmente interessante ao se referir à primeira obra de um Kazantzákis ainda jovem, com vinte e três anos, porque essa luta, que já é tão evidente em sua primeira criação artística, será a chave de toda a obra posterior do escritor. Em outras palavras, a constante batalha entre matéria e espírito que o escritor cretense permanentemente pretenderá harmonizar na trajetória ascendente de superação humana: a obsessão pela liberdade definida como a transfiguração da matéria em espirito.

Todavia, será numa de suas composições para teatro16 onde aparecerá com toda força e inovação aquela marca permanente de sua criação artística. Entre 1908 e 1909, Kazantzákis escreve uma peça com o título Comédia e subtitulada Tragédia em um ato, cujas cenas, do início ao fim, acabam por conduzir a uma espécie de olhar apocalíptico. Encontram-se ali refletidos diversos elementos da condição humana, como a esperança e o temor, a fé e a dúvida, a alegria terrena e o anseio de uma felicidade prometida, a espontânea cotidianidade e a renúncia ascética, a serenidade efêmera e o drama da espera; encontram-se também etapas e paixões da vida que, em seu conjunto, nos fazem pensar no niilismo, no pessimismo heroico, na trama existencialista e na teologia negativa. Nesta obra, portanto, percebe-se não somente a complexidade do pensamento de Kazantzákis, todo ele permeado por suas visões poéticas, mas, além disso, podem ser reconhecidas também as aporias de quem percebe com assombro a transcendência de uma obra tão destilada de buscas filosóficas, e, deste modo, de quem não encontra todas as palavras adequadas para transmitir o forte impacto recebido. Marie Louise Bidal-Baudier nos dá o argumento da obra:

16 A produção de obras para teatro percorre praticamente toda a carreira literária de Kazantzákis e

(27)

Em um quarto fechado, que significa o cárcere da morte, um grupo de pessoas, com idades e comportamentos diferentes, espera por Deus, que viria para lhes abrir a porta do reino da luz e cuja “cara resplandecerá como o Sol nascente diante delas”. Mas à medida que se apagam as velas, que passam as horas no grande relógio das doze badaladas, a esperança se desvanece e a angústia aumenta: a porta não abre. Uma angústia que se converte em sufocação e em frio de morte que esmaga o peito, como o peso de uma placa de concreto, e rompe os corações com a nostalgia da terra e doçura da vida (BIDAL-BAUDIER, 1986, p. 164).

Deve-se notar que esta obra se configura em uma verdadeira inovação para a época. Ora, o motivo da espera e da alienação existencial, somado ao tema do mais além

desconhecido, da impotência da razão, da contingência do ser humano e da atmosfera da agonia, nos remete imediatamente a duas famosas obras escritas muitos anos depois de

Comédia, são elas: Entre quatro paredes (1945) de Jean-Paul Sartre, e Esperando Godot (1950) de Samuel Beckett. Se Comédia, conforme escreve Eléni Kazantzákis, “não tivesse sido publicada em1909 seria acusada de plágio, já que em muito ela recorda Huis clos, de Sartre. Mas em Kazantzákis, os doze mortos fechados em um quarto sem saída, só esperavam a chegada do Salvador, que nunca chegará” (KAZANTZAKI, 1974, p. 40).

Obviamente que Comédia não é uma peça experimental ou um simples exercício sobre o desespero individual e coletivo. A espera inútil e o silêncio de Deus não afirmam o niilismo e a completa desolação como destino humano. A obra é, na verdade, um grito de liberdade e abandono das subjugações sociais. Expressa uma crítica à religião e às estruturas da fé, conclamando a uma busca por algo por detrás da esperança e do temor religioso. O que se percebe é “a perspectiva de um Deus escondido nas sílabas do nada, um Deus distante, mudo, ausente, silencioso, abissal, e que simples e facilmente não se submete aos interesses e cálculos do homem” (PIZARRO, 1998, p. 48).

(28)

diante dos personagens é a libertação desse mesmo Deus das máscaras e símbolos que lhe são atribuídos pelas religiões: por detrás das máscaras encontrar-se-ia o abismo sem fundo.

O que Comédia expõe deve ser situado nas coordenadas evolutivas de um tipo de credo filosófico dialético de Kazantzákis consigo mesmo. Ou seja, estas são suas primeiras marcas desde as quais se avança da escuridão até a luz; daquele momento preliminar em que ele acentua primeiro a falta de esperança no ser humano, para em seguida exaltar a luta, o combate sem esperança por qualquer recompensa, enfim, para exaltar a chama que devora o destino humano.

Outra obra que, apesar de Kazantzákis não tê-la publicada em vida, merece aqui uma menção é Simpósio. Sem ter a data conclusiva para a composição deste texto, costuma-se aceitar que tenha sido escrito em 1922, muito próxima, portanto, ao esboço de Ascese. Mas a obra só foi publicada em 1971, por Eléni Kazantzákis, ou seja, meio século depois de sua redação e catorze anos após a morte do autor. Simpósio é um texto curto, e, ao que tudo indica, trata-se de uma obra não concluída. Assim como em

Ascese, também se percebe no Simpósio o delineamento daquela ideia, praticamente uma filosofia de vida, que é o de salvar Deus, seguir sua presença e dar outro ímpeto ao ritmo humano.

De acordo com Pizarro, o principal personagem do livro, Harpagos, representaria o próprio Kazantzákis, enquanto os outros personagens do diálogo estariam representando alguns de seus principais amigos (cf. PIZARRO, 2003, p. 294).

Simpósio é considerada uma obra menor, muito possivelmente por estar inconclusa. Na verdade é um pequeno “simpósio”, no qual falta o diálogo. Dos quatro personagens, somente Harpagos é quem fala quase que permanentemente. Os outros – Kosmas, o homem de ação; Petros, o poeta; e Myros, um simples amigo de Harpagos – falam somente no início e, no fundo, não desejam expor suas próprias ideias, mas incentivar Harpagos a fazer uma prometida “confissão”.

Se em O Banquete Platão falava do amor, Kazantzákis, em seu Simpósio, falará de Deus. Dessa maneira, ao começar sua primeira e extensa intervenção, Harpagos menciona “o ar acre de Deus”.

(29)

querendo ou não, ascendem à Montanha de Deus. Tu me reprovas, Kosmas, e, no entanto, sem que saibas, nossos dois espíritos marcham ao mesmo ritmo; lutei o melhor que pude, ampliando o campo de minha visão, conquistando minha vicissitude individual, para respirar o ar acre de Deus (KAZANTZAKIS, 1978, p. 25-26).

Mesmo não tendo satisfeito o próprio autor quanto ao seu valor filosófico,

Simpósio possui riqueza metafórica e amplitude poética. Portanto, é um livro de pensamento lírico. As ideias e a poesia caminham de mãos dadas. Poder-se-ia dizer que sua leitura produz um grande gozo estético; mas não é só isso, é uma tentativa filosófica que, mais uma vez, expressa as grandes inquietudes de Kazantzákis, as mesmas que sempre retornam em todos os seus livros. Por meio desta obra, pouco conhecida e pouco estudada, “se conhecerá suas agonias metafísicas, se penetrará em seu credo filosófico não pela pesada porta oficial de Ascese, mas por trilhas campestres cheias de tomilho, sálvia, azeitonas maduras...” (PIZARRO, 2003, p. 300).

1.2.2 Na Odisseia – ampliação e transposição épica de Ascese

Em 1938 é publicada aquela que é considerada o obra prima de Kazantzákis: a

Odisseia. O valor desta obra é assinalado pelo próprio autor quando, em 1947, ele escreve ao amigo Börje Knös para dizer: “Do ponto de vista da forma poética e do conteúdo filosófico, a Odisseia representa o ponto mais alto que pude chegar depois dos esforços de toda uma vida a serviço do espírito” (KAZANTZAKI, 1974, p. 377). E alguns anos mais tarde, em outra carta ao mesmo amigo, Kazantzákis declara: “Acredito que toda a minha alma, toda a chama e a luz que fiz nascer da matéria à qual fui moldado, se expressam na Odisseia” (KAZANTZAKI, 1974, p. 425). Por tudo isso, um estudo sobre Kazantzákis não pode deixar de fazer uma apresentação desta obra, tida “como um dos pontos altos da épica do século XX” (PAES, 1997, p.12), e que, ao lado de Ascese, é fundamental para a compreensão do seu pensamento.

Trata-se verdadeiramente de um “poema de dimensões admiráveis” (BERNARDES, 2012, p.18): obra grandiosa, tanto na abordagem de seus temas, quanto no seu tamanho, são 33.333 versos de 17 sílabas poéticas. Kazantzákis toma por empréstimo o tema de Ulisses17 (Odisseu), o famoso herói mítico do homônimo poema homérico, e, a partir daí, o antigo personagem, na Odisseia kazantzakiana, retoma sua viagem, não mais de retorno a Ítaca, mas a partir de Ítaca. Essa viagem se expressa

(30)

mediante uma incrível acumulação de sonhos, mitos, lendas, costumes, crenças e ritos de diversos povos e épocas; uma verdadeira torrente de vivências e experiências derramadas ao longo de 24 Cantos.

Segundo Miguel Castillo Didier, “é a obra mais discutida de toda a literatura neogrega” (DIDIER, 2006/2007, p. 22). De fato, a Odisseia de Kazantzákis parece recolher todo o tesouro da língua neohelênica: dialetos, expressões, motivos, versos, fragmentos e às vezes baladas completas da poesia grega, elementos da mitologia e da cultura popular. Devido a essas peculiaridades linguísticas o trabalho de tradução torna-se extremamente difícil. Das versões traduzidas destacam-torna-se a versão inglesa de Kimon Friar, que só apareceu em 1958; a francesa de Jacqueline Moatti, em 1968; e a castelhana de Miguel Castillo Didier, em 1975.

Foi num subúrbio em Heráklion, capital de Creta, no ano de 1924, que Kazantzákis “iniciou a composição de sua Odisseia, num exaustivo trabalho de escrever e reescrever (fez nada menos de sete versões do poema) que se prolongou por catorze anos” (PAES, 1985, p. 155). Quando apareceu em Atenas, nos idos de 1938, a epopeia de Kazantzákis, materializada num grosso volume de 835 páginas, foi fonte de debates e de muitos “motivos para controvérsias de ordem ética, teológica e artística” (PAES, 1985, p. 158). Didier, citando Kimon Friar, faz lembrar o fato de que a aparição da

Odisseia

Causou nos círculos gregos discussões tão vivas como as que produziram nos círculos ingleses a publicação de outra epopeia com dimensões parecidas e disposição semelhante: o Ulisses de Joyce. As duas obras se referem ao homem contemporâneo que busca seu ser. E nas duas os autores utilizam o esqueleto da

Odisseia homérica, ainda que de maneiras distintas (apud DIDIER, 2006/2007, p. 22).

Mas como entender uma obra pretensamente inovadora em sua proposta, sendo esta, a partir de sua constituição, composta por meio de elementos da epopeia? Ora, esse gênero hoje é tido “por obsoleto e só aceito, agora, em sua forma ‘degradada’, prosaica, de romance” (PAES, 1985, p. 156). Recusar-se-ia, portanto, a Odisseia de Kazantzákis por se tratar de uma tentativa frustrada de reviver um gênero irremediavelmente morto. Todavia, a resposta para essa questão foi dada pelo próprio autor:

(31)

amarguras, com seus fracassos e desencantos: lutando. O homem contemporâneo que vive profundamente seu tempo, de forma consciente ou inconsciente, dá à luz este combate (apud PIZARRO, 2003, p. 309).

Portanto, segundo Kazantzákis, a qualidade épica do poema deriva exatamente da essência epopeica da luta do homem atual em meio ao caos em que se vê imerso, ao tentar tomar consciência de seu ser. Com isso a Odisseia kazantzakiana pretende sinalizar todos os caminhos, todas as possibilidades, todas as aberturas às quais o ser humano pode dirigir seu olhar para tentar captar e atribuir um sentido à existência. Representa uma suma de visões que podem engendrar a imaginação humana, visões que se situam fora do tempo e do espaço. Massacres, incêndios, orgias, cidades ideais, desertos africanos, geleiras polares; as sombras daqueles que amou e admirou: Cristo, Buda, Dom Quixote, Homero; homens do povo, camponeses, pescadores, artesãos, caçadores; a presença obsessiva da morte; é um mundo de fortes cores, violento, desmedido, brilhante em cada verso com as imagens fulgurantes criadas pelo poeta. Isso explica então o tamanho colossal do poema, já que o autor procurou explorar e fundir todas as visões, todas as imagens e caminhos possíveis.

Sendo uma continuação, a Odisseia de Kazantzákis começa, portanto, a partir do canto XXII, verso 477, da Odisseia de Homero. Depois de matar os pretendentes de Penélope e de narrar suas peripécias, o Ulisses kazantzakiano sente um profundo desencanto, e sua ilha tão desejada torna-se a seus olhos estreita e asfixiante. Decide, então, partir uma vez mais, com alguns poucos companheiros, sem rumo determinado. De acordo com Carolina Bernardes:

Se na primeira Odisseia o tema é a volta (nóstos), na Odisseia kazantzakiana há uma tentativa clara de superação da meta representada pela chegada à Ítaca. Como reavaliação moderna do herói de Homero, o herói de Kazantzákis mantém-se em marcha, ultrapassando suas próprias conquistas, visto que a chegada não manifesta nele o apaziguamento, e sim o desejo de ir além. Nesta nova odisseia, Odisseu descobre que a “superação” é constituída pelo próprio caminho, e então, lança-se novamente à viagem (BERNARDES, 2012, pp. 18-19).

(32)

modos de ser: aventureiro, revolucionário, construtor de uma cidade ideal, e, finalmente, se torna um asceta. Tendo superado valores e dogmas, Ulisses tem encontros diversos com personagens que simbolizam tendências e possíveis caminhos da humanidade: o príncipe Manayís, espécie de atormentado Hamlet; a prostituta Perla que entre os caminhos da salvação escolhe o caminho do amor; o Eremita, espécie de Fausto, insaciável, sedento de conhecimentos; o Capitão Uno, sombra de Dom Quixote; o Hedonista e os homens primitivos; o jovem Pescador negro, um tipo representativo de Jesus. Depois desses encontros, Ulisses começa a construir na costa sul-africana sua última embarcação. Este barco, em forma de ataúde, o levará em total solidão à morte entre as geleiras do Polo Sul.

A trajetória de Ulisses é marcada por um constante exercício de superação. Esta exigência ininterrupta de superação é o que Kazantzákis designará por “ascese” (cf. BERNARDES, 2012, p. 20). E aqui, então, nota-se a afinidade entre Ascese e a

Odisseia: ora, o que se reconhece na segunda obra é uma visão que se verifica abstratamente na primeira. Num certo sentido, a Odisseia é a obra que coloca em ação o que em Ascese é contemplação (cf. ÁLVAREZ, 2009, p. 40). Por isso, essas duas obras “constituem o núcleo de uma obra vasta, que é na essência uma unidade” (DIDIER, 1975, p. 21). Pizarro, por sua vez, dedica um capítulo do seu livro Dimensiones de un poeta pensador para estudar a relação entre as duas obras. Na realidade, o capítulo do livro de Pizarro, intitulado “Odisea, transposición poética”, procura sublinhar o que, em síntese, já havia sido ressaltado por Aziz Izzet, um dos primeiros estudiosos da obra de Kazantzákis. Izzet explica a afinidade entre o opúsculo místico-filosófico e o poema épico da seguinte maneira:

Kazantzákis se esforçou em Ascese por reviver em si mesmo, profundamente, todos os ciclos da marcha humana sobre a terra. Aqui ele o faz abstratamente, por assim dizer. Mais tarde, na Odisseia, ele fará criando uma obra de arte. Esta é a autêntica função do artista, e ele a cumpriu de maneira grandiosa.

(33)

Obviamente que essa demonstração da relação intrínseca entre as duas obras se tornaria mais evidente se já contássemos também com maiores informações sobre

Ascese, o que só acontecerá, porém, a partir do nosso segundo capítulo, quando nos ocuparemos, então, em analisá-la particularmente. A intenção aqui, entretanto, foi somente sinalizar o caráter central de tais obras, por onde flui de maneira inter-relacionada e tão formidavelmente toda a problemática kazantzakiana em torno de Deus, da luta e da liberdade.

1.2.3 Nos romances tardios e no “relatório final” (Testamento para El Greco) Os romances escritos por Kazantzákis, que lhe trariam a fama de maior romancista da literatura grega moderna, só vieram à luz “na quadra final de sua vida, durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos subsequentes” (PAES, 1997, p. 11) 18. Dentre esses devem ser destacados: Vida e proezas de Aléxis Zorbás, O Cristo Recrucificado e A última tentação de Cristo. Estes três por também terem sido adaptados para o cinema lhe dariam, pois, um público ainda mais vasto que o das livrarias19.

O livro Vida e proezas de Aléxis Zorbás, publicado em 194620, foi escrito entre agosto de 1941 e maio de 1943, período no qual Kazantzákis estava recolhido em sua casa na ilha de Egina, por causa da ocupação alemã na Grécia. A história narrada é verdadeira em sua essência, embora alguns pormenores sejam fantasiosos e a época da ação não tenha sido claramente apontada. Kazantzákis conheceu o macedônico Zorbás em 1917, por ocasião da exploração de uma mina na Messênia que é basicamente a trama desenvolvida no livro. O dionisíaco Zorbás, com sua sabedoria vital, foi para o escritor um verdadeiro mito vivo: “ensinou-me a amar a vida e não temer a morte”

18 Sobre os romances de Kazantzákis, José S. Lasso De La Vega diz que eles acabam aparecendo como

“fenômenos marginais na rota sinuosa do seu labor literário. [...] Até então não havia tido a vontade de romancear desde que em 1906 compusera o relato extenso O lírio e a serpente. Trinta anos depois retorna ao gênero compondo em francês O jardim dos rochedos, que na verdade não é propriamente um romance. Seus últimos romances são de uma rara distinção, a obra de um romancista de grande classe. Reiteram em forma mais popular e atemperam-se aos gostos do público as experiências agudas de um pensador e poeta maduro” (VEGA, 1968, p. 11).

19 A respeito das adaptações para o cinema destes três romances de Kazantzákis, o estudioso de literatura

grega moderna Peter Bien, no artigo Nikos Kazantzakis’s novels on film, considera que foram oportunidades perdidas, uma vez que os filmes não teriam conseguido reproduzir o principal de cada um dos romances. Assim, de acordo com Bien, na adaptação de O Cristo Recrucificado o final teria sido distorcido; em Zorba, o grego, o final do livro teria sido omitido; e em A última tentação de Cristo, Scorsese não teria dado conta da exuberante linguagem do livro.

20Vida e proezas de Aléxis Zorbás deu origem ao filme Zorba, o Grego, rodado na ilha de Creta no verão

(34)

(KAZANTZÁKIS, 2011, p. 7). Para Kazantzákis, Zorbás representa a libertação das normas, do conformismo, dos medos, da vida burguesa, da submissão às regras e a possibilidade de se abrir ao abismo.

Paralelamente à narrativa, Kazantzákis vai, então, expondo suas angústias existenciais e sua filosofia. São apontadas, entre outras, as noções de “grito”, o “olhar sobre o abismo” e “transfiguração da matéria em espírito”. Enquanto o “grito” é a voz que explicita o modo de ser do indivíduo no mundo, o “olhar sobre o abismo”, sem medo nem esperança, que abraça ao mesmo tempo vida e morte, é sinônimo da almejada liberdade. E, coroando seu pensamento, “transfigurar matéria em espírito”, convertendo corpo e alma num conjunto harmonioso, significa atingir a unidade que integra, finalmente, o ser humano ao cosmos. Com efeito, toda essa filosofia é encarnada no personagem Zorbás, em seu proceder vitalista, sua atitude sempre exultante, sua disposição em gozar cada momento e em qualquer circunstância. Mostra, mediante o modo de ser do personagem, a possibilidade de se chegar a Deus não através do sofrimento e da renúncia sustentados pelo cristianismo, mas – numa espécie de dionisismo – o encanto de tocar o divino mediante o gozo e o êxtase nas pequenas coisas e tão somente no milagre de existir. Zorbás, além do mais, não aspira à beatitude divina, mas que se conforma com a solidão de seu heroísmo terreno. Trata-se, pois, de um romance permeado pela dimensão da liberdade, da coragem, do enfrentamento da vida e da luta.

O romance O Cristo Recrucificado, escrito em 1948, quando foi publicado na Grécia em 1954 já havia sido traduzido para quatro idiomas21. Em 1950, Kazantzákis escreve agradecendo ao amigo Börje Knös por tê-lo traduzido para o sueco: “Bravo por concluir (a tradução) de O Cristo Recrucificado! Alegro-me que tenha gostado até o fim. É um autêntico romance... Zorbás era, sobretudo, um diálogo entre um escritor e um verdadeiro homem do povo” (KAZANTZAKI, 1974, p. 391).

O crítico de literatura comparada Theodor Ziolkowski estuda amplamente este livro e o considera como uma das mais destacadas obras de transfiguração ficcional a partir de personagens e acontecimentos tomados dos Evangelhos (cf. ZIOLKOWSKI,

21 Deste romance o cineasta francês Jules Dassin fez uma versão para o cinema com o título Celui qui doit

(35)

1982, pp. 154-166). O cenário geográfico e histórico da narrativa de Kazantzákis, cuja ação se desenrola no ano de 1922 numa aldeia do interior da Anatólia, recordam nitidamente o dos Evangelhos: um povo submetido; um governador estrangeiro; a desordem provocada pela atitude e mensagem de Cristo, revivido aqui por um pastor chamado Manólios (que em grego é diminutivo de Emanuel); o pedido de parte deste povo subjugado que, colérico, solicita à autoridade estrangeira que condene à morte Manólios/Jesus; o sacrifício deste pelos outros, sacrifício assumido com total consciência de tomar sobre si as faltas dos outros.

No final do livro, as palavras do representante do povo oprimido, o padre Photis, diante do cadáver de Manólios em plena noite de Natal, parecem resumir o pensamento de Kazantzákis em relação à missão de Jesus: “Foi em vão, meu pobre Manólios, que deu a sua vida – murmurou ele. – Você chamou a si todos os crimes de que nos acusavam”; então o padre Photis ouve o alegre badalar dos sinos à meia noite, que anunciavam o nascimento de Cristo, que viera para nos redimir, e arremata: “Isso também foi em vão, Senhor. Já se passaram quase dois mil anos e, até hoje, não cessamos de crucificar-te. Quando virás ao mundo, Senhor, para não mais seres crucificado, para viveres conosco eternamente” (KAZANTZAKIS, 1971, p. 516). Como sempre, o que aparece é a temática da luta, do sacrifício e da coragem, da liberdade cujo significado, em última instância, é ser livre da esperança de qualquer recompensa futura.

Em A última tentação, escrita entre 1950-1951, Kazantzákis concentrou, uma vez mais, as inquietudes espirituais que lhe atormentaram durante toda a vida. E agora ele o faz tomando a própria figura de Cristo por personagem; e, como é natural, faz com seu estilo, em sua prosa ardente, povoada de hipérboles, cheia de paradoxos, iluminada por expressões proféticas. Viu o sacrifício de Jesus como um dos caminhos de libertação para o ser humano, talvez o mais sublime. E também o mais apaixonante, diante da eterna luta entre as duas naturezas de Cristo, a Divina e a Humana, cujo maior objetivo é se unir a Deus: “É este o Dever Supremo do homem que luta” (KAZANTZAKIS, 1988, p. 6).

Referências

Documentos relacionados

Para al´ em disso, quando se analisa a rentabilidade l´ıquida acumulada, ´ e preciso consid- erar adicionalmente o efeito das falˆ encias. Ou seja, quando o banco concede cr´ editos

Além da multiplicidade genotípica de Campylobacter spp., outro fator que pode desencadear resistência à desinfecção é a ineficiência dos processos de limpeza em si,

Este virado a sul seria o contíguo à igreja de dentro, para poente e pressupõe que aquele trabalho terá sido consequência das alterações na nave, mas não

De acordo com o já implementado na Oliveira & Irmão, S.A., o principal desafio passa por implementar de origem planos de prevenção no sector do produto

De fato, na escola estudada, o projeto foi desenvolvido nos moldes da presença policial na escola quando necessária e palestras para os alunos durante o bimestre,

Na experiência em análise, os professores não tiveram formação para tal mudança e foram experimentando e construindo, a seu modo, uma escola de tempo

Este estágio de 8 semanas foi dividido numa primeira semana de aulas teóricas e teórico-práticas sobre temas cirúrgicos relevantes, do qual fez parte o curso

A tendência manteve-se, tanto entre as estirpes provenientes da comunidade, isoladas de produtos biológicos de doentes da Consulta Externa, como entre estirpes encontradas