• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – PERCURSO TEÓRICO

1.2 A Trajetória da Crítica Feminista

1.2.3 A atualidade da crítica feminista

A crítica feminista pode ser definida por alguns como um ato de resistência em relação ao cânone literário cristalizado e se divide em três fases. Na primeira, a crítica preocupou-se

em desmascarar a misoginia da prática literária – as imagens estereotipadas da mulher como anjo ou monstro, o abuso literário da mulher na tradição masculina e a exclusão da mulher escritora das histórias literárias e dos cânones acadêmicos. Questionaram-se os critérios de valor estético e reavaliaram-se os grandes mestres. Numa segunda fase, a crítica feminista deixou de enfatizar o texto masculino como objeto de estudo para se concentrar na re-descoberta e na investigação de uma literatura feita por mulheres. Através do resgate histórico e da reavaliação crítica, reconstituiu-se uma tradição (...) que havia sido apagada – ou marginalizada – pelos valores dominantes. (...) Numa terceira fase passou a exigir não só o reconhecimento da produção feminina, mas também uma revisão dos conceitos básicos do estudo literário, das teorias que haviam sido formadas a partir da experiência masculina (FUNCK, 1999, p. 18-19).

Já para Heloísa Buarque de Hollanda, existem duas formas de crítica feminista. A primeira, forma ideológica, oferece leituras feministas de textos que levam em consideração as imagens e estereótipos das mulheres na literatura – falsos juízos e a mulher-signo. Já a segunda, conhecida por forma ginocrítica23, vê a mulher como escritora e os principais temas

23

Termo utilizado por Elaine Showalter, a qual diferencia sexo de gênero. O primeiro se refere a um dado biológico, enquanto o segundo faz alusão a uma construção social, cultural psicológica e literária que inscreve o homem na categoria do masculino e a mulher na do feminino. Tais categorias desempenham papéis específicos na sociedade que é regida pela lei patriarcal.

escolhidos para serem discorridos são: a psicodinâmica da criatividade feminina, a trajetória da carreira feminina individual e coletiva e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulher (HOLLANDA, 1994, p.27-29).

De acordo com Toril Moi, a crítica feminista é um tipo específico de discurso político, em outras palavras “a critical and theoretical practice committed to the struggle against patriarchy and sexism, not simply a concern for gender in literature”24 (1989, p. 117). A autora acrescenta que a essência da política é o poder e que, por isso, a principal tarefa da crítica é expor os mecanismos de dominação dos homens sobre as mulheres. Sendo assim, “a key word here is appropriation in the sense of creative transformation”25, justamente porque “feminists have to be pluralists: there is no pure feminist or female space from which we can speak. All ideas, including feminist ones, are in this sense ‘contaminated’ by patriarchal ideology”26 (MOI, 1989, p. 118).

Sabe-se que a trajetória da crítica feminista perpassa três tendências: a inglesa, a qual salienta a opressão das mulheres em virtude de um sistema falocêntrico dominante, além de possuir um caráter essencialmente marxista; a francesa, que salienta a repressão, é essencialmente psicanalítica e relaciona a escritura com o corpo e, por último, a tendência americana que se volta para a expressão e se caracteriza por ser essencialmente textual. Atualmente, todas se tornaram ginocêntricas e lutam para encontrar uma terminologia que possa resgatar e feminino marginalizado e rotulado com a inferioridade.

O trajeto da crítica feminista acontece paralelamente ao movimento feminista e, com um discurso de cunho político-social, se compromete a resgatar “vozes” que foram silenciadas e a construir um discurso hegemônico vigente. Segundo Nadilza Martins Moreira, a crítica feminista surge como uma necessidade e suas propostas pretendem o engajamento da literatura feminista com a crítica e a união entre a arte e a vida (MOREIRA, 2003, p. 34). Para a autora, a crítica feminista possibilitou a compreensão de que a mulher sempre esteve sujeita ao rebaixamento social e literário e acrescenta que

como uma saída alternativa ao vazio feminino no cânone, a crítica feminista propõe a desconstrução das imagens femininas que foram criadas nas grandes obras dos escritores homens, e faz um recorte histórico-didático que inclui a presença da mulher escritora no cânone (MOREIRA, 2003, p. 37).

24

A prática crítica e teórica comprometida com a luta entre patriarcalismo e sexismo não diz respeito simplesmente ao gênero na literatura (tradução nossa).

25

A palavra-chave aqui é apropriação no sentido de transformação criativa (tradução nossa).

26

Feministas têm que ser pluralistas: não existe um espaço puramente feminista ou feminino de onde nós podemos falar. Todas as idéias, incluindo as idéias feministas, estão nesse sentido “contaminadas” pela ideologia patriarcal (tradução nossa).

Ainda no que diz respeito à crítica feminista atual, o teórico Jonathan Culler assegura que há um grande interesse pela investigação da desconstrução praticada por uma leitura de mulher em relação ao discurso falocêntrico. Em um primeiro estágio, a crítica tem interesse particular pela psicologia das personagens femininas e investiga as “imagens de mulher”, ou seja, há uma preocupação acentuada com a questão da mulher como consumidora de uma literatura produzida por homens. No entanto, o autor acrescenta que há duas preocupações básicas na crítica literária contemporânea: controlar o contato com os textos de autoria masculina no intuito de prevenir a proliferação de significados oblíquos e desenvolver mecanismos que determinem quais são, então, os verdadeiramente concebidos pelo autor (CULLER, 1986, p.17).

Nesse sentido, considerando que a interpretação, uma das atividades cruciais da crítica literária, é uma prática intimamente relacionada à tentativa de se controlar o aumento de sentidos distorcidos, a principal tarefa da crítica feminista é proporcionar a realização de uma leitura de mulher que seja capaz de suscitar uma experiência inédita de leitura, uma explosão de sentidos que oriente os leitores a se questionarem acerca das questões políticas e literárias que circundam as obras. Sendo assim, a crítica feminista se estabelece como um ato político, como uma crítica da resistência que, além de interpretar o mundo, intenciona modificá-lo a partir de um processo de conscientização. Para Sandra Gilbert, a maior ambição da crítica feminista é

decodificar e desmistificar todas as perguntas e respostas disfarçadas que sempre sombrearam as conexões entre a textualidade e a sexualidade, gênero literário e gênero (concebido como uma construção cultural que especifica comportamentos e atitudes atribuídos aos sexos masculino e feminino) identidade psicossexual e autoridade cultural (GILBERT, 1980, p.19).

Graças à crítica feminista, a percepção no processo da leitura é desmistificada, propiciando o desembaçamento da ideologia patriarcal que figura na construção das personagens e nas entrelinhas da própria obra. Isso equivale dizer que ela cumpre o papel de interferir no estabelecido, naquilo que está estagnado e nos é empurrado, questionando as hierarquias, as arbitrariedades, os valores, o cânone, propondo uma revisão mais justa dos textos marginalizados a fim de inseri-los na historiografia literária. Em outras palavras, “a crítica feminista trabalha para demonstrar que o que encontramos nas obras dos autores não são, necessariamente, verdades essenciais e universais, mas conflitos pessoais, sexuais, emocionais e de poder” (HOLLANDA, 1994, p. 65). Para isso, qualquer reivindicação de verdade sobre o objeto só pode ser considerada dentro de uma relativização entre ele e o

sujeito, ou seja, este último deve se inserir no domínio do objeto como uma de suas partes, reconhecendo-se nele. De modo análogo, a noção de verdade só poderá ser articulada se for considerado que todo ato de um sujeito está subordinado às condições de sua subjetividade, interferindo, assim, na apreensão do objeto e construindo realidades alternativas a que nos é imposta.

Por tudo isso que dissemos, o enfoque crítico-feminista nesta dissertação busca desvelar o quanto de ideologia patriarcalista opressora está impresso nas obras literárias escolhidas como objeto de pesquisa. Nosso interesse está na investigação das “imagens de mulher” percebidas no discurso falocêntrico. Os capítulos que se seguem mostrarão a construção das personagens femininas Capitu e a governanta nas obras Dom Casmurro e The

Turn of the Screw, respectivamente para, a partir daí, desconstruir essa mesma ideologia

impregnada e prevenir a proliferação de sentidos distorcidos, gerando, como resultado, uma visão crítica da mulher bem como da sociedade que a rege.

Ao final desse percurso, percebemos como se efetiva a construção do gênero, qual a importância do movimento feminista na literatura e como a linha feminista da crítica literária nos possibilita desvelar as imagens estereotipadas de mulher dentro dos romances adotados. Isso posto, completamos a base teórica do nosso trabalho, a fim de que possamos, a partir de agora, identificar nas representações do feminino de Dom Casmurro e The Turn of the Screw a dominação falocêntrica que trata a mulher como estrangeiro, como o Outro.