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A mulher construída: um olhar estrábico

CAPÍTULO 4 – DO SILENCIAMENTO À LOUCURA

4.6 A mulher construída: um olhar estrábico

De acordo com Dale Spender, a sociedade patriarcal é baseada na crença de que o masculino é o sexo superior, já que representa a ordem sob a qual vivemos. Por isso, muitas práticas sociais e muitas instituições estão organizadas de modo a refletir essa crença. Todavia, como sexo dominante, os homens têm uma visão parcial do mundo mesmo que eles insistam que seus posicionamentos e valores sejam reais. Em conseqüência disso, eles estão na posição de impor sua versão ao invés de compartilhar experiências (SPENDER, 1980, p. 1). Por outro lado, a mulher é definida em termos negativos, além de confinada à posição de inferioridade. Nesse tipo de sociedade, o sexo feminino não possui voz e é desprovido de oportunidades para formular representações positivas a seu próprio respeito (SPENDER, 1980, p. 23).

Essa relação de poder também se percebe na linguagem, já que esta é um produto cultural: “men´s speech is forceful, efficient, blunt, authoritative, serious, effective, sparing and masterful”113, enquanto a linguagem feminina se caracteriza para os homens como “weak, trivial, ineffectual, tentative, hesitant, hyperpolite, euphemistic”114 (SPENDER, 1980, p. 33). Dale Spender acredita que a linguagem foi feita pelos homens e, por isso, é usada para seus propósitos. Pelo fato das mulheres não terem se envolvido na produção de uma linguagem legítima, elas não estão autorizadas a darem força a seus próprios significados simbólicos (SPENDER, 1980, p. 52).

Pensando nisso, podemos afirmar que as personagens femininas aqui analisadas são construídas e produzidas no registro do masculino. Como tal, não coincidem com a mulher,

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O discurso dos homens é forte, eficiente, brusco, confiável, sério, eficaz, econômico e enérgico (tradução nossa).

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”não é sua réplica fiel, como muitas vezes crê o leitor ingênuo. É, antes, produto de um sonho alheio e aí elas circulam neste espaço privilegiado que a ficção torna possível” (BRANDÃO, 1989, p. 17). O conceito de feminilidade que os autores desejavam veicular – submissão, brandura, benevolência, maternidade – se mistura com as imagens de mulher que eles apresentam – transgressoras, dissimuladas, calculistas, monstros – daí se falar que nessas obras as mulheres carregam dentro de si as duas faces do feminino – a de anjo e a de monstro. Esse conceito de “mulher íntegra” é tradicionalmente visto como um negativo do masculino, uma falha e não uma alteridade. Sendo assim, compreende-se que a noção de normalidade feminina faz parte do modelo ideal de mulher engendrado pelo homem. Isso equivale dizer que

de um lado estaria, então, a razão masculina e, de outro, a “des-razão” feminina. A volta à normalidade estaria basicamente relacionada com o “re- conhecimento” do referente masculino, como se só o espelho masculino refletido no caos psíquico da heroína viesse lhe trazer a luz da razão. Loucura, então, está para a não-coincidência, não-concordância com o narcisismo masculino (BRANDÃO, 1989, p. 58).

Nesse sentido, a loucura em The Turn of the Screw está para o lado feminino assim como a razão está para o lado masculino. Isso quer dizer que a mulher sozinha e atormentada por sua consciência é “uma mulher carente de proteção masculina, sem a qual ela se anula, restando-lhe aceitar a proteção/dominação dos homens, único antídoto para sua loucura” (BRANDÃO, 1989, p. 61). Como a governanta não encontra quem a proteja (mesmo querendo muito a presença de um homem na casa), seu destino está fadado à tragédia, à loucura e ao caos que sua condição lhe impõe.

Acreditamos que The Turn of the Screw tem o intuito prioritário de caracterizar a preceptora: suas visões, sua falta de arrependimento, sua super proteção, enfim, todo seu comportamento. Lembremos que a personagem não está o tempo todo sozinha, mas isso não significa que ela não se sinta solitária. Isolada numa posição entre a família e os empregados, sua situação na mansão apresenta ao leitor uma mulher com caráter duvidoso, vivendo num meio nada hostil, mas inegavelmente mórbido. E nesse momento nos vem à mente uma pergunta feita por Edmund Wilson (1962, p. 112) que parece bastante pertinente a esse trabalho: What is the reader to think of the protagonist?115, e vamos mais além: Como o autor

queria que enxergássemos a preceptora?

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Durante toda a leitura nos deparamos com uma imagem de mulher construída a partir de determinadas características inerentes à sua função, além de ser consideradas naturais ao gênero feminino: inocência, discrição e subserviência. Apesar da obra não apresentar um final tradicional, esse modelo não é transgredido: a mesma mulher que inicia suas memórias é a que no final mata, acreditando cumprir sua tarefa, dever este delegado por um homem – o patrão. Esse tipo de caracterização do feminino perpassa uma concepção de que a mulher não é capaz de ser feliz num ambiente diverso nem tampouco de superar dificuldades. Ao contrário, se mostra dependente, neurótica e imatura. Para Edmund Wilson, as mulheres nas obras jamesianas “suffer from Freudian complexes or a kind of arrested development, sometimes they are neglected or cruelly cheated by the men to whom they have given their hearts”116 (1962, p. 116).

Em Dom Casmurro a questão da autoridade masculina sobre a mulher está evidente: Capitu não tem direito à voz e seu destino está nas mãos do marido que dita as regras e impõe à esposa suas decisões. Mesmo refutando, Capitu abdica em favor dos interesses do homem perdendo a oportunidade de se expressar e apesar de sua subserviência, é criticada por Bentinho, acusada de adultério e condenada à solidão do exílio. Isso não é novidade nesse tipo de texto, onde a lei do patriarcado predomina e a mulher é tida como mera extensão do homem, ou seja, está à mercê de seus caprichos e decisões. Segundo Dale Spender, “for generations women have been silenced in patriarchal order, unable to have their meanings encoded and accepted in the social repositories of knowledge”117 (SPENDER, 1980, p. 74).

Sendo assim, Capitu só tem uma escolha “to be silent, or if not, then to be classified as talking too much or talking without any authority”118 (SPENDER, 1980, p. 108) e para ela o silêncio “is more than convenient: it is essential”119 (SPENDER, 1980, p. 108).

Ao final de nossas análises, acreditamos que tanto Capitu quando a governanta ao mesmo tempo em que são visões estrábicas de seus respectivos autores, no sentido de serem produtos de um discurso falocêntrico que as enxerga como marionetes à mercê de qualquer complicação, as mulheres também estão à disposição de personagens masculinos que não apenas refletem essa prática, mas a validam num ambiente ficcional que prima pela

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Sofrem de complexos freudianos ou de um tipo de atração, algumas vezes elas são abandonadas ou cruelmente trapaceadas por homens a quem dão seus corações (tradução nossa).

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Por gerações as mulheres têm sido silenciadas pela ordem patriarcal, incapazes de terem seus significados alterados e aceitos nos repositórios sociais de conhecimento (tradução nossa).

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Ficar calada, senão, ser classificada como aquela que fala demais ou aquela que fala sem nenhuma autoridade (tradução nossa).

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transposição da realidade. Vale ressaltar que “The Turn of the Screw, not merely is the governess self-deceived, but that James is self-deceived about her”120 (WILSON, 1962, p. 143).

Além disso, em ambas as obras, a inteligência central, aquela que reflete a consciência do autor e pela qual temos acesso aos fatos, nos é apresentada de maneira fragmentada, como se fossemos descobrindo-a pouco a pouco e somente com o decorrer dos acontecimentos. Na novela jamesiana, a governanta representa uma classe que o autor pretendia atacar. Por não nomeá-la, Henry James deixa claro que não há particularização e que cada episódio bem como suas conseqüências vale perfeitamente para qualquer preceptora inglesa do século XIX.

Nos textos analisados, o que se pode perceber é um jogo de espelhos onde às personagens femininas cabem duas soluções: ou refletir a imagem masculina, metonímica e metafórica de uma ideologia opressora, ou perder-se no vazio da loucura e da marginalização. O discurso feminino é, então, ou pura repetição ou uma falha, produtora da desordem e da desrazão (BRANDÃO, 1989, p. 52-53). Enquanto as mulheres reproduzem a visão masculina de mundo, elas mantêm a ordem, não quebram as regras e asseguram, assim, a supremacia do modelo falocêntrico.

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The Turn of the Screw não é meramente o auto-engano da governanta, mas o auto-engano de James sobre ela

CONCLUSÃO

“Os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo mesmas. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino; a vigiada feminina. Assim, a mulher transforma-se a si mesma em objeto – e muito especialmente um objeto visual: uma visão”. John Berger (1972, p. 51)

Examinando a produção narrativa de autoria masculina no Brasil do século XIX, verificamos o quanto as personagens femininas reduplicam o estereótipo patriarcalista. Machado de Assis e Henry James não fugiram ao modelo falocêntrico. A astúcia de Capitu e a independência superprotetora da governanta não passam de recursos tidos como próprios da essência feminina para destilar o autoritarismo do sistema. A trama de Machado não nega o poder patriarcal, pelo contrário, afirma o seu absolutismo, mas estando o pai fisicamente ausente, o autor pode, ao mesmo tempo, mostrar o absolutismo do poder e seus mecanismos de autodefesa, quando ameaçado.

Mesmo Machado sendo um defensor das mulheres, ainda não havia espaço para o questionamento da condição da mulher na puritana e moralista sociedade da época. É nesse pano de fundo que surge Capitu, a metáfora da exclusão da voz e do direito à defesa mostrando que numa sociedade exigente do cumprimento do paradigma de valores fixos atribuídos ao feminino, a mulher infratora deve ser condenada à pena do exílio. Há claramente uma tentativa de silenciar a mulher, reprimindo sua experiência numa visão alienada, mentirosa e degradante.

Além disso, Machado de Assis e Henry James perpetuam a construção de mulheres dentro de um espaço restrito e lançam seus olhares para comportamentos e fatos ocorridos no ambiente doméstico. Tal olhar mostra o não-estar feminino no mundo, ou seja, sua ausência no lugar social de prestígio e também o seu não-saber, sua incapacidade moral e intelectual. Nesse sentido, a mulher é vista superficialmente, já que os eventos se desenrolam num universo feminino limitado e sempre retratado como um ambiente negativo e inferior. Nas obras fica evidente que a ausência da mulher no campo pertencente ao homem – o meio externo, visto como superior – detecta preconceitos que norteiam o comportamento feminino na sociedade. Não podemos negar o fato de que The Turn of the Screw e Dom Casmurro são