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CAPÍTULO 4 – DO SILENCIAMENTO À LOUCURA

4.2 As obras pelo viés da psicanálise

4.2.2 A paranóia do auto-engano

O romance Dom Casmurro é considerado por Ivan Teixeira “a autopsicanálise de Bento Santiago” (1988, p. 212), já que o personagem busca uma compreensão para a atitude de ter abandonado a esposa e negado a paternidade do filho. O grande questionamento da obra é: seria Capitu “uma infiel, adúltera, com o produto do pecado exposto pela presença do filho, ou Bentinho seria um obsessivo ciumento que a neurose transformara num depressivo crônico, que teria apenas como mulher íntegra a própria mãe?” (FREITAS, 2001, p. 70-71).

Nessa paranóia do engano, o narrador se divide entre o amor e o ódio, entre o tempo passado que revive em suas memórias e o tempo atual que o condena a solidão. Como já vimos no segundo capítulo, esse pensamento paradoxal nos é apresentado por Bento devido a sua posição de promotor de direito. Contudo, Capitu não possui nenhum advogado de defesa e a dúvida de sua culpabilidade dividiu opinião por muito tempo. Todavia, procurar nas entrelinhas do texto a solução para esse impasse é tarefa inútil, pois

Bento é vítima, réu e juiz. Ele, na promotoria, acusa a mulher; na defensoria, argumenta a favor do réu, e como juiz se absolve. Ou seja, como juiz das ações imputadas à Capitu, a condena; como um hipotético réu de suas próprias ações, se absolve. Não há enigma porque o discurso é de Bento – Capitu não tem discurso próprio (FREITAS, 2001, p. 125).

Era intenção de Machado levantar questões, relativizando as emoções do ser humano. A verdade é que “a ironia do nosso mestre foi criar um estado de espírito no leitor que o levasse a apaixonadamente tomar um partido” (FREITAS, 2001, p.81). No romance essas dúvidas são incutidas no leitor a partir de vários episódios da narrativa como, por exemplo, o fato do filho de Capitu se parecer com Escobar e dela, por uma enorme coincidência, apresentar certa semelhança com a mãe de Sancha.

Tomando a teoria de Freud explica-se o silenciamento de Capitu na narrativa a partir do sentimento de castração de Bentinho. Horrorizado com a dominação feminina, todo homem teme “sucumbir ante estas medusas insaciáveis” (FREITAS, 2001, p. 129) e, assim, produz fantasias em exposição permanente. O mesmo ocorre com Bentinho, com medo de perder a autoridade e seu lugar de destaque na dominação, ele silencia a mulher que “sempre comanda a ação, que está sempre na posição masculina no sentido freudiano da atividade, em oposição à passividade, posição feminina” (FREITAS, 2001, p. 129).

O estereótipo da mulher como fraca, impotente, inferior e subjugada é construído de maneira gradativa em Dom Casmurro. Já vimos que Capitu aparentemente simboliza a mulher independente, já que volta ao modelo patriarcal e reduplica o sistema falocêntrico de dominação. Mas, apesar de não conseguir se libertar das amarras do marido, de ver o casamento como única maneira de ascensão e de não resistir à decisão do homem, não podemos negar que é Capitu que domina os pensamentos de Bentinho. É a mulher erotizada que lhe abre as portas para o sexo, fazendo com que a questão sexual passe a fazer parte de seus pensamentos. A análise do texto “nos mostra como essas pulsões sexuais, se provocavam um desejo incontido no rapaz, por outro lado encontravam a repressão, que cumpria seu papel. A instância superegóica o açoitava, fazendo-o rezar para livar-se do mal, do vício” (FREITAS, 2001, p. 131).

Para Bento, criado para ser padre e pertencente a um meio onde o sexo era visto como conseqüência do matrimônio e somente para a procriação, o desejo sexual deve ser reprimido e aparecerá como pecado, como algo que precisa ser expurgado imediatamente. Exemplo disso aparece no 58º capítulo, quando Bento, voltando para o seminário com José Dias, vê uma mulher cair na rua e se fixa em suas meias e ligas de seda. Depois da cena, o adolescente não se concentra mais nas palavras do agregado e passa a desejar que qualquer mulher caísse para poder ver suas “meias esticadas e as ligas justas” (p.126). Mais tarde, depois de um sonho tórrido com a cena da queda, Bentinho não consegue dormir e procura através das preces um meio de afugentar seus pensamentos pecaminosos.

Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para concertá-la bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente não unia a frase nova à antiga (58º capítulo, p. 127).

Vamos percebendo que Machado constrói um personagem “conflituado, não só na sua relação com as mulheres, como na sua relação com o outro” (FREITAS, 2001, p. 132). Por ser um medroso (43º capítulo, p. 104) e mentiroso (44º capítulo, p. 106), de acordo com Capitu, Bento não interfere no destino, não é sujeito de sua própria vida, apenas sofre sua ação sem se mexer. Por essa razão em Dom Casmurro a personagem feminina só aparentemente ocupa o segundo plano, apesar de não fazer parte do título, Capitu é o centro da narrativa. Isso se deve a fato dela ser

o personagem de maior densidade psicológica. De todas as mulheres criadas por Machado, Capitolina é a que mais suscitou debates, reuniões, trabalhos, etc. A trama da vida conjugal da família Santiago é composta visando manter uma dúvida permanente, não solucioná-la. Aliás, a fidelidade absoluta não é passível de garantia, pois o mestre também colocou em dúvida a honestidade de Sancha. Se considerarmos o texto pela ótica da psicanálise, este é o romance que mais permite se pôr em prática a questão da dúvida, que pode sempre se apresentar como produtiva em oposição à certeza delirante (...) Capitu é o personagem que encarna a dúvida, a incerteza, a não garantia (FREITAS, 2001, p. 164).

Marta de Senna engendra a teoria de que Bento Santiago é um neurótico obsessivo, querendo se passar por depressivo. Baseada no fato de casmurro significar, numa primeira acepção da palavra “teimoso, obstinado, cabeçudo”, a autora acredita que estamos lidando com “um narrador dissimulado, que desorienta deliberadamente o leitor, conduzindo-o por pistas falsas” (SENNA, 1991, p. 95-96). Nesse sentido, “o personagem narrativo (e narrador) “louco” se faz passar por lúcido (a tal ponto que muitos de seus leitores acreditam nele), para atingir o fim específico de nos convencer de um adultério que possivelmente só existe na sua imaginação prodigiosa” (SENNA, 1991, p. 97). Ele mesmo confessa o quanto de delírio e fantasia sua narrativa apresenta:

Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho Novo, reproduzindo a de Matacavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo (40º capítulo, p. 99 – grifo nosso).

Quando afirma que o leitor já conhece suas fantasias, isso quer dizer que boa parte do que narra é produto de sua imaginação fértil, capaz de plenos delírios. Além disso, nesse mesmo capítulo quando compara suas fantasias a uma égua ibera, confessa dar asas a pensamentos que só existem em sua cabeça, tratando da verdade virtual como verdade real, inventando “uma verdade narrativa, que, por ser inventada, precisa ser proclamada como

verdadeira” (SENNA, 1998, p. 94). Por essa razão, insiste dizer apenas a verdade (“e sendo este livro a verdade pura” (58º capítulo, p. 127)), mesmo deixando escapar que tudo é produto de uma confusão mental: “vou esgarçando isto com reticências, para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e confusas” (58º capítulo, p. 127 – grifo nosso); “não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes” (59º capítulo, p. 128 – grifo nosso).

A autora acrescenta que o narrador possui uma personalidade “fragmentada, dissociativa, quase esquizofrênica” já que “Bentinho perde a razão e é incapaz de exercer um controle voluntário sobre a emoção que o domina” (SENNA, 1998, p. 152). Se entendemos a loucura como “a perda das capacidades racionais ou como a falência do controle voluntário sobre as paixões” (PESSOTTI, 1994, p. 7), podemos demonstrar a loucura do narrador a partir de determinadas passagens de seu relato. Exemplo disso é o 75º capítulo, quando em visita à Capitu, Bento surpreende uma troca de olhares entre esta e um rapaz que passa a cavalo e deixa registrado o desespero que isso lhe causa:

Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer- me padre de uma vez. Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo, muito desprezo; voltava-lhes as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes como se a tivesse entre eles. (...) eu continuava surdo, a sós comigo e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterra-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue... (75º capítulo – p. 152).

No trecho acima se percebe que sua reação é desproporcional e revela claramente um desequilíbrio emocional, com requintes de crueldade, mesmo sendo apenas no plano da imaginação. A ruína e a loucura de Bento refletem a sua incapacidade de uma comunicação autêntica. Sendo um homem inadaptável, “seu mal não é a paixão por Capitu, é o anacronismo de seu discurso sobre essa paixão” (MURICY, 1988, p. 92). Essa falha em se comunicar pode ser percebida logo no início da obra, onde o leitor avisado já prevê que todas as situações vivenciadas pelo narrador resultam de mal-entendidos. No capítulo inicial, por exemplo, ocorre o primeiro equívoco: o narrador explica que o título do livro fora dado por um jovem poeta de trem supondo que ele dormira por achar ruim seus versos, quando na verdade o narrador havia cochilado por estar cansado da viagem. Com o decorrer da narrativa, situações como essas farão de Bentinho um homem amargurado, desconfiado e infeliz.

É por não se comunicar verdadeiramente com Capitu que Bentinho a supõe infiel, ainda adolescente. É pela mesma razão que Bento Santiago a imagina esconder-lhe segredos, já adulta. É pela mesma razão que o narrador a “sabe” culpada do crime de adultério, crime que ela jamais confessa, crime de que ele tem certeza, não por palavras que ela diga, mas por dois olhares que o narrador interpreta: o olhar de “ressaca” que dirige a Escobar morto (capítulo CXXIII) e o olhar “de confusão” com que contempla alternadamente o filho e a fotografia de Escobar (capítulo CXXXIX) (SENNA, 1998, p. 48-49).

Tanto The Turn of the Screw quanto Dom Casmurro são obras omissas, cabendo ao leitor evocar tudo aquilo que não encontrou neles e assim preencher as brechas que despontam em cada linha. São obras que pendem para a narrativa psicológica e a narrativa de mistério. A dúvida do leitor resulta da estratégia textual inteligente concebida a partir de um discurso ambíguo que desconstrói seus próprios narradores. Do ato de narrar lúcido de Dom

Casmurro, “o autor faz emergir, indisfarçável, a loucura oblíqua e dissimulada de uma

personagem que não consegue atar as duas pontas da vida, logrando, ao invés disso, compor a narrativa que atestará, em definitivo, a sua insanidade” (SENNA, 1998, p. 103).

Em The Turn of the Screw, o leitor se depara com uma crise interpretativa justamente por nos apresentar uma protagonista em crise. Devemos lembrar que nós ouvimos de Douglas, o narrador do prólogo apaixonado pela governanta, que a nossa condutora é uma jovem inocente cujo patrão tenta tirar vantagens. Todavia, devido a sua conexão emocional com a governanta não há meios de sabermos se sua inocência é real. Na obra, a loucura tomada como um referente simbólico da ruptura entre o indivíduo e a sociedade, nos leva ao tema que ressurgiria com insistência no romance contemporâneo: a perda da identidade. A heroína problemática da trama mostra sua incapacidade no reconhecimento do mundo exterior e também a impossibilidade do auto-reconhecimento. Nesse sentido, a verdadeira identidade da governanta se dilui na sua crise existencial, deixando à vista uma imagem distorcida.

Assim como na obra jamesiana, em Dom Casmurro a condição problemática do narrador extrapola os limites que a narrativa impõe, se referindo à própria condição humana: o mundo absurdo onde o homem se exilou dos outros homens e de si mesmo. Na falência social e afetiva da governanta e de Bentinho, contemplamos “os confins da realidade, ávida encarcerada no paradoxo que imobiliza todos os atos. Por trás da aparente agitação da existência, o mundo permanece estático e absurdo, vazio e imutável; mas, ainda assim, infinitamente humano” (CHAVES, 1978, p. 47).

Bentinho e a governanta narram suas tragédias domésticas, envolvendo várias personagens, todas elas transfiguradas por suas melancólicas lembranças. A evocação da memória é o fio condutor das narrativas; “o tempo é o pretérito, ainda quando nos dá a

impressão de fluir no presente da leitura. O tempo é o da memória, com todas as distorções que esse mecanismo implica, de tal modo que rememorar corresponde a recuperar o tempo perdido, e vice-versa” (MOISES, 2001, p. 53). Por essa razão, o que se observa em The Turn

of the Screw e Dom Casmurro é que a noção de realidade passa pela esfera da subjetividade.

Essa nova forma de representação consiste em traçar na escrita as impressões digitais inscritas na imaginação e na sensibilidade por um universo fora dos eixos criando, assim, uma realidade alternativa, distorcida. Sobre esse tema discutiremos a seguir.