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Os pontos de contato entre Dom Casmurro e The Turn of the Screw

CAPÍTULO 4 – DO SILENCIAMENTO À LOUCURA

4.1 Os pontos de contato entre Dom Casmurro e The Turn of the Screw

Ao longo de nosso percurso, percebemos que as obras, aparentemente tão díspares, possuem alguns pontos de contato, os quais nos permitiram realizar um trabalho comparativo muito interessante. Essas interseções podem ser percebidas tanto naquilo que tange a representação do feminino quanto ao que diz respeito à estrutura narrativa dos romances. A seguir, elencamos alguns dos pontos de contato que acreditamos existir entre the Turn of the

Screw e Dom Casmurro e que serão melhores detalhados nos itens que se seguem.

1. Em ambas as obras não há real senão o imaginário; a verdade é sempre particular, é a verdade de alguém: perguntar se os fantasmas existem verdadeiramente ou se Capitu traiu Bentinho não tem sentido, desde que alguém acredite nisso. Isso equivale dizer que os relatos são tentativas “de resgatar da transitividade do tempo os momentos vividos. Assim, a expressão elogiosa resguarda um simulacro, pois a memória, animadora da narrativa, consegue entretecer uma ilusão de vida, jamais a própria vida” (SARAIVA, 1993, p. 57).

Embora os relatos estabeleçam a representação mimética do real como norma primeira, eles ampliam o horizonte dessa representação, interligando-lhes o universo do romanesco; simultaneamente, projeta o questionamento quanto à veracidade do real, cujas fronteiras passam a confundir-se com as do imaginário. Em outras palavras,

através da auto-referencialidade, as obras expõem sua natureza ambígua:

sendo pretensamente real, é integralmente fictício. Assim, a auto-

referencialidade, construída por desdobramentos, espelhismos ou prolongamentos quer do relato sobre si mesmo, quer deste em relação a outros textos, lembra ao leitor a imprecisão dos limites do diário, ou melhor, mostra serem eles promovidos pela ficção (SARAIVA, 1993, p. 184-85).

2. Nos romances a forma autobiográfica traz em si mesma a hipótese do auto-engano, pois entre o relato autobiográfico e a subjetividade narradora não se interpõe um terceiro, que atue como mediador. Não temos acesso aos fatos, o que temos são as impressões dos narradores acerca de determinado assunto. Sendo assim, a memória está mais para a construção do que para o resgate do original e, por isso, deve ser vista enquanto perda, lacuna.

Em Dom Casmurro, por exemplo, o apelo que se faz ouvir no texto de Bento Santiago é o de um pacto de realidade. Em The Turn of the Screw isso não muda muito, haja vista que

o discurso psicótico da governanta se caracteriza exatamente por seduzir o leitor com a pretensão do real. Sendo assim, o recurso da autobiografia não passa de “uma estratégia narrativa que transpõe os limites do puro documento para desembocar na ficção” (BRANDÃO, 1989, p. 158). Nos romances aqui estudados, introduzir-se no universo da autobiografia é introduzir-se no íntimo da governanta e de Bentinho, em seus discursos caracterizados pela falta e pela perda que procuram obsessivamente reconstituir seus sujeitos.

3. Os autores não dão importância aos acontecimentos e concentram toda a atenção na relação entre o narrador e sua consciência. Isso acontece porque o núcleo da narrativa será sempre uma ausência e sua procura é a única presença possível. Os objetos não existem e o que intriga é a experiência que suas personagens podem ter dos objetos. “Não há outra “realidade” além da psíquica, o fato material e físico está normalmente ausente e nunca saberemos mais do que a maneira como ele é vivido” (TODOROV, 1969, p. 197).

4. A dubiedade da linguagem, o objetivo encoberto do ato de escrita e a imprecisão dos limites entre o eu, enquanto sujeito da enunciação e enquanto objeto do enunciado, conferem aos narradores um caráter ambíguo, que se projeta sobre a narrativa. Centrada na figura do narrador, a ambigüidade resulta das características, reciprocamente atuantes, do enunciador e de seu discurso.

O domínio do universo diegético e a referencialidade temporal permitem a Dom Casmurro reinterpretar os episódios do relato; salientar os procedimentos das demais personagens que condizem com os objetivos dele; antecipar fatos que, em relação à história, ainda devem ocorrer; e, sobretudo, selecionar os acontecimentos cuja evolução registra a metamorfose de Bento Santiago em Dom Casmurro (SARAIVA, 1993, p. 104-105).

5. Em nenhuma das narrativas o narrador tem acesso à interioridade das outras personagens; a limitação do saber preenche os textos com o registro de sentimentos observáveis e com deduções sobre o caráter, a moral e os costumes dos outros envolvidos. Embora procure sustentar uma postura objetiva diante de dados que fogem ao âmbito de seu conhecimento, os narradores jamais são neutros.

A ausência de neutralidade conjuga-se à onisciência e permite-lhe usufruir de liberdade e autonomia por dar vazão aos juízos de valor e atuar sobre o destinatário como uma “consciência narradora”, cujo saber se apóia na

distinção radical entre passado e presente e, por isso, lhe garante o direito de contar e de ajuizar sobre ambos (SARAIVA, 1993, p.51).

6. A autoridade dos relatos é masculina, ou seja, em ambas as obras temos personagens masculinos que se apropriam da palavra para falarem sobre o corpo feminino, isso porque “a mulher, mesmo quando fala, repete o discurso de um Outro e não o seu próprio” (BRANDÃO, 1989, p. 55). Apesar de The Turn of the Screw ser narrado pela governanta, a autoridade do texto é uma autoridade masculina. O escritor escreve na voz feminina, mas acrescenta à narrativa feminina um prólogo masculino, onde há dois narradores que antecedem a preceptora, “contextualizam e explicam a narrativa dela, dão legitimidade a sua história” (MONTEIRO, 2000, p. 130). Isso quer dizer que

a existência da história é assim assegurada através da constituição de uma corrente narrativa em que os narradores retransmitem a história de um para o outro. Consequentemente, a origem da história não é atribuída a nenhuma voz. O que se tem é um efeito ecoante, algo que é produzido por vozes que reproduzem vozes anteriores (MONTEIRO, 2000, p. 129).

7. Ambas as mulheres fazem parte de uma construção que pretende mostrar a mulher como monstro, criando uma armadilha narrativa onde a voz da autoridade – a masculina – faz parecer que a mulher perversa já se instala a cada linha desde o princípio do relato (a Capitu da Glória já estava dentro da de Matacavalos e a governanta assassina e neurótica já estava dentro da inocente filha de pároco).

8. Dom Casmurro e The Turn of the Screw tratam do olhar feminino como substituição do silêncio imposto pelo patriarcado. No romance machadiano fica claro que os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu representam a voz da personagem e travam uma luta interna com o narrador detentor do poder e do discurso. Na obra jamesiana, é através do olhar que preceptora descobre sua sexualidade. Isso ocorre em pelo menos dois momentos da narrativa: quando ela se sente objeto do olhar do patrão em Harley Street e depois quando a figura de Peter Quint a encara do alto da torre.

9. As personagens femininas em estudo estão contextualizadas na sociedade puritana e machista ocidental do século XIX, a qual vê no casamento a única maneira digna para a mulher ascender ou então a profissão do magistério como uma alternativa para as solteironas. Nesse contexto histórico-social se situam Capitu – que luta toda primeira parte do romance para se casar com Bento – e a governanta – que vê na profissão de

preceptora o único meio de sustento digno. Os autores, apesar de criarem personagens femininas fortes e enigmáticas não fogem do modelo falocêntrico91 de dominação, já que não concebem a mulher fora do espaço destinado a elas pelos homens – o interior doméstico. Na verdade,

as personagens estudadas só têm a possibilidade de ocupar um espaço dentro da sociedade em que vivem: aquele que lhes é reservado pela expectativa criada por uma ideologia autoritária e patriarcal. A nenhuma delas é possível sair de seu espaço fechado para investir seu desejo num mundo mais amplo do trabalho e da realização pessoal. Cabe-nos acrescentar que, repetidoras de um discurso alheio, essas heroínas são, também, curiosamente, criaturas criadas por autores masculinos que falam por elas (BRANDÃO, 1989, p. 55-56).

Nesse sentido, Capitu e a governanta não apontam saídas ao paternalismo então vigente, por não conseguirem existir num meio que não lhes pertence, sendo então condenadas ao exílio e a loucura. Em nenhuma delas a mulher é revolucionária, pois não existem sem a figura masculina – a governanta – nem contestam a dominação patriarcal – Capitu acata sem contestar a decisão do marido.

10. Ambas as mulheres em estudo são caracterizadas a partir da idéia do duplo – anjo e monstro. Tanto Capitu quanto a governanta possuem as duas faces do feminino que se desdobram de acordo com as situações a que são expostas. Nas narrativas, essas mulheres oscilam entre cumprir a função da mãe dedicada, protetora do lar e entre a mulher fatal, o monstro que corrompe e rouba a inocência.

Aqui pode-se dividir aquele rol de tipos femininos em duas categorias, segundo as relações com a sexualidade: uma é a freira, casta mas repositório de fantasias projetada pela libido masculina circundante; outra é a promíscua em suas várias formas. (...) Esta radicalização intransigente dos papéis femininos parece ser um ideal da cultura masculina (BRANDÃO, 1989, p. 105).

De acordo com Ruth Silviano Brandão, “o fenômeno do duplo mantém íntima relação com os processos de dissociação de personalidade, de cisão do indivíduo”. Além disso, “esse fenômeno da partição, da divisão, pode ser também analisado como um fenômeno tipicamente

91

Adotamos neste trabalho a definição de Gayle Rubin em The Traffic in Women. In: REITER, Rayna, ed., Toward an Antropology of Women. New York: Monthly Review Press, 1976. Traduzido pela ONG SOS CORPO do Recife. Para a autora, o phallus traz “um significado de dominação dos homens sobre as mulheres. (...) o phallus é mais que um traço que distingue os sexos: ele é a personificação dos status de macho, ao qual os homens acendem e aos quais certos direitos são inerentes – entre eles, o direito a uma mulher. É uma expressão da transmissão da dominância masculina” (p. 24-25).

feminino” (BRANDÃO, 1989, p. 157), já que a mulher é marcada pela separação, pela divisão de seu corpo e de seu psiquismo.