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CAPÍTULO 1 – PERCURSO TEÓRICO

1.2 A Trajetória da Crítica Feminista

1.2.2 O gênero como produto social

Ana Cristina Cesar já dizia que em todos os aspectos da vida é o social que domina, é o ser construído pela cultura do meio e da época que prevalece (1999, p. 225). Pensando nisso, a noção de gênero está engendrada na extensão das diferenças biológicas e sexuais.

Simone de Beauvoir já havia sugerido que a criança que nasce com os órgãos reprodutores femininos não necessariamente crescerá como mulher. Ela se tornará mulher, ou melhor, se transformará em mulher e, levando em conta o meio social que a rodeia, se desenvolverá em resposta às expectativas que a sociedade tem da mulher. O produto final “mulher” é o resultado da educação e do condicionamento impostos e se diferencia de acordo com as influências dominantes. Sendo assim, o ser socialmente construído é sujeito de sua cultura, grupo étnico, religião, etc.

De acordo com Linda Nicholson, o termo “gênero” é usado de duas maneiras entre as feministas. De um lado, “gênero” se opõe a “sexo” com o intuito de determinar aquilo que é socialmente construído ao invés do que é biologicamente dado. Nesse sentido, essa idéia é tomada como referência à personalidade e ao comportamento do indivíduo e não ao corpo, ou seja, aqui “gênero” e “sexo” devem ser entendidos como distintos. Por outro lado, “gênero” faz alusão a qualquer construção social que corrobore com a distinção masculino/feminino, em outras palavras, o “sexo” continua na teoria feminista como algo não pertencente à cultura e a história e vem sempre enquadrando a diferença homem/mulher (NICHOLSON, 2000, p. 9).

Isso equivale dizer que por muito tempo as feministas usaram o termo “gênero” para se referirem ao resultado do processo social que transformava as meninas em adolescentes e posteriormente em mulheres. De fato, o movimento feminista enfatizou que o termo dizia respeito à construção sociocultural de ambos os sexos e que seu interesse estava em examinar e entender as diferenças sociais entre homens e mulheres e suas impotências políticas e culturais. Depois, os estudos sobre gênero analisaram a construção dos atributos masculinos e as típicas atitudes de determinadas sociedades e culturas em momentos históricos específicos. Durante todo o século XVII, o corpo da mulher era considerado uma versão inferior do corpo masculino e essa distinção era vista menos como algo biológico, do que como expressão lógica de uma determinada ordem implantada pela diferença e pela hierarquia. Os órgãos sexuais femininos eram encarados como menos desenvolvidos do que os masculinos. Exemplo disso é que a vagina e o colo do útero não eram vistos como órgãos distintos do pênis, mas como uma versão inferior do falo. O aumento do materialismo nesse momento da história fazia surgir duas tradições muito diversas: a primeira considerava as características físicas do indivíduo como fonte de conhecimento sobre o próprio indivíduo e a segunda discorria sobre processos que formariam a identidade em oposição ao corpo. Nesse período fica bastante evidente a crença de que as pessoas e o meio que as cercava estavam interagindo

constantemente e, mais do que isso, todas as forças sociais produziam profundos efeitos sobre as vidas dos indivíduos.

De acordo com Linda Nicholson, as diferenças biológicas entre homens e mulheres, dentro dessa visão de mundo, “eram percebidas mais como ‘marcas’ da distinção masculino/feminino do que como sua base ou sua ‘causa’” (NICHOLSON, 2000, p. 9). Somente quando os textos de Aristóteles e da Bíblia perderam sua autoridade, a natureza assumiu a função de embasar a distinção notada entre homens e mulheres. Nesse sentido, na medida em que o corpo se transformou em representante da natureza, ele assumiu a “voz” da natureza, em outras palavras, o corpo precisou “falar” dessa distinção de maneira binária. Foi aí que começou a se pensar numa noção bissexuada do corpo, em outras palavras, a mulher deixava de ser inferior ao homem para se tornar diferente dele.

Todavia, somente durante o século XVIII, houve a substituição daquela idéia da mulher como versão inferior ao homem por uma na qual o corpo era visto como fonte desse binarismo. A conseqüência disso é “a nossa idéia de identidade sexual – um eu masculino ou feminino precisamente diferenciado e profundamente enraizado num corpo diferenciado” (NICHOLSON, 2000, p. 20), em outras palavras, “desde o nascimento, o sexo determina o lugar do indivíduo de um lado ou de outro da fronteira, primeira seleção que será reafirmada pela prática social” (OLIVEIRA, 1999, p. 33).

No século XIX, o gênero era considerado análogo à raça e justamente por isso podia- se usar a diferença social para explicar a disparidade de gênero e vice-versa. Nesse sentido, as raças inferiores representavam o tipo “feminino” das espécies humanas, e as mulheres faziam parte de “raça inferior” de gênero. Para a biologia evolucionista, a mulher era o “elemento conservador” e possuía os traços mais primitivos, ao passo que o homem era considerado pertencente a uma raça superior. Tendo sido apresentada como equivalente às raças inferiores, a mulher acabava tornando-se uma categoria racial, onde seus traços e qualidades podiam ser utilizados convenientemente para a compreensão analógica das raças inferiores.

No século seguinte, as feministas instalam uma nova abordagem para a noção de gênero. De acordo com Luise Von Flotow, o movimento feminista do final dos anos 60 e início dos anos 70 focalizava dois aspectos da diferença feminina. Em primeiro lugar, tentava mostrar como as diferenças entre homens e mulheres deviam se interligar de muitas maneiras aos estereótipos comportamentais artificiais que vinham com o condicionamento do gênero. O outro aspecto da diferença enfatizou, ao invés das experiências femininas compartilhadas, sua solidariedade e seu senso comunitário, em outras palavras, enxergou o gênero como uma forma de condicionamento culturalmente deliberado que precisava ser criticado e rejeitado,

mas que também transcendia as culturas individuais e poderia transformar mulheres em força política (FLOTOW, 1997, p.6). A partir desse processo, o gênero foi entendido como a base da subordinação feminina na vida pública e privada, justamente por afetar todas as mulheres.

A maioria das feministas desse período considerava que o conceito de “gênero” foi instaurado para apoiar o de “sexo” e não para substituí-lo, aceitando a idéia de que determinados fenômenos biológicos explicavam reais diferenças entre homens e mulheres e que “a distinção masculino/feminino, na maioria de seus aspectos essenciais, era causada pelos “fatos da biologia”, e expressada por eles” (NICHOLSON, 2000, p. 10). Elas ocuparam a vanguarda daquelas que insistem nas semelhanças entre mulheres e em suas reais diferenças em relação aos homens. Justamente por isso, muitas feministas dessa época endossaram o determinismo biológico20.

Entretanto, para Bila Sorj, o gênero é aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações. Essa transmissão envolve a noção de que o poder é distribuído de modo desigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organização da sociedade (SORJ, 1992, p.15-16). Exemplo disso é que tanto o feminino como o masculino, para a psicanálise, não são categorias sexuais nem fisiológicas, mas são, sobretudo, configurações psíquicas capazes de variar de indivíduo para indivíduo, independentemente de seu sexo biológico. Para Freud a feminilidade é adquirida. Sempre utilizado em contraste com “sexo” para descrever o que é socialmente construído em oposição ao que é biologicamente dado, o gênero refere-se ao comportamento e à personalidade e não ao corpo. De fato, a tendência a ver o corporal e o cultural inter-relacionados está expressa a partir do materialismo dos séculos XVII e XVIII que considerava as características físicas do indivíduo como fonte de conhecimento sobre o indivíduo.

Toril Moi, em muitos de seus estudos, também endossa a teoria de que a noção de gênero é construída pelo meio e acredita que esta representa modelos de sexualidade e comportamento impostos por normas culturais e sociais, a fim de reservar às mulheres e aos homens aspectos puramente biológicos da diferença social. É a partir daí que se engendra o conceito de opressão patriarcal que, segundo a autora, “consists of imposing certain social standards of femininity on all biological women, in order precisely to make us believe that the

20

Entende-se aqui por determinismo biológico a noção engendrada por NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 8, nº 2, p. 12-13, 2000. Segundo a autora, “determinismo biológico postula uma relação mais do que acidental entre a biologia e certos aspectos de personalidade e comportamento”, em outras palavras, “as constantes da natureza são responsáveis por certas constantes sociais”.

chosen standards for ‘femininity’ are natural”21 (MOI, 1989, p. 122-23). Em outras palavras, o patriarcalismo quer nos fazer acreditar que certas características (meiguice, modéstia, subserviência, humildade, etc.) fazem parte da essência feminina. Essa essência é chamada de

feminilidade, definida por Julia Kristeva como uma posição construída pelo patriarcalismo

para reforçar o falocentrismo e por Cixous como negatividade, falta de sentido, irracionalidade, caos e escuridão, ainda é um termo que apresenta problemas de definição.

Percebemos então, que o termo “gênero” é uma representação não apenas no sentido de que cada palavra representa algo, mas sim a representação de uma relação pré-estabelecida, ou seja, a relação de pertencer a um grupo social, a uma categoria. O gênero atribui a uma pessoa certa posição dentro de determinada classe, representando não um indivíduo, mas sim uma relação social. Ao proclamar o homem como fonte da vida, poder e energia, o falocentrismo22 se estabelece como um mecanismo para oprimir e silenciar mulheres, exatamente por construir sobre nós uma série de valores negativos e inferiores.

Atualmente no discurso feminista anglo-americano, o termo vem sendo usado para designar o significado cultural, social e psicológico imposto sobre a identidade sexual biológica do indivíduo. A partir daí se entende que há uma diferença radical dos significados de sexo e sexualidade. O primeiro se limita a uma identidade biológica de macho/fêmea que leva em consideração os cromossomos, as gônadas, os hormônios e os genitais. Por outro lado, a sexualidade, ou identidade de gênero, é entendida como a totalidade de orientação, de opção sexual ou comportamental de uma pessoa. Por ser mais psicológica, está intimamente relacionada a sentimentos, papéis, atitudes e tendências, em outras palavras, define o masculino e o feminino. Para Vera Paiva, “a convicção de ser homem ou mulher corresponde ao sexo assinalado mesmo quando ele não concorda com o sexo biológico” (PAIVA, 1990, p. 33).

Mais recentemente o termo “gênero” vem sendo usado para designar o significado social, cultural e psicológico que se impõe sobre a identidade sexual biológica. Como afirma Susana Funck, o gênero “é diferente de sexo (entendido como identidade biológica: macho/fêmea) e é diferente de sexualidade (entendida como a totalidade de orientação, preferência ou comportamento sexual de uma pessoa)” (FUNCK, 1999, p. 20). Deve-se ressaltar que o termo não se refere apenas a uma questão de diferença, mas sim de uma questão de poder, o que pressupõe assimetria, desigualdade e dominação. É bem verdade que

21

Consiste na imposição de determinados padrões sociais de feminilidade em todas as mulheres, a fim de nos fazer acreditar que os padões escolhidos para “feminilidade” são naturais (tradução nossa).

22

Estamos considerando aqui a definição dada por Toril Moi (1989, p. 125), onde falocentrismo denota um sistema que privilegia o falo como o símbolo de poder.

em muitos contextos históricos, a noção de corpo tem sido interpretada de maneira relativamente parecida e isso proporcionou ao longo dos séculos a existência, em diferentes contextos sociais e culturais, de alguns aspectos comuns nas experiências das mulheres ou mesmo no tratamento dado a elas (NICHOLSON, 2000, p.29).

Em suma, o gênero como categoria analítica continua motivando pesquisadores em diversas áreas. Na psicologia, por exemplo, pensadoras feministas desenvolveram a área da psicologia infantil que investiga as diferenças de gênero entre meninas e meninos e o efeito que estas provocam no crescimento. Nos estudos literários, o trabalho de reiteração de escritoras negligenciadas pelo cânone tem sido trazido a público, traduzido e se tornado acessível.