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Um modo particular de ver o mundo: o feminismo

CAPÍTULO 1 – PERCURSO TEÓRICO

1.2 A Trajetória da Crítica Feminista

1.2.1 Um modo particular de ver o mundo: o feminismo

O feminismo, o discurso do “outro”, tem suas origens na formação e ascensão da burguesia na Europa do século XVIII. Esse século produziu um discurso social que separava os espaços: o masculino e o feminino. Essa distinção se concretizou tanto no trabalho como na educação, reservando à mulher a esfera do privado, tudo o que correspondia ao doméstico, enquanto os espaços públicos eram destinados aos homens. Foi a publicação, em 1792, de A

Vindication of the Rights of Women de Mary Wollstonecraft que provocou profundas

transformações no mundo e no pensamento das mulheres. No Brasil, a explosão de uma consciência feminista aconteceu quando, em 1832, uma nordestina do Rio Grande do Norte, traduziu o mesmo livro, sob o título Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens, usando o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta.

A trajetória do movimento feminista se deu em duas etapas distintas, as quais buscaram a contestação radical do senso comum. Num primeiro momento, que se inicia ao final no século XIX, a intenção era provar que as mulheres não eram inferiores aos homens e também podiam realizar as mesmas tarefas que eles. Em outras palavras, as mulheres deveriam ser vistas como os homens, tão livres quanto eles, desfrutando do universo externo (da rua) ao invés de se sentirem enclausuradas no ambiente doméstico. Já na segunda etapa, delineada nos anos 70 do século XX e amadurecida até hoje, a contestação feminista visa provar que as mulheres não se encontram em posições inferiores nem são iguais aos homens, salientando que tal diferença não constitui, entretanto, uma desvantagem, ao contrário, proporciona enriquecimento.

Segundo M. Humm, nessa época, o feminismo se preocupou com o estudo de mulheres escritoras – a ginocrítica – e a primeira antologia de crítica literária feminista foi

Images of Women in Fiction, publicada pela Cornillon em 1972 (HUMM, 1994, p.10-11). Em

1977, surge Literary Women de Ellen Moer, um dos primeiros textos de crítica feminista a dar às mulheres uma história, uma descrição das escolhas femininas a partir de uma expressão literária proporcionando a celebração do poder das mulheres escritoras. Anos depois, Man

Made Language (1980) de Dale Spender descreveu como o corpo e a linguagem feminina

ampliaram o conhecimento a respeito da representação literária das mulheres. Spender identificou duas áreas-chave de pesquisa: a primeira diz respeito ao estudo das diferenças de sexo – homens e mulheres podem usar diferentemente a linguagem e se puderem o que isso significa? – e a segunda área implica no estudo do sexismo na linguagem, em outras palavras,

nos seus efeitos e suas implicações para o feminismo. Spender reconheceu ainda que os maiores esforços para se estabelecer uma tradição literária feminista poderiam não ter obtido sucesso sem a compreensão do modo como o poder sexual molda a linguagem.

Nesse sentido, nos anos 70, o desafio para a crítica feminista foi investigar e reconfigurar as diferenças de gênero, além de descrever potencialmente as novas relações entre gênero, linguagem e literatura. Todavia, o maior problema era o fato dos estudos feministas necessitarem do poder institucional. A crítica feminista que se preocupava com a linguagem precisava estar conectada à crítica de construção e disseminação do conhecimento na academia, o que significa dizer que para o feminismo ter espaço, o respeito acadêmico por sua visão de mundo precisava ser garantido.

Ao final dos anos 70, Elaine Showalter publica A Literature of Their Own (1977), um texto no qual a autora substitui os períodos tradicionais da história literária por um alternativo processo de três estágios, que chamou de “growth into consciousness”: feminine, feminist and female. Nessa obra, Showalter divide a crítica em duas categorias distintas: a primeira está focada na mulher como leitora, ou seja, consumidora de literatura feita por homens; já a segunda focaliza a mulher escritora, aquela que produz sentidos textuais. Para ela há quatro modelos de diferença de gênero: biológico, lingüístico, psicanalítico e cultural e afirma que todos poderiam ser melhores dirigidos pelo modelo ginocêntrico da crítica feminista.

Ao fim dos anos 80, o movimento de mulheres enquanto minoria ativa19 começa a defender a igualdade novamente, mas com uma diferença: não há interesse em ressaltar a capacidade de poder se assemelhar aos homens, mas, sobretudo reivindicar o direito de se diferir deles. Sendo assim, o projeto da diferença afirma os valores da identidade feminina, reivindicando sua presença em todas as esferas da vida social e revalorizando o que é próprio das mulheres: suas raízes, seu modo de estar e de agir no mundo. Nasce o desejo de dar voz a identidade da mulher, que não é mais o avesso da identidade do homem, de presentificar o feminino na cultura. Nota-se que “a identidade feminina deixa de ser o Outro do Mesmo para se tornar uma procura e uma invenção” (OLIVEIRA, 1999, p. 124-25).

Nesse clima de afirmação da diferença é que surgem as obras The Madwoman in the

Attic (1979) e No Man´s Land em três volumes (1988), ambas interessadas em mostrar o

controle material e psicológico sobre as mulheres, a vida cultural feminina e as ansiedades masculinas e femininas representadas nas metáforas literárias. De acordo com Humm, a

19

Utilizamos aqui a expressão de Rosiska Darcy de Oliveira que quer dizer “grupo desviante, desafiador do senso comum, capaz de provocar, pela firmeza e vitalidade de suas posições, transformações das normas e relações sociais” (1999, p. 71).

primeira obra é basicamente um revisionismo histórico tomando como premissa um modelo já existente – o paradigma androcêntrico descrito por Harold Bloom, em que filhos literários sofrem de ansiedade e comportamento edipiano – para mostrar que as mulheres escrevem em confronto com sua cultura e consigo mesmas justamente por criarem um duplo do autor (HUMM, 1994, p. 14). Em No Man´s Land, Sandra Gilbert e Susan Gubar focalizam a ginocrítica, que, segundo as autoras, estava em partes moldada por uma noção patriarcal da cultura como uma entidade homogênea e uniformemente repressiva. Os três volumes argumentam que a história literária do século XX é uma história de conflito sexual e mostram o repetitivo imaginário sexual (de violência e impotência) que domina a escrita masculina da modernidade. Nesta obra podemos perceber uma crítica feminista mais pluralista do que no modelo psicanalítico encontrado em The Madwoman in the Attic, além disso, No Man´s Land é sustentado pela convicção pós-moderna de que o masculino e o feminino são construções moldadas pelas culturas.

De fato, uma das maiores realizações da crítica feminista Anglo-Americana nos anos 80 foi sua habilidade em identificar e conduzir uma crítica literária muito diversa na questão do gênero. Isso significa dizer que a crítica feminista provou, em primeiro lugar, que literatura não era simplesmente uma coleção de grandes textos, mas sim algo profundamente estruturado por ideologias sociais e sexuais; e depois, mostrou que determinadas preocupações e técnicas literárias predominavam somente na escrita feminina em relação àquelas estruturas sociais. Nessa década surge ainda Sexual/Textual Politics e Toril Moi nos apresenta um resumo e uma análise das principais vertentes da crítica anglo-americana e francesa. Assim como o próprio título sugere, Moi argumenta que a crítica feminista americana era desnecessariamente empírica, essencialista e hostil para mudar. Seu ataque ao essencialismo mostrou ser uma sólida base teórica à crítica feminista posterior.

Devemos ressaltar que o foco feminista nos trabalhos ao final dos anos 80 foi o emprego da linguagem. O desafio foi, através do questionamento das relações estabelecidas entre gênero, identidade e linguagem, redescobrir o poder e a sexualidade expressos na linguagem, nas formas literárias e nas psiques masculina e feminina. Nesse sentido, a teoria francesa desempenhou um papel crucial na crítica feminista dos anos 80 ao oferecer um novo conceito de relacionamento entre mulher, psicanálise e linguagem. É importante salientar que as discussões sobre linguagem e gênero questionaram a maneira como a linguagem pode representar a realidade feminina.

Sendo assim, não é difícil entender porque o pós-estruturalismo foi tão atraente para as críticas feministas. Uma vez que as feministas argumentaram que a mulher se torna mulher,

assim como Simone de Beauvoir já sugerira, as teorias pós-estruturalistas estreitaram as conexões entre construção de gênero e de linguagem. A teoria crítica de desconstrução pareceu tão sofisticada e potencialmente revolucionária porque atacava as oposições lingüísticas binárias entre homens e mulheres.

A partir da metade dos anos 80, a diferença racial passou a ser o ponto-chave da crítica feminista percebida na obra de Adrienne Rich, Notes Towards a Politics of Location, publicada em 1984. O desafio das feministas nesse período era entender como nomear as escritoras negras aplicando a elas os princípios da crítica feminista. Muitos temas emergiram desses textos: os caminhos pelos quais as tradições populares extra-literárias e a influência espiritual aparecem na obra de escritoras negras, o significado do relacionamento entre mãe e filha e as variedades dos textos escritos por mulheres negras. Muitos desses textos que descreviam mitos e tradições femininas provaram que estavam mais próximas ao pós- estruturalismo do que os textos de escritoras brancas. Em outras palavras, a crítica interessada em obras de escritores negros não estava simplesmente se auto-nomeando distintivamente e essencialmente outra “escola” ou mesmo outro método, mas se transformava em todo o interesse da crítica feminista.

Ao final dos anos 80 e início dos anos 90, Elaine Showalter publica Speaking of

Gender (1989) e afirma que a crítica feminista precisa parar de se preocupar com a ginocrítica

e se focalizar nas diferenças sexuais e de gênero tanto nos textos escritos por homens quanto naqueles escritos por mulheres. A autora se interessava pela relação entre a escrita criativa feminina e os mecanismos para se pensar a respeito de tal escrita. Em detrimento de tais evoluções de pensamento, a crítica literária atual – aquela responsável pela atividade de análise textual – e a expressão da experiência feminina atualmente estão interligadas. O projeto da crítica feminista é precisamente relacionar a leitura à atividade social e sua força reside na recusa em aceitar o deslocamento da literatura das práticas sociais, bem como suas implicações institucionais. Em outras palavras, o objetivo principal da crítica feminista contemporânea é estabelecer relação entre o feminismo como ação política e o feminismo como pensamento crítico e político. Isso equivale a dizer que o movimento feminista está potencialmente engajado num dos mais importantes trabalhos de atividade intelectual: interrogar criticamente a ideologia veiculada pela literatura.

Isto posto, o feminismo revela o princípio arbitrário e não natural da realidade e da distinção masculino/feminino, que passam a ser identidades morais e sociais configuradas ao longo de determinados processos de significação. O movimento não se constitui num modelo

explicativo, mas num complexo de visões e práticas direcionadas a um único ponto de vista: a contestação do patriarcado. Para Heloísa Buarque de Hollanda o pensamento feminista

é marcado pela exigência de uma abordagem teórica e metodológica em que a questão da mulher, como todas as questões de sentido, seja, de forma sistemática, particularizada, especificada e localizada historicamente, opondo- se a toda e qualquer perspectiva essencialista e ontológica (HOLLANDA, 1994, p.9).

De fato, o feminismo vem sendo considerado uma das alternativas mais concretas no que tange à prática política e o exercício da cidadania e não se organiza de uma forma centralizada, caracterizando-se pela auto-organização das mulheres. De acordo com Alves & Pitanguy, o feminismo busca, em primeiro lugar, “repensar a recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados” e em segundo, “que as diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder” (ALVES & PITANGUY, 1985, p. 9).

As autoras acrescentam que atualmente o movimento feminista refuta a ideologia que legitima a diferenciação de papéis, reivindicando a igualdade em todos os sentidos, demonstra que a hierarquia sexual é fruto de um processo histórico, denuncia a manipulação do corpo da mulher e a violência a que é submetido, reivindica a autodeterminação em relação ao exercício da sexualidade, à procriação, à concepção e o direito à informação, propõe que o exercício da sexualidade seja desvinculado da função biológica imposta, exige o direito ao prazer sexual e a livre opção pela maternidade, advoga o aborto livre não como método contraceptivo, mas como direito assegurado, propõe uma reapropriação do conhecimento do corpo, demonstra como os livros didáticos e as histórias infantis reproduzem a imagem tradicional da mulher confirmando a diferenciação de papéis, aponta que a publicidade reforça a divisão entre os sexos e manipula o corpo feminino como objeto de consumo e, por fim, denuncia e transforma a construção social da imagem da mulher.