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A auto-representação na construção da identidade

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28 (Werkner, 1989, p. 1), conferindo à cor uma capacidade expressiva que servia sobretudo para destacar certas partes do corpo e criar contrastes visuais. Os seus auto-retratos são marcados pelas poses narcisistas, pela auto-contorção, pela gestualidade dramática, que

“forçam o corpo a um extremo”42 (Ibid., p. 2).

Artisticamente, o interesse por si mesmo tem por bases uma tradição já antiga, em que o processo de auto-representação tem como elemento fundamental o espelho. Artistas que trataram do tema do auto-retrato, como os pintores Albrecht Dürer e Rembrandt, utilizaram frequentemente o espelho para representarem a sua própria imagem, uma experiência da qual se serviam para comprovar reflexões existenciais ou para autobiografias (Steiner, 1993, p. 7).

Conforme Merleau-Ponty expressa em O Olho e o Espírito (1964, p. 168), o espelho estimula as funções da visão e envolve-se na passagem “do corpo que vê ao corpo visível”43, interpretando e dando extensão aos elementos metafísicos da carne. O sensível reflete-se, permitindo-nos ver e ser visíveis, um reflexo interpretado e exibido pelo espelho, revelando elementos ocultos e completando assim o nosso exterior.

Enquanto observamos o nosso reflexo – o exterior –, a parte invisível do nosso corpo pode projetar-se noutros corpos que nos são visíveis, possibilitando-lhe apropriar-se de elementos de corpos alheios. Por meio do espelho, podemos converter um objeto num acontecimento ou transformar-nos noutro indivíduo, e vice-versa – uma transfiguração do ver e do ser visto que descreve a nossa corporalidade (Ibid., pp. 168–169).

De acordo com Artinger (1999, p. 36), “o espelho representa para o artista o instrumento essencial da descoberta da identidade, tornando o eu perceptível”. Numa conceção que se pode inserir na evolução da arte dos tempos modernos, pintores como Dürer serviam-se do espelho como meio para explorar a sua identidade, experienciando o eu enquanto imagem do eu e alcançando a consciência do seu sentido de ser e da sua individualidade. Dürer representava-se a si mesmo afastado de qualquer conceção alegórica ou estilização do corpo nu, ou seja, na sua qualidade de ser sexuado.

Conseguimos identificar o artista, uma vez que este irá tratar a sua imagem de acordo com a sua identidade. Nesta acepção, quando o artista se apropria do papel de outra personagem, como um mártir ou um herói, a indivisibilidade do sujeito não é prejudicada; mesmo despersonalizando o artista, não se coloca a hipótese de que o eu e

42 Tradução livre do inglês: “force the body to an extreme”.

43 Conforme Merleau-Ponty (1964, p. 168): “from seeing body to visible body”.

29 a sua imagem resultem num completo desdobramento. Já nos auto-retratos de Schiele, o carácter da obra revela a consciência da pessoa como divisível (Steiner, 1993, p. 8).

Desde cedo, Schiele servia-se de um grande espelho no seu estúdio para aquilo que Fischer (1995, p. 148) descreve como “teatro do eu”44. Diversas fotografias de Anton Josef Treka, entre 1913 e 1914, revelam a dedicação de Schiele no processo de conceção dos seus auto-retratos, experimentando poses que viria a utilizar mais tarde nas suas obras ou simplesmente pelas suas qualidades expressivas.

5. Retrato de Egon Schiele no seu atelier em Hietzing, 1915.

Fotografia de Johannes Fischer. Viena, coleção privada Rudolf Leopold.

Tirando alguns auto-retratos criados entre 1905 e 1907, a linguagem de Schiele não se insere propriamente na esfera do testemunho existencial ou da auto-heroização. A unidade do eu desfaz-se nas suas poses extremas e na rigidez dos comportamentos, resultando numa “polarização do eu e da alteridade da sua imagem num quadro”

(Steiner, 1993, p. 8), que se relaciona mais com a despersonalização do que com a procura de autoconfiança. Steiner (1993) faz uma analogia à obra O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde, em que é explorada a inversão da relação que se estabelece entre o modelo e a imagem, onde o retrato pintado se assume como um

44 Tradução livre do inglês: “theatre of the self”.

30 espelho da alma, revelando a essência verdadeira do indivíduo. Segundo Steiner (1993, p. 8), Schiele usa “o reflexo da sua própria imagem” em busca do outro eu, mais do que para determinar a identidade.

A partir de 1910, começa-se a notar uma crescente tensão nos auto-retratos de Schiele.

As suas representações estão carregadas de “valores expressivos” (Ibid., p. 9), que tornam limitativo o entendimento como meros auto-retratos e perturbam os aspetos identificativos do indivíduo, que permanece a mesma pessoa. A imagem que o espelho deforma transforma-se num eu distinto e alheio, um alter-ego. Esta busca em libertar-se das barreiras que delimitam uma personalidade precisa revela-se, em Schiele, por aspetos como a magreza e morbidez dos corpos, as contorções extremas e a peculiaridade das expressões e dos gestos. Esta tendência para se afastar da representação do modelo natural, conforme é visto pelo realismo, na esfera do desenho e da pintura, funde-se com a despersonalização, revelando o que Steiner (Ibid., p. 10) define como “dilaceramento moderno da pessoa”. O autor argumenta ainda que essas descrições do eu estão próximas da posição de Friedrich Nietzsche relativamente ao artista moderno:

O artista moderno, cuja fisiologia o aproxima o mais possível da histeria, apresenta igualmente no seu carácter os traços dessa doença... A excitabilidade absurda do seu organismo, que transforma em crise todas as experiências e faz intervir o dramatismo nos menores passos da vida, rouba-lhe toda a capacidade de previsão: já não é uma pessoa, quando muito é um rendez-vous de pessoas, onde cada uma brotará sucessivamente com uma segurança impudica. É precisamente por essa razão que a sua grandeza é igual à do actor: todos esses pobres seres, privados de vontade, que os médicos estudam de perto, surpreendem pela virtuosidade da mímica, da transfiguração, da intrusão inevitável e esperada em quase todos os caracteres. (Nietzsche, 1887-89, citado em Steiner, 1993, p. 11)

O auto-retrato pode expressar qualquer aspeto da essência humana, da vida ou da morte, e refletir a experiência do mundo e de si próprio (Steiner, 1993, p. 18). Pode considerar-se, assim, que o auto-retrato em Schiele traduz visualmente a ideia que o autor Paul Hatvani descreve em Ensaio sobre o Expressionismo, de 1917: “A obra de arte expressionista não está somente ligada à consciência do artista, é idêntica a esta. O

31 artista cria o seu mundo na sua própria imagem. O eu alcança a soberania de uma maneira divinatória.” (Hatvani, 1917, citado em Steiner, 1993, p. 18). Através desta reflexão, é possível reinterpretar o mito de Narciso no contexto do auto-retrato e da obra total, no qual o Narciso moderno não cria o seu universo artístico à sua imagem, mas sim o mune da sua perceção do mundo, invertendo o olhar e transformando o eu, o sujeito, em objeto; e os objetos que possam tornar-se objeto de desenho ou de pintura convertem-se em “auto-objetos”, que Steiner (1993, p. 18) define como “objectos vividos como uma parte do Selbst45” e que Hatvani expressou, notando a distinção entre o impressionismo e expressionismo, da seguinte forma:

No impressionismo, o mundo e o eu, o exterior e o interior, foram colocados numa relação harmoniosa. No expressionismo, o eu inunda o mundo. Deixa de haver exterior: o artista expressionista actualiza a arte de uma forma desconhecida até então... Depois dessa interiorização inaudita, a arte deixa de estar submetida a qualquer condição. É assim que se torna elementar. (Hatvani, 1917, citado em Ibid.)

Hatvani considerava que o expressionismo era uma resposta ao impressionismo, onde, apesar da harmonia entre o eu e o mundo, o eu detinha um carácter ilusório que apenas representava o resultado de sensações distintas. Vários intelectuais abordaram a noção de personalidade nestes termos. O físico Ernst Mach sustenta, em Análise das Sensações (1886), que o mundo e o eu se desintegram numa imensa diversidade de elementos e de sensações dessemelhantes. O escritor Hugo von Hofmannsthal traçou esta ideia numa carta fictícia que escreveu em 1902: “todas as coisas se decompunham em elementos, e os elementos decompunham-se em novos elementos, e nenhuma ideia os permitia congregar já.” (Hofmannsthal, 1902, citado em Ibid.). Essa perspetiva é contrariada por Schiele, que nos apresenta uma variedade de representações do eu, um eu múltiplo que progressivamente se converte numa realidade plástica, na qual se reconstitui a unidade com o mundo.

A procura de identidade e as manifestações do eu tornaram-se o tema mais explorado na pintura, numa expressão subjetiva da realidade e focada na psique, no irracional, nas

45 Em alemão: Si mesmo (Eu). Corresponde ao conceito de Self, em inglês, que se traduz, segundo a definição de León e Rebeca Grinberg (1976), citados em Melo (2005, p. 143), na “totalidade da pessoa e inclui o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, os vínculos com os objectos externos e internos e o sujeito como oposto ao mundo dos objectos”.

32 questões existenciais e na dualidade do ser (Comini, 2014, p. 21). O carácter expressivo em Schiele é determinado por uma forte consciência do eu perturbado, da complexidade das emoções e da personalidade psíquica individual, a par com a morbidez que envolve as suas obras. Estimulado por fatores opostos, como a vida e a morte, identifica-se um dualismo tanto na sua obra artística, como no seu sentido do eu. O próprio Schiele o exprimiu, ao dizer que amava a vida e a morte (Ibid., p. 15).

Schiele deixou, numa carta ao colecionador Carl Reininghaus, uma descrição da sua obra Os Eremitas (1912), em que se representa ao lado de Klimt, ambos disfarçados de eremitas e coroados de flores que simbolizam, da mesma forma que as rosas atrás das figuras, o sofrimento e a morte:

No todo não conseguimos à primeira compreender exatamente como os dois homens estão de pé... A falta de definição nas figuras, que foram destinadas a ser flácidas... os corpos de homens cansados da vida, suicidas, mas os corpos de pessoas sensíveis. Eu vejo as duas figuras como uma nuvem de poeira que se assemelha a este mundo, como um todo condenado ao colapso.46 (Schiele, citado em Fischer, 1995, p. 123)

6. Os Eremitas, 1912. Óleo sobre tela, 80.3 x 80 cm.

Viena, Leopold Museum.

46 Tradução livre do inglês: “In the big picture one we cannot at first make out exactly how the two men are standing… The lack of definition in the figures, which were intended to be sagging… the bodies of men tired of life, suicides, but the bodies of sensitive people. I see the two figures like a cloud of dust that resembles this world, gathering but doomed to collapse.”

33 As suas figuras transportam “valores expressivos” e personificam comportamentos, estados de espírito e emoções; revelam “os corpos de pessoas sensíveis” (Schiele, citado em Fischer, 1995, p. 123), remetendo-nos para um aspeto essencial do expressionismo.

Nos seus poemas em prose de 1910-11, Schiele também escreveu: “Tudo está morto vivo.”47 (Schiele, 1910-11, citado em Schröder, 1995, p. 58). A ténue linha que separa a vida e a morte nos seus trabalhos verifica-se, por exemplo, em auto-retratos em que Schiele explorou o tema do duplo.

Nos finais do século XIX e nas décadas que se seguiram, o conceito de Doppelgänger48 foi continuamente explorado nas diversas formas de conhecimento e de cultura artística em Viena. O tema foi argumentado, nomeadamente, nas investigações de Otto Rank e Sigmund Freud. Considerando a perspetiva dos dois autores, seria plausível atribuir aos auto-retratos (duplos) de Schiele uma fonte de narcisismo, mas será mais uma consequência cultural, uma vez que o tema do duplo era um interesse comum, como permitem verificar os estudos de Rank e Freud, ou obras dos autores Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal (Felton, 2015, p. 1).

Em Viena, o duplo assume qualidades desviadas do conceito romântico de Doppelgänger. O termo tem a sua origem com o escritor Jean Paul na sua novela Siebenkäs (1797), onde o autor define-o como um alter-ego. Na literatura romântica, o alter-ego possuía, por norma, um carácter maligno. Mas o conceito é interpretado distintamente por Lorna Martens, no seu livro Shadow Lines, publicado em 1996.

Segundo Martens, os autores vienenses serviam-se do duplo como uma forma de

“justapor dualismos irresolúveis”49 (Ibid.), para integrar a capacidade de penetrar a base fundamental da essência humana, mencionada pela autora como a “área negra”50 (Martens, 1966, citada em Felton, 2015, p. 1). Essa busca existencial era expressada, nos auto-retratos duplos de Schiele, como um desejo de chegar ao íntimo do incognoscível, tanto dentro do eu como entre os eus reproduzidos e o observador, dois lugares que Schiele ocupava frequentemente em simultâneo.

A experiência do próprio ser é uma questão basilar no trabalho deste artista e traduz-se num conjunto de manipulações que surgem, segundo Steiner (1993, p. 14), no intuito de

“realçar as energias cujo corpo, matéria espiritual, é o suporte”. O autor refere ainda que a experiência do próprio ser é originada por um desdobramento, uma vez que o sujeito

47 Tradução livre do inglês: “All is living dead”.

48 Em alemão: doppel: duplo; gänger: andante (Felton, 2012, p. 97).

49 Tradução livre do inglês: “juxtaposing unresolvable dualisms”.

50 Conforme Martens (1966), citada por Felton (2015, p. 1): “dark area”.

34 é, ao mesmo tempo, objeto. Esta ideia foi enunciada por Max Klinger na série Da morte, 2ª parte (1889), na qual retrata o filósofo nu que apenas pode atingir a perceção do mundo conhecendo o seu interior, o eu, através do reflexo da sua imagem.

O tema do duplo começa a ser abordado por Schiele a partir de 1910, em obras das quais se destacam Autovidente (1910) e Autovidente II (Morte e Homem) (1911), em que o artista dialoga com o seu alter-ego (Ibid.). As figuras representadas não olham uma para a outra, mas sim para o observador, o que leva à conclusão que o artista se auto-observa. O reflexo de Schiele é desdobrado nas obras. Na primeira, a figura em primeiro plano encontra-se praticamente nua, ombro e braço recobertos por um panejamento que exerce a função de um véu entre os corpos. A figura da frente apresenta-se magra e fraca, enquanto a que se encontra por detrás aparece com uma postura distinta, praticamente sem corpo, como a sombra da primeira e intrinsecamente associada a ela. Esta obra estabelece uma perceção intelectual ligada a conceitos esotéricas que definem o duplo como fazendo parte de cada ser humano, duplo esse manifestado como uma matéria espiritual semelhante à aura. A segunda obra insere-se na temática literária característica da passagem para o século XX, onde o duplo aparece como indicador de morte. O alter-ego é representado sob a forma de uma pálida sombra, descrito por Steiner (Ibid.) como “poder omnipresente da morte”.

7. Autovidente I, 1910. Óleo sobre tela, 80 x 79.9 cm.

Localização desconhecida.

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8. Autovidente II, 1911. Óleo sobre tela, 80.3 x 80 cm.

Viena, Leopold Museum.

Schiele confere às figuras características distintas, acentuando os contrastes de luz e de olhar ativo e passivo. Nos textos de Schiele é salientada a preocupação com a distinção entre os dois olhares, para ele mesmo e para o observador. Esta série de auto-retratos duplos permite-nos depreender, pelas suas qualidades formais, que a diferenciação se opera entre o olhar ativo e o olhar passivo, mas também entre a perceção extática e enstática de si mesmo (Felton, 2015, p. 3).51 O estado de êxtase é alcançado através de uma separação entre corpo e espírito, saindo do eu para se auto-analisar. Ultrapassando a definição que a literatura tradicional confere ao Doppelgänger – o ser que se vê a si mesmo –, a definição de êxtase inclui o aspeto de euforia e esvaecimento no encontro com uma força externa. A êntase traduz-se na experiência oposta. O termo, que surgiu com o intelectual Mircea Eliade, em 1958, descreve uma experiência com uma dimensão mística, na qual é necessária uma introspeção. Dessa análise interior provém

“a dissolução do eu que permite uma consciência da unidade e inteireza de todas as coisas”52 (Ibid.). A representação que Schiele faz dos dois eus, ao mesmo tempo unidos e divididos, a união dos mesmos numa posição frontal, dirigida ao observador, e a distinção entre os modos de ver são fatores que, segundo Felton (Ibid.), se referem à auto-experiência extática e enstática. Diz ainda a autora que Schiele conduz o observador a sentir tanto o lado extático como o lado enstático, através da acentuação

51 Conforme Felton (2015, p. 3): “the distinction is not only between active and passive viewing, but also between an ecstatic and enstatic view of the self”.

52 Tradução livre do inglês: “the dissolution of the self that allows an awareness of the unity and wholeness of all things”.

36 do espaço antes do plano da obra, ou seja, o espaço no qual o observador se encontra, antes da tela – o espaço mediador entre o observador e a obra. Autovidente sugere a possibilidade desse espaço ser um espelho no qual os duplos se observariam “num ato de profunda introspeção e auto-descoberta” (Ibid, p. 4). Em Autovidente II, Schiele incorporou um braço a surgir da parte inferior da tela, representado por um gesto semelhante ao que poderia ser feito a partir do espaço do observador, do exterior, e agarrado pelo braço da figura, associando “as qualidades antitéticas da arte e da vida”53 (Ibid.) – o espaço dentro da obra relaciona-se com o espaço antes da obra. O observador é envolvido numa forma de ver que aparentemente o dirige para a tela, mas que se dirige intimamente para ele mesmo.54 A partir de 1913, os auto-retratos duplos de Schiele afastaram-se deste tipo de composição, abandonando a estaticidade das figuras que olham para fora da tela e dissipando os contrastes entre os duplos. É possível identificar esta abordagem diferente nas obras Videntes (Duplo Auto-Retrato com Wally) e Devoção, de 1913.

Os auto-retratos duplos de Schiele exploram as diferentes formas de ver, as qualidades opostas inerentes à condição humana, as possibilidades do mundo metafísico no mundo físico, assim como as da pintura. Schiele usa os modos de ver no intuito de transpor os limites que separam a arte da vida e propor que existe mais para além, daquilo que se vê (Ibid., p. 9). Para o artista, a energia necessária à vida é a mesma que envolve a obra de arte. Os seus auto-retratos duplos revelam a sua priorização da morte sobre a vida, do que é desconhecido sobre o que é conhecido, focando-se nas sub-camadas que constituem o verdadeiro âmago da existência humana. Criados com intuito de despertar o pensamento e evocar emoções, estes auto-retratos inserem-se no conceito que Robert Goldwater define como “a necessidade de uma arte de ideias e de sentimento”55 (Goldwater, 1979, citado em Felton, 2015, p. 2). A diferenciação entre olhar para e ver dentro que Schiele transmite nos seus auto-retratos duplos sugere uma procura de estimulação da essência do observador, assim como revela a essência do artista (Felton, 2015, p. 10).

No início do século XX, os jovens artistas expressionistas de Viena eram atraídos pela questões de natureza psíquica, pela autenticidade contida por detrás da aparência, a identidade, que o artista, ao saber verdadeiramente observar, conseguia definir – ver

53 Tradução livre do inglês: “the antithetical qualities of art and life”.

54 Conforme Felton (2015, p. 4): “outwardly directed into the canvas yet inwardly directed to his or her self”.

55 Tradução livre do inglês: “the necessity for an art of ideas and of feeling”.

37 para lá da realidade visível e trespassar as suas camadas até à interioridade do sujeito.

Podemos encontrar essa ideia de ver por dentro, em vez de somente olhar, nas palavras de Schiele: “O pintor também pode olhar. Ver, porém, é algo mais.”56 (Schiele, citado em Comini, 2014, p. 18).

Diversos escritores vienenses revelavam as suas ansiedades e a hipocrisia social era desmascarada em obras literárias centradas no sexo e na psique, como, por exemplo, as peças A Ronda (1897), de Arthur Schnitzler, e Electra (1903), de Hugo von Hofmannsthal, ou ainda a novela O Jovem Törless (1906), de Robert Musil. E através da exploração da psique do indivíduo, nos seus diferentes estados de ser, poderia revelar-se a verdade. Uma perceção da realidade fortemente subjetiva nasce desta busca pelos fenómenos do ser e das suas manifestações, marcando “não só a passagem da aparência à psique, mas também a transição do racional ao irracional, do ambiental ao existencial, e do Schein (aparência) ao Sein (ser)”57 (Comini, 2014, p. 21), contrariando o interesse dos artistas do Jugendstil na aparência, no belo, no ornamento.

Entre 1870 e 1910, abriram-se horizontes de uma revolução histórica, no que diz respeito ao retrato e ao nu: a fotografia conferia uma nova condição às imagens de rosto e de corpo e atuava como um meio de identificação, recolhido sob as mais variadas perspetivas. A fotografia ocupou um lugar primordial numa época em que se lutava contra os antigos ideais de beleza, que se limitavam a representar os retratos e os nus sob um ideal de perfeição. Para além da considerável procura de imagens de rostos e de corpos gerada pelas novas ciências da psicologia, da etnologia e da medicina, havia também a procura de imagens eróticas, não só por esferas sociais privilegiadas. A afluência de novas imagens da figura humana apoiou a revolta contra o ideal de beleza e as suas limitações. A fotografia tornava-se a nova fonte de produção gráfica e permitia a Schiele desenvolver as suas experiências de representação de corpos (Schröder, 1995, p.

49).

É provável que muitas das expressões físicas e posturas que Schiele representava tenham sido inspiradas por fotografias do neurologista Jean-Martin Charcot, tiradas aos seus pacientes no Hospital da Salpêtrière, em Paris. Charcot, também praticante do desenho artístico, foi um dos impulsionadores do uso da fotografia na medicina e valorizava essa documentação visual dos pacientes, que sofriam de doenças mentais,

56 Tradução livre do inglês: “The painter can also look. To see, however, is something more.”

57 Tradução livre do inglês: “not only the passage from the façade to the psyche, but also a transition from the rational to the irrational, from the environmental to the existential, and from Schein (appearance) to Sein (being)”.

38 para o diagnóstico e o tratamento das mesmas. A sua iconografia fotográfica mais relevante derivou das suas investigações sobre a histeria e as imagens compunham um estímulo visual significativo, uma vez que revelavam as ilimitadas possibilidades expressivas e gestuais do ser humano (Ibid., p. 83).

A iconografia da histeria, que era acompanhada de contorções notáveis do corpo, estados catalépticos e convulsões, transtornava os ideais clássicos de beleza. Tanto no domínio estilístico como na questão temática, uma inovadora aparência do feio nasce deste desenvolvimento de expressão emocional (Ibid., p. 88).

Charcot, que privilegiava o olho como meio de pesquisa médica, nomeadamente no campo da psiquiatria, terá entregado os seus fundamentos à visão objetiva dos processos demonstrativos – o desenho e a fotografia – e envolveu-se com as possibilidades estéticas que surgiam. Propôs-se a provar que a histeria, uma doença sobre a qual pouco se conhecia até depois de meados do século XIX, não era uma mera encenação, como era entendida, na altura. Para fundamentar isso, Charcot utilizou a hipnose, provocando nos seus sujeitos, através da sugestão, “paralisias histéricas” (Steiner, 1993, p. 50).

Estas encontravam-se sujeitas a uma sintomatologia idêntica à das histerias traumáticas, derivadas de lesões do sistema nervoso. Só mais tarde, com os desenvolvimentos de, por exemplo, Freud, que foi aluno das aulas de Charcot, se veio a entender que existiam fatores provenientes do inconsciente no estado de histeria, ligando o entorpecimento histérico às consequências advenientes de traumatismos psíquicos.

Schiele terá recorrido a estas fontes patológicas de acordo com a crença de que a personalidade não se prendia a uma qualidade inalterável; o ego, uma vez que formado por elementos opostos, é múltiplo (Schröder, 1995, p. 86).

Outra influência ponderada no que diz respeito às expressões fisionómicas de Schiele é a do seu amigo artista mímico Erwin Dom Osen, que foi também um dos fundadores do Neukunstegruppe. A expressividade das suas mímicas, aliada ao seu carácter excêntrico, dá-nos sinais de uma correspondência com as manifestações físicas nas figuras de Schiele. Osen, que realizou estudos de expressões faciais patológicas no asilo Am Steinhof, através de desenhos, para uma conferência sobre o tema, terá igualmente desafiado a atenção de Schiele para as manifestações físicas de patologias mentais (Steiner, 1993, p. 44).

Através da expressividade das suas figuras, Schiele representa a essência do sofrimento, que não era exprimido por meios usuais de comunicação, mas antes por contrações, gestos agitados ou movimentos convulsivos (Ibid., p. 54).

39 Em 1910, Schiele pintou e desenhou diversos auto-retratos, caracterizados pela representação de um corpo magro, descarnado, deformado, com membros longos e amputados e uma utilização da cor – fortemente acentuada em certas partes do corpo – pouco comum para representar a carne. Um dos seus auto-retratos mais famosos é o Nu Masculino Sentado (Auto-Retrato), precisamente de 1910. Representa-se com o corpo de aspeto descarnado, esticado, amputado, a musculatura irregular, os olhos, os mamilos, o umbigo e os órgãos genitais destacados a vermelho. A tensão da obra reflete-se na posição dos braços e a forma como expõe o sexo (Artinger, 1999, p. 36).

Na obra, a ausência dos membros é percecionada de imediato como uma amputação.

“Uma alma mutilada num corpo mutilado”58 (Schröder, 1995, p. 50). Roessler afirmou, numa crítica contemporânea, que vemos a alma através do corpo:

Schiele via e pintava rostos humanos que brilham palidamente... e se assemelham às características de um vampiro que anseia pelo seu sustento sinistro; rostos dos obcecados, cujas almas apodrecem; rostos congelados por inefável sofrimento em máscaras rígidas; rostos que delineiam subtilmente a síntese da vida interior de um indivíduo... Os seus olhos gelados viram os tons lívidos da putrefação em rostos humanos, a morte sob a pele; e com inefável espanto, contemplava as mãos nodosas, contorcidas com unhas de chifre amarelo.59 (Roessler, citado em Schröder, 1995, p. 50)

58 Tradução livre do inglês: “a mangled soul in a mangled body”.

59 Tradução livre do inglês: “Schiele has seen and painted human faces that shimmer pallidly… and resemble the features of a vampire who craves his grisly sustenance; faces of the obsessed, whose souls fester; faces frozen by untold suffering into rigid masks; faces that subtly delineate the synthesis of an individual's inner life… His ice-cold eyes have seen the livid hues of putrefaction in human faces, the death beneath the skin; and with untold wonderment he has gazed upon gnarled, contorted hands with nails of yellow horn”.

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9. Nu Masculino Sentado, 1910. Óleo e guache, 152.5 x 150 cm.

Viena, Leopold Museum.

Tanto o auto-retrato como o nu são considerados em função do seu autor, quer explícita, quer implicitamente, sempre associados à realidade do artista. Schiele, à semelhança de outros artistas expressionistas austríacos, manifesta-se como autor criativo num plano de autenticidade. Sobre essas dramatizações dele próprio, que desvendam a verdadeira natureza da psique do artista, Schröder (1995, pp. 50–52) interroga-se até que ponto Schiele desloca os seus estados psíquicos para a tela e quem ou o que verá realmente ao representar-se; sugere que não será apenas o seu próprio corpo, mas que, através de novas poses e distorções, se afasta dele mesmo, como que se estivesse a observar-se a partir de outro olhar. O autor salienta a distinção entre a observação do próprio corpo como “um ato de auto-conhecimento direto, emocional”60, e o ato de colocar-se no lugar de outro indivíduo para “experienciar o seu próprio eu como o de outra pessoa”61 (Ibid., p. 52).

Na sua auto-imagem, cuja grande origem é o seu sofrimento, Schiele não se vê apenas a ele mesmo, como se coloca também no lugar de outras pessoas. E ao apropriar-se de outras identidades, disfarçando-se, por exemplo, de profeta ou vidente, usa-se de forma alegórica, o que, segundo Schröder (1995, p. 62), é um modo de despersonalização.62

60 Tradução livre do inglês: “an act of direct, emotional self-knowledge”.

61 Tradução livre do inglês: “experiencing his own self as that of another person”.

62 Conforme Schröder (1995, p. 62): “To make oneself into an allegory is a way of depersonalizing oneself.”

41 Uma reflexão do pintor Anton Räderscheidt identifica a questão do artista possuir a faculdade de dividir-se e observar-se do ponto de vista alheio:

O pintor tem a auto-observação nos ossos. É usado para considerar-se como um objeto. E ainda assim ele, como qualquer outra pessoa, é levado pela sua própria ideia de como ele se parece. A sua postura é deliberada... Ele molda o eu que quer ser.63 (Räderscheidt, 1966, citado em Schröder, 1995, p. 52).

O carácter de morbidez existente nos seus retratos e auto-retratos assinala um momento importante na evolução da relação estabelecida entre a imagem e o observador.

A forma como Schiele se representa pode ser vista como exibicionista e narcisista, mas o conceito de auto-contemplação, o amor de si próprio motivado pela própria beleza, encontrado do mito de Narciso, é completamente rejeitado por Schiele nos seus auto-retratos. O seu “ego narcisista” encontra-se “deformado”64 (Schröder, 1995, p. 53), as suas figuras descarnadas, tensas e repulsivas, desligando-se de qualquer norma antiga de corpo ideal.

As figuras envelhecidas e afeadas dos auto-retratos iniciais de Schiele transmitem a sua submissão ao sofrimento, ampliado por ele de tal forma que conseguia que o sofrimento conferisse qualidades sagradas ao artista, relembrando imagens de auto-sacrifício, nomeadamente bíblicas, em que o sofrimento dos outros é tomado sobre si próprio (Ibid.).

Schiele eliminou dos seus trabalhos o conceito de beleza corporal intacta, com as suas representações de corpos atormentados e rostos contraídos, contrapondo-se a outras auto-interpretações, como as do pintor e desenhador Richard Gerstl, cujos auto-retratos nos remetem para uma dimensão iconográfica mais envolvida na representação de tradições cristãs, como a ressurreição de Cristo. Ainda assim, e apesar de muito diferentes das pinturas contemporâneas religiosas, as obras de Schiele conservam uma expressão religiosa por retratarem a dor do artista. A viragem do século é marcada pelo auge do mito do artista enquanto mártir, em que grandeza e sofrimento se encontram intimamente relacionados. Estas representações eram assentes na idealização de sofrimento que encontramos no culto do génio do movimento romântico, teoria

63 Tradução livre do inglês: “The painter has self-observation in his bones. He is used to regarding himself as an object. And yet he, like everyone else, is taken in by his own idea of what he looks like. His posture is deliberate... He shapes the self that he wants to be.”

64 Conforme Schröder (1995, p. 53): “Schiele’s narcissistic ego is deformed.”

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