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IDENTIDADE E EXPRESSÃO NA OBRA GRÁFICA DE EGON SCHIELE

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

IDENTIDADE E EXPRESSÃO NA OBRA GRÁFICA DE EGON SCHIELE

Melania Alexandra Pereira Ribeiro

Dissertação

Mestrado em Desenho

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor António Pedro Ferreira Marques

2016

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i DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Melania Alexandra Pereira Ribeiro, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada “Identidade e expressão na obra gráfica de Egon Schiele” é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 21 de dezembro de 2016

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ii RESUMO

A presente investigação expõe a obra do artista austríaco Egon Schiele, que se distinguiu no movimento expressionista, no início do século XX. Pretendemos refletir sobre a relevância do desenho da figura humana na construção da identidade e na perceção do mundo.

Abordando temáticas como o erotismo, a sexualidade e o narcisismo, interessa-nos em particular analisar a expressividade da obra deste artista segundo uma perspetiva estética, filosófica e psicanalítica. Esta abordagem está centrada no desenho do corpo humano, nomeadamente num contexto auto-representativo, que se assume como um processo ativo na conceção de si mesmo e do mundo exterior, bem como na comunicação de sensações e emoções.

Tendo em conta as tensões político-sociais e as problemáticas existenciais que se viviam nos finais do século XIX e na viragem para o novo século, propomos evidenciar, por um lado, a radicalidade do estilo gráfico de Egon Schiele e a sua prática artística; por outro lado, exploramos a esfera psíquica e emocional manifestada ao longo da sua obra, levando- nos a uma interpretação que realça o processo mental e sensorial no desenho e o impacto da representação do próprio corpo na produção de auto-conhecimento e na evolução psicológica individual. Neste sentido, tornou-se relevante uma reflexão sobre alguns conceitos de psicanálise, destacando alguns autores, principalmente, Sigmund Freud e Melanie Klein. Expomos também a componente projetiva do desenho na interpretação da personalidade, abordando os conceitos da técnica proposta por Karen Machover.

Estendemos ainda esta investigação ao domínio da filosofia, relacionando a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty com a experiência do desenho, explorando a esfera das sensações, com Gilles Deleuze, e descrevendo a teoria da empatia, especialmente no enquadramento estético.

Para ilustrar esta dissertação, privilegiámos desenhos que manifestam o estilo de expressão de Egons Schiele e os conteúdos abordados. Foram selecionadas também algumas pinturas para reforçar a componente psíquica expressa nos desenhos e refletir os aspetos alegóricos presentes na sua obra.

Palavras-Chave:

Figura humana; desenho erótico; auto-representação; identidade; empatia.

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iii ABSTRACT

This research focuses on the work of the Austrian artist Egon Schiele, distinguished in the Expressionist movement in the beginning of the 20th century. We intend to reflect on the relevance of the human figure drawing to the construction of identity and to the perception of the world. Approaching themes such as eroticism, sexuality and narcissism, we are particularly interested in analyzing the expressiveness of this artist’s work from an aesthetic, philosophical and psychoanalytic perspective. This approach is based on the drawing of the human body, namely in a self-representative context, which assumes itself as an active process in conceiving the self and the outside world, as well as in communicating sensations and emotions.

Taking into consideration the socio-political tensions and the existential issues that were experienced at the end of the 19th century and at the turn of the new century, we propose to highlight, on the one hand, the radicalism of Egon Schiele’s graphic style and his artistic practice; on the other hand, we explore the psychic and emotional sphere manifested throughout his work, leading us to an interpretation that enhances the mental and sensorial process in drawing and the impact of the representation of our own body in the production of self-knowledge and in the individual psychological evolution. In this sense, a reflection on some psychoanalytic concepts became relevant, emphasizing some authors, mainly Sigmund Freud and Melanie Klein. We also expose the projective component of drawing in the interpretation of personality, approaching the concepts from the technique proposed by Karen Machover.

We further extend this research to the realm of philosophy by relating Maurice Merleau- Ponty’s phenomenology to the experience of drawing, exploring the sphere of sensations with Gilles Deleuze and describing the theory of empathy, especially in the aesthetic framework.

To illustrate this dissertation, we favoured drawings that manifest Egons Schiele’s expression style and the contents covered. Some paintings were also selected to reinforce the psychic component expressed in the drawings and to reflect the allegorical aspects present in his work.

Keywords:

Human figure; erotic drawing; self-representation; identity; empathy.

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iv À minha avó, Margarida.

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v Agradecimentos

Esta investigação, tal como o percurso artístico que experienciei até aqui, tornou-se possível pela motivação e apoio contínuos de várias pessoas que me acompanharam ao longo destes anos e às quais não posso deixar de expressar a minha gratidão.

Começo por agradecer ao meu orientador, Professor Doutor António Pedro Ferreira Marques, pela sua disponibilidade e paciência, pelos seus sábios conselhos e pela partilha constante de conhecimento.

Não posso deixar de mencionar os professores que me instruíram no meu percurso académico anterior, na Escola Superior de Educação de Viseu, que me permitiram expandir-me artística e individualmente, até chegar a esta etapa. Para além da solidez que forneceram à construção do meu pensamento crítico e das oportunidades que abriram no meu caminho artístico, ser-lhes-ei eternamente grata pela humanidade e carinho que manifestaram em momentos difíceis da minha vida. Destaco a Catarina Carneiro de Sousa, que me apoiou também nesta investigação, sempre disponível para esclarecer dúvidas e partilhar ideias. Sou-lhe grata pelos seus importantes conselhos, pela sua força inspiradora e pela confiança que sempre depositou nas minhas capacidades.

Sou imensamente grata às minhas prezadas amigas, que me deram alento neste caminho introspetivo. Devo-lhes a força que não me fez desistir.

À Alexandra, irmã para a vida. Grata pelo seu apoio emocional fundamental no decorrer deste trajeto, pelas suas palavras reconfortantes em momentos de desalento, pela sua confiança total em mim, pelo seu carinho e pela amizade genuína.

À Mónica, irmã do coração, sempre presente, ainda que a distância nos separe fisicamente. Grata pela sua força, pela sua alegria e pela amizade incondicional.

Lembro igualmente a Sara, pelo seu incentivo constante e pelas suas palavras de ânimo;

e a Amandine, pela sua energia positiva e pelo seu apoio sólido. Às duas, grata pela vossa amizade.

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vi Por último, expresso a minha profunda gratidão à minha família.

À minha irmã, incondicionalmente presente no meu coração. Grata por ter sempre acreditado em mim.

Acima de tudo, aos meus pais, sem os quais este percurso não se teria realizado.

Agradeço especialmente à minha mãe, pelo conforto, pela paciência e pela escuta quando a esperança esmorecia.

E à minha avó, pela sua bondade genuína.

Observações para a leitura desta dissertação

― Citações

Nas citações em língua portuguesa, foi respeitada a grafia original das palavras, mantendo o português anterior ao novo acordo ortográfico.

― Traduções

Para tornar a leitura mais fluida, as citações em língua estrangeira inseridas no corpo do texto foram traduzidas para português e o excerto original foi incorporado em nota de rodapé.

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vii Índice

Introdução ... 1

1. Egon Schiele: biografia e percurso artístico ... 4

2. Viena na viragem para o século XX ... 18

3. Expressionismo ... 23

4. A auto-representação na construção da identidade ... 27

5. O corpo como meio de expressão ... 48

6. Erotismo e sexualidade ... 62

7. Uma abordagem psicanalítica ... 68

8. Empatia, sensação e emoção ... 78

9. O desenho: uma perspetiva fenomenológica ... 95

Considerações finais ... 101

Índice de imagens ... 103

Bibliografia ... 105

Filmografia ... 111

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viii A carne pesa sobre o corpo frágil, corpo flácido, corpo dorido, corpo vivo de carne morta do qual a alma, revolvida, se faz prisioneira.

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1 Introdução

O presente estudo incide sobre a obra gráfica de Egon Schiele, no enquadramento do desenho de figura humana. De uma perspetiva que oscila entre conceitos estéticos, filosóficos e psicanalíticos, pretendemos apresentar o sentido profundo da obra deste artista e o que representava a mesma na altura em que viveu. Interessa-nos entender as problemáticas essenciais retratadas no seu estilo expressivo, evidenciar o valor cognitivo e construtivo do desenho, estabelecendo uma relação entre o desenho do corpo humano, principalmente no caso da auto-representação, e o desenvolvimento da personalidade e da perceção do mundo, e realçar a componente sensorial e emocional no processo criativo.

Como pode o desenho contribuir na construção da identidade e na aquisição de conhecimento? Quais os fenómenos que ocorrem na esfera psíquica enquanto observamos um corpo alheio, ou o nosso próprio corpo, para representá-lo, e o que vai ser projetado nessa representação? Qual o impacto da auto-representação corporal no progresso psicológico individual? E de que forma o espectador se envolve igualmente na esfera psíquica e sensorial da obra, mais precisamente, no caso deste estudo, do corpo reproduzido, e até mesmo, do próprio artista? Estas foram algumas questões que incentivaram esta investigação. Na experiência do desenho, somos implicados num processo mental e visual no qual se desenvolvem aspetos cognitivos, emocionais e sensoriais. Paralelamente, esses aspetos vão ter um impacto no espectador, que se envolverá, através de um processo empático, com as sensações e emoções comunicadas pela obra. O corpo é um meio essencial para nos relacionarmos com o mundo envolvente e com os estados afetivos de outros seres. Esta investigação centra-se na obra de Egon Schiele, nos seus corpos, no intuito de compreender, por um lado, como pode o desenho da figura humana intervir na evolução pessoal e na construção da realidade, por outro lado, como se desenvolve a experiência partilhada entre artista, obra e espectador.

Foi utilizada uma metodologia de carácter qualitativo, que segue os critérios de revisão da literatura e de análise iconográfica para recolha de informação relevante. Este trabalho divide-se em nove capítulos. No primeiro, traçamos o percurso biográfico e

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2 artístico de Egon Schiele, fazendo referência ao meio familiar e ao ambiente cultural que influenciaram a sua vida pessoal e artística. No segundo capítulo, fazemos um breve enquadramento político, social e cultural da capital austríaca, onde viveu Egon Schiele, na viragem para o século XX, refletindo as tensões e controvérsias que se projetaram na sua obra. No terceiro capítulo, introduzimos alguns conceitos sobre o expressionismo, de forma a fundamentar como este artista explorou e representou fortemente o espírito desse movimento. No quarto capítulo, abordamos a temática da auto-representação e o seu impacto no conhecimento de si mesmo e do mundo exterior, explorando fenómenos como a despersonalização e o narcisismo. O quinto capítulo trata do corpo como meio expressivo e através do qual nos envolvemos com o mundo, expondo conceitos como a imagem e a presença corporais e abordamos o tema da nudez no contexto artístico. No sexto capítulo, evidenciamos o erotismo e a sexualidade, duas componentes fundamentais na arte de Egon Schiele. Refletimos sobre as questões morais que definiam, naquela altura, o carácter obsceno de uma obra e expomos a preocupação do artista em explorar o erotismo e a sexualidade para lá do significado pornográfico que as imagens podem suscitar. O sétimo capítulo apresenta alguns conceitos do domínio da psicanálise, para verificarmos a componente psíquica que a obra deste artista manifesta.

Não pretendemos propriamente traçar um perfil psicológico do artista, apesar dos aspetos do seu trabalho nos remeterem para as suas tensões e preocupações psíquicas. A nossa abordagem à psicanálise e à psicologia serve antes, nesta investigação, para fornecer um conjunto de noções que se relacionam no processo do desenho da figura humana e da auto-representação e para realçar os conceitos de identidade presentes na obra de Egon Schiele. No oitavo capítulo, abordamos a teoria da empatia no contexto estético, focando-nos nas perspetivas da psicologia, da filosofia e das neurociências.

Destacamos os raciocínios de alguns psicólogos e filósofos que desenvolveram teorias sobre o processo empático na experiência estética, bem como as atuais investigações no domínio neurocientífico, que acrescentam novos dados ao fenómeno da empatia na arte.

Ainda neste capítulo, analisamos o pensamento de Gilles Deleuze relativamente à esfera das sensações no contexto estético, particularmente no que diz respeito à representação da figura humana. Por último, o nono capítulo relaciona o desenho, nomeadamente de corpo humano, à fenomenologia de Merleau-Ponty. Analisamos conceitos relevantes das suas reflexões, interligando a experiência sensorial, percetual e interpretativa através do desenho e destacando a experiência subjetiva desta atividade criativa.

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3 Prevemos, através desta metodologia, encontrar respostas às preocupações que motivaram esta dissertação, destacando a relevância do desenho da figura humana em termos de experiência de si mesmo e do mundo, bem como as diversas áreas de conhecimento que relaciona, e evidenciar Egon Schiele como um artista que traduziu radical e profundamente o seu tempo, chegando a uma conclusão elucidativa sobre a intencionalidade do desenho.

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4 1. Egon Schiele: biografia e percurso artístico

Sou o mais nobre dos nobres, e o mais humilde dos humildes.

Sou humano – amo a morte e amo a vida.1

― Egon Schiele

1. Poema Um Auto-Retrato, de Egon Schiele, 1910.

Viena, Leopold Museum.

Egon Schiele nasceu a 12 de Junho de 1890, em Tulln, uma pequena vila nos arredores de Viena onde o pai, Adolf Eugen Schiele, dirigia uma estação de comboios. O avô de Egon Schiele, Ludwig Schiele, tinha sido arquitecto e engenheiro ferroviário, construtor e primeiro inspetor geral da Austrian Imperial Privileged Bohemian Western Railway, em Praga (Artinger, 1999, p. 8; Schröder, 1995, p. 7).

O meio familiar despertou, cedo, em Schiele, um fascínio pelo mundo ferroviário e pelas viagens (Fischer, 1995, p. 9). Com apenas 7 anos, desenhava comboios já com um

1 Do poema Ein Selbstbild, 1910. Traduzido de Comini (2014, p. 15).

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5 grande rigor técnico, revelando uma forte aptidão para o desenho.2 Esta ocupação não era, no entanto, aceite pela família; as artes não se inseriam na educação pragmática de Schiele e os seus desenhos eram muitas vezes destruídos (Artinger, 1999, p. 11).

A infância de Schiele foi marcada pela doença mental do pai; no delírio das suas visões, chegara a pedir que se preparasse um lugar à mesa para convidados fictícios. A morte prematura de Adolf Schiele, em 1905, após um período de doença, provavelmente sifílis (Fischer, 1995, p. 11), deixou também em Schiele uma forte impressão de abandono, que se reflete na sua arte, predominantemente sombria.

Schiele mantinha uma ligação muito próxima com a irmã, Gertrude, quatro anos mais nova do que ele, que pousou, frequentemente, para os seus desenhos de figura humana, até ser mulher adulta.3

Após a morte de Adolf Schiele, a tutela de Egon Schiele foi assumida pelo seu tio e padrinho Leopold Czihaczek, chefe inspetor dos caminhos-de-ferro Emperor Ferdinand Northern Railways. Inserido na classe média próspera, este tio apoiou e financiou os estudos artísticos de Schiele, quando, em 1906, foi admitido na Academia de Belas- Artes de Viena (Artinger, 1999, p. 9).

A figura da mãe ocupa também um lugar particular na obra de Schiele. Para entendermos melhor alguns aspetos do trabalho que realizou, é relevante ter em conta a relação conflituosa entre Schiele e a mãe, situação que piorou após a morte do pai.

Provavelmente, segundo Steiner (1993, p. 64), a mãe de Schiele pressupunha que iria ter mais apoio por parte do filho, numa altura financeiramente adversa; Schiele, contudo, estava focado na continuidade da sua carreira artística, convicto de que a mãe faria os sacrifícios necessários para não prejudicar o seu percurso.

A precariedade financeira, a insegurança consequente das contingências da vida artística e o estilo de vida frívolo de Schiele eram motivos de conflito. Arthur Roessler, amigo e crítico da obra de Schiele, escreveu sobre a relação do artista com a mãe. De acordo com a sua versão, na obra As recordações de Egon Schiele, o artista relatou-o da seguinte forma:

2 Segundo a mãe de Schiele, conforme James Fox refere no documentário Bright Lights, Brilliant Minds - A Tale of Three Cities: Vienna 1908 (Shariatmadari, 2014), Schiele já desenhava antes dos dois anos de idade.

3 Egon Shiele tinha duas irmãs mais velhas, Elvira e Melanie, e uma mais nova, Gertrude. A primeira viria a falecer aos 10 anos de idade, quando Egon Schiele tinha apenas 3 anos. Antes do nascimento dos três irmãos, a mãe já tinha tido dois recém-nascidos mortos (Artinger, 1999, p. 8).

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6 É-me impossível compreender porquê e como a minha mãe pode tratar-me de forma tão diferente daquilo que penso ter direito de esperar, talvez mesmo de exigir! Se ao menos se tratasse de outra pessoa qualquer! Mas precisamente da minha mãe! É horrivelmente triste! E terrivelmente difícil de suportar, além disso! Não compreendo como pode acontecer. É contra a natureza. […] Muitas vezes considera-me como uma estranha consideraria um estranho. Isso afecta- me profundamente. (Roessler, citado em Steiner, 1993, p. 64)

Nas suas cartas, também, Schiele manifestava as suas inquietações e o seu sofrimento por não ser amado e queixava-se numerosas vezes de ser incompreendido, quer pelos seus professores, quer pela sua família, principalmente a mãe. As mesmas denunciam igualmente a sua dificuldade em lidar com a rejeição, pelas suas reações a certas situações ou críticas, com arrogância ou com medo (Steiner, 1993, p. 60).

Entre 1908 e 1917, Schiele criou várias obras com a temática mãe e filho, que representam bem a conceção perturbada de Schiele sobre a maternidade, fortemente associada ao medo da morte. Se pensarmos na temática, essas obras estão vinculadas à tradição simbolista, mas o tema é tratado por Schiele de forma mórbida, contrária ao estilo sentimental que outros artistas do simbolismo conferiam aos seus trabalhos (Ibid., p. 64). Trataremos de analisar as mesmas mais detalhadamente num dos capítulos subsequentes.4

Nos finais do século XIX, Viena era a quarta maior capital europeia, regida pela dupla monarquia da Áustria e da Hungria. A cidade acolhia diversas culturas e era reconhecida pela evolução do conhecimento científico e das várias associações ligadas à ciência e à investigação. A Academia de Belas-Artes e o interesse pelas coleções de arte, a par dos aspetos culturais e científicos referidos, proporcionavam à capital um ambiente que motivava os artistas e era favorável ao desenvolvimento intelectual (Artinger, 1999, p. 12).

Dos assuntos que se prendiam a questões existenciais do ser humano, a sexualidade era o mais abordado na literatura, na psicologia e na medicina. Vários autores expunham as suas teorias, de entre os quais o médico Sigmund Freud, que desenvolvia a teoria da

4 Destacaremos as pinturas Mãe e Filho (Madona), de 1908, Mãe Morta I, de 1910 e Mãe Morta II, de 1911, Mãe e Filho II, de 1912, e Mãe e Dois Filhos III, de 1917.

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7 psicanálise e da sexualidade, e Arthur Schnitzler, que considerava o erotismo o fator fundamental das motivações do ser humano (Ibid., p. 13).

A sexualidade era também representada na Arte Nova, ou Jugendstil5, um movimento criado na década de 1890, por jovens artistas que rejeitavam os conceitos clássicos das artes e cujo nome teve origem na revista de arte Jugend6, criada em Munique em 1896, que difundiu pela primeira vez os conceitos e obras do estilo da Arte da Nova (KrauBe, 1995, p. 84). O conceito de Jugendstil foi motivado pelo movimento inglês Artes e Ofícios, que lutava para valorizar os trabalhos artesanais, contra as correntes de produção em massa. Tinha como intuito fundamental “restituir à linha e ao plano o seu próprio estilo, baseado em formas naturais puras” (Dube, 1974, p. 15) e foi inicialmente orientado por elementos da natureza, à imagem de representações inglesas ou japonesas.

Em Viena, este movimento foi fundado em 1987 pelo pintor Gustav Klimt e é conhecido como Secessão de Viena (Ibid., p. 12) ou Estilo Secessionista (KrauBe, 1995, p. 84). Com o intuito de se afastar dos costumes artísticos anteriores, diversos artistas vienenses abandonaram, no final do século XIX, a Künstlerhaus7 de Viena para criar o movimento da Secessão. Conforme citado em Ackerl (1999, p. 15), “a cada idade a sua arte, à arte a sua liberdade”8 era a inscrição que se podia ler na entrada do novo prédio da Secessão, desenhado por Joseph Maria Olbrich e construído para que os artistas expusessem as suas obras.

Criaram também, no mesmo ano, a revista Ver Sacrum, outro meio através do qual expressavam as suas ideias. Todos os anos eram apresentados os novos conceitos artísticos da arte contemporânea, na Áustria e noutros países. Na exposição de 1908-09, foram os jovens expressionistas Egon Schiele e Oskar Kokoschka que se destacaram.

No início do séc. XIX, a arte ultrapassava o conceito de uma ocupação artesanal e eram necessários estudos na Academia de Belas-Artes para ser artista de profissão. O ensino artístico vienense estava assente na representação de obras da Antiguidade. O estudo da anatomia, da luz e da perspetiva faziam parte dos objetivos de estudo com mais relevância.

Os alunos desenvolviam o seu percurso começando pelo desenho de estátua, até à representação de modelo vivo. O estudo exaustivo do nu era uma componente essencial

5 Em alemão: Estilo da juventude.

6 Em alemão: Juventude.

7 Em alemão: Casa do Artista.

8 Tradução livre do inglês: “To every age its art, to art its freedom.”

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8 na educação artística, desde o século XVI, e as aulas de modelo vivo faziam parte da componente formativa que exigiam mais dedicação (Artinger, 1999, p. 16).

As obras da Antiguidade clássica, sobretudo a escultura, impunham as suas regras de beleza, que se relacionavam com o divino, facultando, aos corpos representados, proporções que se acreditava serem ideais (Ibid., p. 18). É importante referir que, nessa época, as mulheres não eram aceites na Academia, devido às aulas de modelo nu. Só após a queda do império austro-húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial, é que esta situação foi alterada (Ibid., p. 17).

Schiele ingressou na Academia de Belas-Artes, com apenas 16 anos. Mas os primeiros anos de aulas a desenhar e pintar, conforme as teorias clássicas, depressa desmotivaram o artista, que não se identificava com essa linha de orientação. Rejeitando os pilares académicos e buscando novas referências fora desse contexto, Schiele inicia-se na pintura impressionista e estabelece os seus primeiros contactos com o ambiente da arte vienense, nos cafés da cidade, ambiente no qual conheceu o pintor Gustav Klimt, que inicialmente influenciou a sua carreira artística (Ibid., p. 15).

Klimt foi um pintor decorativo que se distinguiu na passagem do século XIX para o século. XX. Estudou na Escola de Artes Decorativas e foi o mentor da estética da Arte Nova. Em 1894, Klimt desviou-se das práticas académicas. Marcada pelo erotismo, a sua obra originava polémicas e dividia a opinião pública. A sua técnica centralizava-se na exaltação da cor e da forma espacial e envolvia impressionismo, simbolismo e abstração. O estilo decorativo vanguardista, em Klimt, distinguia-se pelo uso formas realistas, por norma partes do corpo humano, que expressavam, sobretudo, a dimensão erótica, juntamente com padrões geométricos abstratos e coloridos, predominantemente prateados ou dourados, que formavam um mosaico. O contraste entre os motivos (superfície) e o corpo (forma) contribuem para intensificar a carga sensorial das suas obras (Ibid., p. 22).

Schiele e Klimt conheceram-se, em 1907, no Café Museum, em Viena. A sexualidade e a representação do corpo nu eram temas comuns aos dois artistas. Schiele ficou fascinado com a pintura de Klimt e este foi cativado pelo fulgor de Schiele, tornando-se seu mentor e apoiando-o nas suas atividades artísticas.

Em 1909, Schiele e alguns dos seus amigos artistas deixaram a Academia e fundaram o Neukunstgruppe9, em protesto contra o ensino tradicional, marcado pelo

9 Em alemão: Grupo da nova arte.

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9 conservadorismo do Professor Christian Griepenkerl (Fischer, 1995, p. 19). A primeira exposição do grupo realizou-se em Dezembro desse ano, no salão do negociador de arte Gustav Pisko, em Viena. Embora a exposição não tenha sido comercialmente rentável, Schiele fez-se notar perante algumas individualidades influentes no mundo das artes.

Expôs também 4 obras na Internationale Kunstschau10, em Viena, uma exposição presidida por Klimt. Essas obras, tal como outras do período inicial, evidenciam a influência do estilo do seu mentor (Schröder, 1995, p. 11).

Após deixar a Academia, Schiele começou a explorar novos estilos, até desenvolver o seu próprio. Familiarizando-se com as obras impressionistas e pós-impressionistas, nas exposições de arte moderna, em Viena, durante a Secessão, Schiele explorou as técnicas de pintura impressionista, pintando a natureza ao ar livre e libertando-se das normas académicas que o impediam de encontrar o seu próprio estilo (Artinger, 1999, p. 20).

No percurso que Klimt lhe permitiu partilhar, Schiele trabalhou, em 1910, numa ramificação da Secessão, as Wiener Werkstätte11, contribuindo com uma série de desenhos de moda masculina, assim como postais ilustrados nos quais se identificava, uma vez mais, a influência de Klimt.

As Wiener Werkstätte tiveram origem em 1903, por iniciativa de Josef Hoffmann, e estavam edificadas no conceito de “criação da obra de arte total” (Ibid., p. 24). Os secessionistas davam grande valor às Artes e Ofícios e acreditavam na “simbiose das artes” (Ackerl, 1999, p. 16), que englobava as diversas esferas da vida, como a arte, a ciência e a metafísica, e colocavam o trabalho das artes e ofícios ao mesmo nível da grande arte. Hoffmann expressou esta ideologia da seguinte forma:

Nunca pode ser suficiente apenas adquirir pinturas, mesmo que sejam verdadeiramente magníficas. A menos que as nossas cidades, as nossas casas, os nossos quartos, os nossos armários, as nossas ferramentas, as nossas roupas e as nossas jóias, a menos que nossa linguagem e os nossos sentimentos expressam o espírito do nosso tempo de uma forma clara, simples e bonita, ficamos incrivelmente para trás em relação aos nossos antecessores e nenhuma mentira dissimulará essas fraquezas.12 (Hoffmann, citado em Ackerl, 1999, p. 16)

10 Em alemão: Mostra Internacional de Arte.

11 Em alemão: Workshops Vienenses.

12 Tradução livre do inglês: “It can never be sufficient merely to acquire paintings, even if they are truly magnificent. Unless our towns, our houses, our rooms, our cupboards, our tools, our clothes and our jewelry, unless our language and our feelings express the spirit of our time in a clear,

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10 Neste seguimento de pensamento, Hoffmann, o artista Kolo Moser e o colecionador de arte Fritz Waerndorfer fundaram as Wiener Werkstätte, que se dedicaram ao design e venda de produtos das Artes e Ofícios. As Wiener Werkstätte foram moldadas à imagem da Guild of Handicraft13, fundada pelo britânico Charles Robert Ashbee, por sua vez, influenciado pelos conceitos de John Ruskin e William Morris.

Nas Wiener Werkstätte realizavam-se objetos artesanais a preços acessíveis, opondo-se à produção mecanizada (Dube, 1974, p. 15). A cooperação entre artesãos, intimamente conhecedores dos materiais e processos, e os dotados artistas que apresentavam o design, permitia alcançar artigos de boa qualidade. O declínio das Wiener Werkstätte deu-se com a crise económica dos finais da década de 1920 e acabaram definitivamente em 1932 (Ackerl, 1999, p. 16).

Schiele dedicou-se, inicialmente, à prática do retrato, que, por ser uma solicitação recorrente, proporcionava aos artistas algum conforto económico. Entre 1909 e 1910, retratou algumas personalidades, como o pintor Anton Peschka, amigo de Schiele.14 O pintor e gravador Hans Massmann foi por ele também retratado. Schiele recebeu, em 1910, uma encomenda do arquiteto Otto Wagner, que terá igualmente sugerido ao artista que retratasse algumas personalidades distintas de Viena. No entanto, insatisfeito com o resultado das sessões em que Schiele o retratava, Wagner desinteressou-se, cancelou a encomenda e o projeto não chegou a ser finalizado. Schiele retratou principalmente amigos e admiradores, mas não se transformou no retratista que a sociedade vienense procurava (Artinger, 1999, p. 31). Foi, porém, o artista que mais se empenhou em contornar o retrato convencional, desde a busca em revelar os inconstantes estados de espírito dos seus modelos, a uma abordagem mais empática que se preocupava com a essência da alma e as suas vulnerabilidades (Comini, 2014, p. 18).

Durante esse período, Schiele já tinha desenvolvido o seu próprio estilo e tinha um traço seguro. “Schiele desenhava depressa. O lápis deslizava sobre a superfície branca do papel como que guiado por uma mão espectral, como se de um jogo se tratasse, com uma gestualidade que por vezes lembrava o traço dos pintores orientais.” (Artinger, 1999, p. 32).

simple and beautiful manner, we fall incredibly far behind our predecessors, and no lie will dissimulate these weaknesses.”

13 Em inglês: Associação de Artesanato.

14 Peschka viria a casar-se, em 1914, com a irmã mais nova de Schiele.

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11 No mesmo sentido, Boyd (2014), que observou e analisou a obra de Schiele de perto, refere, no seu artigo Egon Schiele: a graphic virtuoso rescued from the wilderness, não haver evidências de esboço prévio ou traços hesitantes com que um artista inicia um desenho. Os traços de Schiele são duros, carregados e desenhados com firmeza e fluidez, uma virtuosidade gráfica incomparável.

Heinrich Benesch, que assistiu a imensas sessões de desenho de Schiele, descreveu também esse dom do artista:

A beleza das formas e das cores que Schiele nos deixou nunca tinha existido antes. A sua arte de desenhar é fenomenal. A segurança da mão é infalível, por assim dizer. A maior parte das vezes, ao desenhar, sentava-se num tamborete baixo, com a prancha e a folha de desenho em cima dos joelhos, a mão direita, com a qual desenhava, apoiada na prancheta. Mas também o vi desenhar numa posição totalmente diferente, com o pé direito assente num tamborete baixo, de pé em frente do modelo. Então, apoiava a prancheta no joelho direito, com a mão esquerda a segurá-la pelo bordo superior. Sem qualquer apoio, assentava então o lápis verticalmente na folha e começava a desenhar, de forma que as linhas lhe saíam do ombro, digamos. E tudo ficava bem ordenado. Se cometia um erro, o que era extremamente raro, deitava fora a folha: ignorava a borracha.

Schiele só desenhava a partir da natureza. Eram, essencialmente, os contornos, que apenas adquiriam o seu carácter plástico quando recebiam a cor. Incluía sempre as cores de memória, sem modelo. (Benesch, citado em Steiner, 1993, p.

33)

Em desenhos como Nu Recostado, de 1910, está refletido o traço particular de Schiele.

Um traço assertivo, que contornava os corpos com dureza e precisão, linhas inacabadas, alguns contornos angulados, zonas de músculos e ossos ausentes e espaços vazios, que conferiam à obra um lado inacabado a ser completado mentalmente pelo observador. A linha assumia, assim, um valor próprio, autónoma do corpo que contornava e contrastando com os espaços vazios (Artinger, 1999, p. 32).

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12

2. Nu Recostado, 1910. Grafite sobre papel, 55.7 x 37 cm.

Graz, Neue Galerie am Landesmuseum Joanneum.

A singularidade do estilo de Schiele concede às suas obras um tom de espontaneidade e energia, envolto num ambiente tenso e esquivo. Schiele adicionava cor aos seus desenhos posteriormente, usando manchas de guache ou aguarela em contraste com a tridimensionalidade do objeto. A semi-abstrata sobreposição das cores surge como efeito de dissimulação do impulso erótico que a imagem suscitaria, inicialmente, pelo uso das suas poses sexuais explícitas, transformando assim a motivação sensual instintiva numa experiência mais intensa e pessoal (Boyd, 2014).

A tendência de Schiele para deformar o corpo constituía um fator de inovação, expresso nas suas obras através de poses com contorções violentas, nas quais o olhar era dirigido para o sexo. Tinha especial interesse por figuras magras, rígidas, conferindo-lhes um carácter sofredor e atormentado; eram desprovidas de ornamentos, concentrando-se na singularidade do corpo, num ambiente vazio (Artinger, 1999, p. 61).

A partir de 1910, Schiele afastou-se do Jugendstil e autonomizou o seu estilo. Os contornos angulosos passaram a ser um elemento característico da sua linguagem artística. A Arte Nova era principalmente definida pelo erotismo, em representações

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13 delicadas, das quais Schiele se desligara para focar, noutro sentido, as suas obras, marcadas pela sexualidade como “pulsão existencial humana” (Ibid., p. 27).

A sua própria sexualidade era o seu tema principal, revelando-se, nos seus trabalhos, como uma tentativa de indagar as suas reações emocionais (Ibid., p. 54). Em oposição à ornamentação do corpo a que se assistia nas representações de artistas da Secessão, como Klimt, Schiele acreditava que a representação do corpo nu era a forma mais radical de auto-expressão, em que a questão fundamental não era a exposição do corpo, mas sim a exploração do eu, por inteiro (Steiner, 1993, p. 12).

A arte de Schiele era expressiva, provocadora e desprovida de qualquer inibição sexual, chocando, assim, um público que considerava as suas obras obscenas e levando, até, a que alguns desenhos fossem retirados de uma exposição na qual participou, em 1910.

Assistia-se, na sociedade vienense, no início do século XX, a uma cultura repressiva e a proibições públicas que levavam a que a sexualidade e os comportamentos desviados dos valores da sociedade pública se agregassem num mundo escondido. Schiele impugnava essa esfera e esforçava-se para, através do seu trabalho artístico, desmascarar a hipocrisia social que se vivia (Boyd, 2014).

Antes da Primeira Guerra Mundial, a classe burguesa ocultava a vida íntima e as manifestações do corpo e da sexualidade eram sigilosa e pudicamente reprimidas.

Alguns nus de Schiele expressam esses sentimentos de vergonha, que se contrapõem à nudez corporal e genital, como, por exemplo, na obra Rapariga Nua de Braços Cruzados (Gertrude Schiele), de 1910, na qual a pose tímida (os braços a tapar o peito, a cabeça virada) contrasta com a exposição dos órgãos genitais. Para os seguidores das reflexões naturistas, estar nu significava estar livre das normas da sociedade; os corpos que capturavam em fotografias não se apresentavam sensualmente desvendados, mas pura e simplesmente despidos. Este aspeto anula, habitualmente, o carácter erótico da sexualidade (Schröder, 1995, p. 102).

Apesar de moralmente reprimida, a sexualidade estava sempre presente. Na viragem do século, assistia-se a um aumento considerável de literatura sobre patologias sexuais, que explorava indicadores sexuais relativos ao carácter, à esfera psíquica, à capacidade intelectual e às qualidades morais, suscitando a controvérsia entre o que devia ser considerado sexualmente repreensível e o que era aceitável (Ibid., p. 104). Alguns exemplos são as obras Sexo e Carácter (1903), de Otto Weininger; Transições Sexuais (1905), de Magnus Hirschfeld; Psychopathia sexualis (1905), de Baron Richard von Krafft-Ebing; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) de Sigmund Freud; e

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14 A vida sexual do nosso tempo nas suas relações com a cultura moderna (1908), e A prostituição (1912), de Iwan Bloch. A psicanálise surgiu nesse período de conflito em que a libertação dos impulsos naturais falhava, dando origem à doença mental (Ibid.).

Alguns textos contemporâneos sobre a personalidade do artista, assim como cartas que este último escreveu, mostram-nos o lado reservado e sensível de Schiele e a sua preocupação com a sexualidade e a condição existencial humana, contrapondo-se à ideia de exibicionismo e desinibição (Chan, 1997, p. 1).

Em 1911, Schiele foi viver para Krumau, cidade natal da mãe e onde ele passava alguns longos períodos, com Wally Neuzil, anterior modelo de Klimt, que permaneceu modelo e namorada de Schiele até este se casar, mais tarde, com Edith Harms. Schiele terá sido muito produtivo em Krumau, onde se dedicou também à pintura paisagista. Mas a sua relação com Neuzil, as sessões de nudez e as visitas de crianças ao estúdio do pintor chocavam a população da pequena cidade provincial.

Schiele foi então viver para Neulengbach, uma pequena vila perto de Viena. Aí, novamente, o artista utilizava as crianças de vizinhos para os seus estudos de desenho.

Em 1912, Neuzil e Schiele acolheram, uma delas, uma rapariga de 13 anos que tinha fugido de casa. A polícia acabou por ser alertada e, no dia 13 de abril, Schiele foi detido e acusado de rapto, de sedução de menor e de possessão negligente de material erótico, inclusivamente desenhos com crianças como modelo, envolvendo outros temas moralmente repreendidos, como, por exemplo, mulheres lésbicas a beijarem-se, semi- nus com os órgãos sexuais explicitamente representados e o próprio ato da masturbação.

A 30 de abril, Schiele foi julgado no tribunal distrital, em St. Pölten. As duas primeiras acusações foram retiradas e a terceira condenou Schiele a três dias de prisão. Ao todo, Schiele passou vinte e quatro dias preso. Terá voltado para Viena e continuou a expor, ainda que vivendo com uma grande carência financeira (Boyd, 2014; Fischer, 1995, p.

25; Schröder, 1995, p. 15).

A experiência terá sido traumatizante para Schiele, uma vez que a pena a que poderia ser condenado, caso fosse considerado culpado, era longa (Artinger, 1999, p. 59).

Durante a sua permanência na prisão, pintou uma dúzia de aguarelas, nas quais inseriu legendas que nos ajudam a perceber a tensão e frustração por que terá passado, como, por exemplo, a frase que se pode ler numa aguarela pintada a 23 de abril: “Inibir o artista é um crime, é assassinar a vida antes de ela florescer!”15 (Fischer, 1995, p. 25).

15 Tradução livre do inglês: “Hindering the artist is a crime, it is murdering life in the bud!”.

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15

3. Inibir o artista é um crime, é assassinar a vida antes de ela florescer!, 1912.

Aguarela e grafite sobre papel, 48.5 x 31.5 cm. Viena, Albertina.

Para além de família, namoradas (incluindo, mais tarde, a sua mulher) e modelos profissionais, pousaram para Schiele prostituas e raparigas menores, que abordava, geralmente, nas ruas. O artista parece ter desenvolvido um interesse especial por jovens raparigas, principalmente quando estas se encontravam no início da puberdade (Ibid., p.

34).

A 28 julho de 1914, o império austro-húngaro declarou guerra à Sérvia, dando início aos conflitos que levaram à mobilização geral, a 31 de julho, e à Primeira Guerra Mundial. Mas a carreira de Schiele continuou a progredir, participando em diversas exposições, em Viena e por toda a Europa, nomeadamente Dresden, Roma, Bruxelas e Paris.

A 17 de junho de 1915, Schiele casou com Edith Harms, quatro dias antes de ser chamado para cumprir o serviço militar, em Praga. Após o tempo de treino, foi destacado para Viena para escoltar prisioneiros de guerra russos, nunca tendo sido enviado para a linha da frente. Era-lhe permitido, até, passar as noites no seu estúdio, em Hietzing, quando não estivesse de serviço.

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16 Em 1916, foi destacado como militar amanuense, sendo posteriormente envidado para um campo de prisioneiros de guerra em Mühling, onde lhe terão facultado um espaço para dedicar-se à atividade artística. Em 1917, foi novamente transferido para Viena, para o comissariado do fornecimento do exército, onde conheceu um negociador de arte, Karl Grünvald, que lhe terá dado a tarefa de desenhar os armazéns de abastecimento alimentar e algumas divisões do comissariado; no final do ano, Schiele foi deslocado para o Museu do Exército. Schiele conseguiu evitar, sempre, a frente de batalha, privilégio que, no passado, o exército alemão concedia a intelectuais e artistas (Ibid., p.

41). O artista desenhou vários prisioneiros e oficiais, austríacos e russos, durante o tempo em que foi militar e, apesar da guerra, a sua carreira artística continuou em progressão.

Esteve representado nas exposições da Secessão de Berlim, na Kunstschau e na Galeria Guidot Arnot, em Viena, em 1915, na Secessão de Viena, na Galeria Golts, em Munique, e na Graphikausstellung16, em Dresden, em 1916, continuando, no ano seguinte, a fazer parte de exposições em diversas cidades europeias.

A 6 de fevereiro de 1918, Gustav Klimt morreu e Schiele tornou-se o seu sucessor na pintura vienense. Este era, finalmente, reconhecido na Áustria e o seu maior êxito, artístico e financeiro, foi alcançado, nesse mesmo ano, na 49ª exposição da Secessão de Viena, na qual apresentou 19 pinturas e 29 desenhos. Concebeu também o cartaz para a mesma, no qual se representou com os seus amigos artistas.17

Mas o brilho da sua aura não durou por muito mais tempo. Em outubro de 1918, pouco antes do final da Primeira Guerra Mundial, Edith Harms, grávida de seis meses, faleceu de gripe espanhola, que se espalhava pela Europa. Schiele, que também tinha sido contagiado pelo vírus, sucumbiu três dias depois, a 31 de Outubro, e foi enterrado a 3 de novembro, no cemitério de Ober St. Veit, em Viena (Schröder, 1995, p. 22).

O reconhecimento internacional do artista deu-se nos finais da década de 50 do século XX, quando o movimento do modernismo se envolvia na esfera do abstrato, manifestando uma mudança de perspetiva no que dizia respeito à figuração e ao objeto artístico (Werkner, 1989, p. 6).

16 Em alemão: Exposição de Artes Gráficas.

17 No cartaz, Schiele reproduziu um dos seus quadros incompletos, Os amigos (1918). Na cabeceira da mesa está representado Schiele; na obra original, o lugar frente ao mesmo é ocupado por uma figura calva, que corresponderia a Klimt; Schiele deixou esse lugar vazio no cartaz, representando a ausência de Klimt, que tinha falecido pouco tempo antes (Fischer, 1995, p. 42).

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17 Schiele foi extremamente produtivo, na sua curta carreira. Criou milhares de trabalhos em papel e pintou mais de trezentos quadros a óleo, sendo a figura humana o objeto mais importante da sua arte (Chan, 1997, p. 1).

Grande parte da obra de Schiele encontra-se Leopold Museum, em Viena, numa coleção de aproximadamente 40 pinturas e 180 trabalhos em papel, apresentada na exposição permanente Egon Schiele: self-abandonment and self-assertion. Outros trabalhos do artista fazem parte de coleções de diversos, como os museus Albertina e Belvedere, em Viena, o Egon Schiele Museum, em Tulln, Viena, a Neue Galerie e o Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.

Em 2005 (dezembro de 2005 a março de 2006), o museu Albertina organizou a mais abrangente exposição sobre o artista desde 1948, apresentando 210 obras, das quais 130 pertencentes ao museu. Das mais recentes exposições sobre o Schiele, destacam-se:

Melancholy and provocation: the Egon Schiele project (setembro de 2011 a abril de 2012), uma exposição dedicada à vida e obra do artista, organizada para a comemoração dos 10 anos do Leopold Museum, em Viena; Egon Schiele: the radical nude (outubro de 2014 a janeiro 2015), que esteve patente na Courtauld Gallery, em Londres; Wally Neuzil: her life with Egon Schiele (fevereiro a setembro de 2015), no Leopold Museum;

Tracey Emin - Egon Schiele: Where I want to go (abril a setembro 2015), no Leopold Museum, uma exposição na qual a artista Tracey Emin coloca os seus trabalhos lado a lado com os de Schiele; The women of Klimt, Schiele and Kokoschka (outubro 2015 a fevereiro 2016), no Belvedere, em Viena; e por último, Egon Schiele: early paintings (abril a outubro de 2016), no Egon Schiele Museum, em Tulln, juntando obras da sua adolescência, nomeadamente, 16 pinturas a óleo de 1907 a 1908.

Uma futura exposição está prevista no museu Albertina, de fevereiro a junho de 2017. 18

18 Estas informações foram recolhidas nos websites dos respetivos museus.

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18 2. Viena na viragem para o século XX

Vienna, Lord, if there is a heartache Vienna cannot cure, I hope never to feel it. I came home cured of everything except of Vienna.19

― Storm Jameson Nos finais do século XIX, Viena era uma cidade de paradoxos. O charme de uma capital moderna escondia realidades duras e controversas, como situações sociais difíceis para a classe trabalhadora e para a classe média. Diversas tendências intelectuais surgiram, defrontando-se com a materialidade e a superficialidade da sociedade, e contribuíram para uma marcada evolução nas artes e no pensamento filosófico e científico (Dabrowski, 1997, p. 8).

O império austro-húngaro encontrava-se numa fase de transição, a classe média tinha o lugar definido entre a aristocracia e a igreja e a célere industrialização aliciava trabalhadores imigrantes (Fischer, 1995, p. 11). O ambiente cultural e intelectual estava dividido entre o fascínio pelo progresso que a tecnologia e a industrialização permitiam, e a inquietação acerca das limitações provenientes da mecanização e da urbanização, aliados aos problemas políticos e sociais, como a questão das nacionalidades ou das desigualdades sociais (Dabrowski, 1997, p. 8).

Vivia-se em Viena a chamada Idade de Ouro, mas sentia-se, por detrás do brilho das aparências, uma realidade oposta, de ansiedade e opressão. A aparente “cidade dourada”

abrigava os sonhos e a criação, mas também e o desespero e a destruição.

Enquanto vários países da Europa lutavam por um ideal democrático, Viena, sob o império de Franz Josef I, celebrava, em 1908, o ano de Jubileu de Diamante do imperador. Para marcar a celebração, foi organizada uma grande exposição, em que Klimt participou como figura proeminente da arte vienense. Klimt pintou várias mulheres da alta sociedade de Viena e envolvia as suas figuras no que James Fox descreveu, no documentário Bright Lights, Brilliant Minds - A Tale of Three Cities:

Vienna 1908, como “uma constelação cintilante de ornamento”20 (Fox, em

19 Em Women Against Men, 1933. Consultado em Jameson (1933, p. 37).

20 Tradução livre do inglês: “a sparkling constellation of ornament”.

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19 Shariatmadari, 2014) e que, efetivamente, se observa na obra considerada a sua pintura mais famosa, apresentada nesse mesmo ano: O Beijo.21

Era precisamente a tensão e a ansiedade que forneciam a Viena a sua particular “energia criativa” (Ibid.). Essa energia era essencialmente partilhada nos cafés. Eram lugares para beber, refletir, escrever e onde surgiam ideias rebeldes para debater arte, política e questionar hábitos vienenses. Despertavam pensamentos vanguardistas nessa atmosfera cativante, destacando Viena como um centro de cultura e intelectualidade revolucionárias. O Café Central era um dos mais frequentados por personalidades como Leon Trotsky, Sigmund Freud ou Adolf Hitler22.

O conflito entre uma visão racional da vida e a procura da irracionalidade era expresso entre diversas ideologias: o pessimismo cultural do filósofo Ludwig Wittgenstein, o universo absurdo e angustiante do escritor Franz Kafka, o retrato da sociedade vienense na sua decadência pelo escritor e dramaturgo Arthur Schnitzler (Ackerl, 1999, p. 6).

Em 1910, o próprio Schiele expressou-se sobre a cidade de Viena, numa carta a Anton Peschka, de uma forma pouco entusiasta: “Viena é uma cidade de sombras. É negra…”23 (Schiele, 1910, citado em Fischer, 1995, p. 11).

Um dos artistas decidido a deixar a sua marca na cidade foi Adolf Loos. Este talentoso arquiteto considerava desonesta a propensão de Viena para o ornamento, apesar da emoção estética que despertava. Em 1908, escreveu um manifesto em desaprovação dos formulários decorativos, intitulado Ornamento e Crime, no qual defendia que era necessário libertar a sociedade da “doença do ornamento”24 (Loos, 1908, p. 20; Loos, 1908, citado em Shariatmadari, 2014). Alguns meses após ter escrito o manifesto, Loos

21 Embora este quadro tenha sido delineado no tom de romance, amor e harmonia mistificado na Idade de Ouro, emanando essa perceção de sentimentos, uma outra interpretação pode revelar-se mais adequada à realidade por detrás da beleza da obra. A ambivalência do abraço representado revela-se principalmente, segundo Fox, na postura da mulher. Como que subjugada pela figura masculina, a mulher encontra-se de joelhos, o seu corpo numa posição desconfortável, as mãos contraídas/contorcidas. O seu rosto não está voltado para o dele, contrariando a reciprocidade do beijo. Esta ambiguidade aparenta mais desvendar o que realmente acontecia em Viena naquela altura – por detrás da fachada dourada, a tensão, o medo, a submissão (Fox, em Shariatmadari, 2014).

22 Hitler tentou por duas vezes, sem sucesso, introduzir-se no mundo artístico em Viena. No início de 1908, Hitler foi para Viena com o intuito de se apresentar a um reconhecido pintor na cidade, mas o encontro não chegou a acontecer. No mesmo ano, candidatou-se à Academia de Belas-Artes, onde teria sido colega de Schiele. Conforme nos mostra a consulta de uma cópia da lista de admissões à Academia, a candidatura de Hitler não só foi rejeitado como não foi sequer permitido a este realizar o exame de entrada. Mais tarde, Hitler terá confessado que as coisas teriam sido muito mais fáceis se tivesse tido a confiança para se apresentar ao pintor e tornar-se ele mesmo um artista (Shariatmadari, 2014).

23 Tradução livre do inglês: “Vienna is a city of shadows. It is black…”

24 Conforme Loos (1908, pp. 20–21): “We have outgrown ornament; we have fought our way through to freedom from ornament. […] Very well, the ornament disease is recognized by the state and subsidized with state funds. But I see in this a retrograde step”.

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20 recebeu uma encomenda para desenhar o seu primeiro prédio, hoje chamado Looshaus25, mesmo ao lado do palácio do imperador. A sua construção exibia uma transformação radical e revolucionária da arquitetura vienense: uma estrutura totalmente plana e despida de qualquer ornamento. A obra suscitou severas críticas e intensa rejeição, tendo os habitantes da cidade chegado a diligenciar para que fosse demolida, uma hostilidade que quase levou Loos ao suicídio (Fox, em Shariatmadari, 2014).

Naquele período, Viena tinha uma das mais altas taxas de suicídio da Europa e os intelectuais discutiam a situação trágica em que a população da cidade vivia. De entre eles, terá sido Freud que mais se empenhou na descoberta das causas do mal-estar vienense. Na sua prática médica, Freud começou a interessar-se pela vida interior dos seus pacientes. Na transcrição da única gravação de voz conhecida de Freud, que podemos ouvir no documentário de Shariatmadari (2014), o médico austríaco revelou a sua descoberta da psicanálise: “Descobri fatos novos importantes sobre o inconsciente na vida psíquica. Dessas descobertas nasceu uma nova ciência: a psicanálise… e um novo método de tratamento da neurose.”26 (Freud, em Ibid.).

Para além do carácter neurótico da população, Viena era também o lugar onde se podia explorar a criatividade e a inovação, compondo o ambiente ideal para as investigações e as novas conceções de Freud, que requeriam o “pano de fundo emocional”27 (Alfred Pritz, em Shariatmadari, 2014) que a cidade possuía.28 Freud mostrou que, por detrás da fachada da sociedade, existia uma oculta emergência sexual, transformando a compreensão da essência do ser humano (Fox, em Ibid.).

Se por um lado as suas teorias chocavam os vienenses, por outro, uma nova geração estava aberta a aceitá-las. De entre os artistas que condenaram os padrões vienenses e desafiaram os “perigosos limites da expressão psicológica” (Ibid.) destacam-se o já mencionado Oskar Kokoschka, o compositor Arnold Schoenberg e, inevitavelmente, Egon Schiele, refletindo todos eles o período introspetivo que sucedia em Viena.

Um dos problemas da capital austríaca era também a prostituição, numa altura em que as mulheres eram completamente desprotegidas pela lei ou por qualquer apoio social. A

25 Em alemão: Casa Loos.

26 Tradução livre do inglês: “I discovered some important new facts about the unconscious in psychic life.

Out of these findings grew a new science: psychoanalysis... and a new method of treatment of neurosis.”

27 Tradução livre do inglês: “emotional backup”.

28 Conforme Prof. Dr. Alfred Pritz, presidente da Universidade Sigmund Freud, transcrito de Shariatmadari (2014): “Some say, Freud could only do it in Vienna because the Viennese are so neurotic.

But I also say Freud could do it because it was a place for creativity.”

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21 voz oprimida dessas mulheres foi exposta no livro de Else Jerusalem29, Der heilige Skarabäus, cuja escrita iniciou em 1908 – talvez o primeiro romance da história baseada num bordel – e que capturava a lamentável realidade da mulher em Viena. A autora pretendia desmascarar a hipocrisia vienense e quebrar preconceitos, assim como manifestar o desejo da mulher ter direito à sexualidade, sem ser prostituta. A sua obra revela, segundo a professora Brigitte Spreitzer (em Shariatmadari, 2014), uma forte consciência da literatura alemã e uma mulher destemida e desprendida de tabus.

Outra dura realidade na cidade era o submundo que esta dissimulava. Muitos sem- abrigo refugiavam-se precisamente por baixo da bela Viena – um mundo completamente oposto. O fotógrafo Hermann Drawe e o jornalista de investigação Emil Kläger penetraram nessa realidade subterrânea, capturando imagens e entrevistas e expondo, pela primeira vez, em 1908, o desespero e a luta pela sobrevivência das pessoas que ali viviam, em condições miseráveis – as almas esquecidas de Viena (Fox, em Ibid.). A crise revelava-se; a população tinha aumentado consideravelmente nas últimas décadas, resultando em pobreza e desespero. Outra figura influente desse período foi o político Karl Lueger, o homem com mais poder na cidade. Mas os ideais de Lueger eram assentes no anti-semitismo, que converteu numa política da cidade e instigou conceções hostis na mente dos vienenses: um dos seus ávidos admiradores era Adolf Hitler.

Na obra Fin-de-siècle Vienna, originalmente publicada em 1980, o historiador Carl Emil Schorske descreveu a cidade como “o retrato do fim do mundo”30 (Schorske, 1980, citado em Ibid.).

29 Existem poucos dados biográficos sobre Else Jerusalem, devido à falta de documentos. Sabe-se que nasceu em Viena em 1877, numa família judaica; aos 16 anos, desejava estudar no ensino superior, mas as universidades em Viena não admitiam, naquela época, mulheres, forçando-a a fazer estudos irregulares; aos 22 anos, escrevia já pequenas histórias e a sua obra revela, segundo Brigitte Spreitzer, em Shariatmadari (2014), uma forte consciência da literatura alemã.

30 Tradução livre do inglês: “le portrait for the end of the world”.

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4. Hermann Drawe; Emil Kläger. Durch die Wiener Quartiere des Elends und Verbrechens, 1908.

Fotografias de Hermann Drawe.

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23 3. Expressionismo

Expressionism is the symbol of the unknown in us in which we confide, hoping that it will save us. It is the token of the imprisoned spirit that endeavours to break out of the dungeon – a tocsin of alarm given out

by all panic-stricken souls. This is what Expressionism is.31

― Hermann Bahr Enquanto, nos finais do século XIX, a capital francesa reunia os novos conceitos artísticos que permitiam o desenvolvimento homogéneo de um novo estilo, a arte alemã traduzia ainda o ambiente político existente antes da formação do Império Alemão, em 1871, com escolas de arte e movimentos artísticos dispersos pelo país. O grande contraste da arte alemã, se comparada, por exemplo, com o caso de alguns artistas franceses, reside no modo como perturba o equilíbrio da forma e do conteúdo com conceitos filosóficos, idealistas ou românticos. Foi precisamente esta característica alemã que estimulou o expressionismo, no qual a expressão define a forma, libertando- se de dissimulações alegóricas (Dube, 1974, p. 8).

Em Berlim, o pintor Anton von Werner trabalhava ao lado do imperador e foi representante de uma instituição artística que se propunha homenagear a dinastia e representar temas históricos, conforme aprovação real. Este género de pintura foi também reconhecido e integrado por outras escolas de arte em Munique, Dresden e outras cidades. Contra esta institucionalização da arte emergiram as várias secessões na década de 1890, tendo sido a primeira em Munique, em 1892, determinando-se a divulgar as ideias da arte impressionista francesa e favorecer as partilhas internacionais (Ibid., p. 10).

Bahr (1916, p. 117) diz-nos que os relatos existentes sobre o expressionismo nos revelam apenas uma procura sem precedentes, fazendo emergir uma nova forma de arte que se opõe ao impressionismo. Enquanto este procura a ilusão para imitar a realidade, o expressionismo rejeita este processo expressivo e as adjacentes normas que definiam a pintura até lá. Bahr (1916) utiliza o argumento de Goethe, quando este diz que “os olhos

31 Em Expressionism, 1916. Consultado em Bahr (1916, p. 121).

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24 tanto percebem como falam”32 (Goethe, citado em Bahr, 1916, p. 120), para estabelecer a distinção entre o impressionismo e o expressionismo:

O olho do impressionista apenas contempla, não fala; ouve a pergunta, mas não responde. […] ouve o mundo, mas não respira sobre ele. […] O expressionista, ao contrário, abre a boca da humanidade; […] procura dar a resposta do espírito.33 (Bahr, 1916, p. 120)

O expressionismo nasceu assim da necessidade do ser humano se reencontrar no meio da tensão e das angústias que caracterizavam o período, revelando-se como a expressão desse desespero. E mesmo que não se compreendam as imagens nas obras expressionistas, todas elas, nas palavras de Bahr (1916, p. 117), “violentam o mundo sensível”34.

Se o espectador considerar que o pintor deve representar somente o que vê, o artista expressionista afirmará que pinta, ele também, apenas o que vê; cada um atribui um significado diferente ao termo ver.35

Bahr (1916) argumenta que a história da pintura é a história da visão e que é a mudança do modo de ver que impulsiona novas técnicas. O olho transforma os seus processos de encontro à relação do ser humano com o mundo e a sua visão do mundo está de acordo com a atitude que toma perante ele (Ibid., p. 117). A nossa experiência deriva da envolvência de uma influência exterior com outra interior, diferente em cada pessoa, dependendo de fatores como o nível de atenção, o grau de intencionalidade ou o conhecimento adquirido. A mudança destes aspetos, sejam estes percecionados conscientemente ou não, resultará também na mudança da aparência. Quando estas influências atuam na forma de ver do artista, este irá expressar-se consoante tiver mais confiança em si mesmo ou no mundo exterior. O autor defende que existem três comportamentos que o ser humano pode adotar relativamente aos “fenómenos da

32 Tradução livre do inglês: “the eye both perceives and speaks”.

33 Tradução livre do inglês: “The eye of the Impressionist only beholds, it does not speak; it hears the question, but makes no response. […] listens to the world, but does not breathe upon it. […] The Expressionist, on the contrary, tears open the mouth of humanity; […] it seeks to give the spirit’s reply.”

34 Tradução livre do inglês: “do violence to the sensible world”.

35 O artista David Hockney observou numa entrevista, segundo o relato de Boyd (2014), que um dos aspetos fundamentais de saber desenhar é que ensina a olhar. Goethe, citado em Bahr (1916, p. 120), também se expressou no mesmo sentido: “Painting sets before us that which a man could and should see, and which usually he does not see”.

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25 aparência”36 (Ibid., p. 118): uma vez distinguido o eu do mundo, o interior do exterior, o ser humano terá a possibilidade de fugir do mundo para dentro de si, de fugir de si para o mundo, ou de permanecer no limite entre os dois. A arte começou com o impulso de escapar à natureza, por temê-la e não compreendê-la, e o ser humano fê-lo para dentro de si, buscando romper com a aparência externa para permitir ao mais íntimo revelar-se, criando um mundo próprio no mundo real. Contrapondo a “imagem na mente” à

“aparência do olhar” (Ibid.), o ser interior ao mundo exterior, liberta-se, através da arte, expressando uma aparência derivada do seu íntimo.37

Numa altura determinante para a interioridade e para a subjetividade na arte, o expressionismo austríaco desenvolve-se no conflito entre a arte e a sociedade, considerando que o mundo moderno não concebe estas como conciliáveis. Como o descreve Schröder (1995, p. 45), “a arte tem de ser crítica, ou não é arte; a subversão é o seu standard e o desvio da norma é o seu ideal”38. Segundo alguns historiadores de arte, os vienenses representavam distintamente esse conflito no qual, numa época em que, na psicanálise e na arte, os pensamentos se direcionavam para a sexualidade, o erotismo institucionalizado e a pornografia dificilmente se distinguiam, confrontando interpretações divergentes.

O expressionismo é assinalado pela rejeição dos conceitos de beleza, transportando-nos para a dimensão do feio e separando-se do Jugendstil. Como exemplo disso, podemos apontar o contraste existente nas obras de Klimt e de Schiele: enquanto a dureza da realidade é dissimulada por estruturas formais nas poses eróticas de Klimt, Schiele serve-se da cor para focar a atenção no elemento tabu. As regras de beleza, sobre as quais assentavam a obra de Klimt e de elementos da sua esfera, são destruídas nos trabalhos de Schiele, tornando insignificantes os indícios de simbolismo e estética presentes na sua obra. Schröder (1995, p. 89) sustenta que as “estéticas da não-

36 Tradução livre do inglês: “phenomena of appearance”.

37 Conforme Bahr (1916, p. 118): “Art begins, an attempt of man to break the grip of appearance by making his ‘innermost’ appear also; within the outer world, he has created another world which belongs to him and obeys him. […] In primitive ornament change is conquered by rest, the appearance to the eye by the Picture in the mind, the outer world by the inner man, and when the reality of nature perplexes and disturbs him because he can never fathom her depths, because she always extends further than he can reach, so that beyond the uttermost limit there stretches something beyond, and beyond this extends the threat of yet further vastness – Art frees himself by drawing appearance from the depths and by flattening it out on a plane surface. […] Every fresh outer stimulus alarms the inner perception, which is always armed and ready, never concedes entrance to nature, but out of the flux of experience he tears her bit by bit – banishing her from the depth to the surface – makes her unreal and human till her chaos has been conquered by his order.”

38 Tradução livre do inglês: “Art must be critical, or it is not art; subversion is its standard, and deviation from the norm is its ideal.”

Referências

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