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69 para esclarecer fenómenos metafísicos.117 Resumindo a definição do termo, conforme Freud o apresentou na sua publicação Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, pode traduzir-se a metapsicologia em “psicologia do inconsciente” (Freud, 1901, citado em Ibid., p. 74).

A psicanálise traduzia-se num método de estudo do inconsciente, uma forma de tratar condições neuróticas e envolvia conceitos de psicologia que se desenvolviam numa vertente científica. A metapsicologia formou a “superestrutura teórica” (Assoun, 2002, p. 11) dessas formulações. Ainda que inseparável da esfera da ciência, a metapsicologia buscou transpor a objetividade, uma vez que o universo do inconsciente é precisamente, conforme Assoun (Ibid.) o define, um “objeto” que vai para além dos conceitos psicológicos usuais.

Embora a metapsicologia não se baseie nos aspetos fenomenais imediatos, mas antes se dedique a reconstruir os “processos” (Ibid., p. 28), é indispensável a descrição fenomenológica para chegar à compreensão e explicação desses “processos”. Nos conceitos essenciais da metapsicologia e da psicanálise freudiana, as pulsões ocupam um lugar basilar. Freud usou o conceito de pulsão com a significação de uma força interna que leva a agir sem que haja uma reflexão consciente. Na obra As pulsões e a suas vicissitudes, de 1915, Freud caracterizou a pulsão como “um estímulo aplicado à mente” (Freud, 1915, citado em Melo, 2005, p. 87), representando psiquicamente os processos que têm origem nos órgãos ou em outras partes do corpo e cujo objetivo é satisfazer-se. Distinguiu, inicialmente, dois tipos: as pulsões do ego118, ou de autoconservação, e as pulsões sexuais; posteriormente, estabeleceu a dualidade entres as pulsões de vida e as pulsões de morte (Melo, 2005, p. 88). Por outros termos, respetivamente, Eros e Thanatos, que se tornaram os dois instintos básicos omnipresentes e unidos, na essência do “processo vital” (Marcuse, 1966, p. 45).

Considerando as teorias psicanalíticas, a esfera das representações é subordinada à primazia daquilo que Freud designou por “realidade psíquica sobre a realidade exterior” (Luzes, 2004, p. 25), tanto no que respeita à sua origem como à sua evolução posterior. A realidade psíquica corresponde a “tudo aquilo que no espaço mental traduz

117 Em Sobre a psicopatologia da vida quotidiana (1901), Freud refere uma psicologia do inconsciente no intuito de “explicar […] os mitos do paraíso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade, etc., e transformar a “metafísica” em ‘Metapsicologia’.” (Freud, 1901, citado em Melo, 2005, p. 74)

118 Segundo Freud, o ego era “uma projeção mental do corpo, um Körper-Ich” (Gallese, 2008, p. 776).

Freud definiu o ego na estrutura do psiquismo da seguinte forma: “em cada indivíduo há uma organização coerente de processos mentais; e a isso damos o nome de Ego” (Freud, 1923, citado em Melo, 2005, p. 132).

70 predomínio dos impulsos ou instintos, dos desejos, das necessidades corporais” (Ibid.).

As emoções, provenientes de experiências que envolvem frustração ou satisfação, ocupam um lugar determinante na construção da realidade psíquica. “Se há alguma coisa de valor na vida psíquica são antes de tudo as emoções. […] nós apenas podemos tomar consciência destas através da sua ligação com as representações.” (Freud, 1906, citado em Luzes, 2004, p. 185). Os efeitos produzidos pelas emoções ou pelos sentimentos dão origem a imagens que se inserem num mundo de fantasia, onde o imaginário se sobrepõe ao real e o futuro ao presente. (Luzes, 2004, p. 26)

No desenvolvimento da sua teoria da psicanálise, Freud evolui o método de cura para o que designou de “associação livre”, que viria a tornar-se a “regra fundamental da psicanálise” (Ibid., p. 79), substituindo o processo de catarse pela hipnose. O método de

“associação livre” consistia em deixar liberdade ao paciente para exprimir o que lhe viesse à mente, sem quaisquer restrições ou imposições de assunto, para de que se manifestassem partes do seu inconsciente.

Nas abordagens psicanalíticas freudianas, até às atuais, a palavra permanece o meio basilar de um indivíduo expressar a outro os assuntos da mente, tal como acontece ainda hoje. No entanto, desde Freud, a psicanálise dedicou muita investigação à esfera das experiências ou doenças pré-verbais ou não verbais. Um dos psicanalistas moderno que seguiu essa linha de pesquisa é Christopher Bollas (1989), que focou a sua atenção na parte da estrutura psíquica que reside na esfera muda, referindo-se ao “conhecido não pensado”119 (p. 278), ou seja, elementos psíquicos já sabidos, mas sobre os quais não foi ainda formulado pensamento. Para o autor, a fantasia, que representa o verdadeiro self, é o primeiro fenómeno a atribuir representações do “conhecido não pensado” na atividade da mente; apresenta-se como o primeiro ato mental na construção do mundo interno, o qual incorporará, por meio da fantasia, outros elementos que compõem a vida humana.

Ainda assim, a fantasia não é por si um elemento suficiente para processar o “conhecido não pensado”, que transformará o seu carácter em pensado através das relações com os objetos (Ibid., p. 279).120

119 Conforme Bollas (1989, p. 4): “the unthought known”.

120 Conforme Ibid. (p. 280): “In what ordinary way, then, does the unthought known become thought? In some respects in the same manner that it partly developed: establishment through object relations. It is only through the subject’s use and experience of the other that mental representations of that experience can carry and therefore represent the idiom of a person’s unthought known: […].”

71 O “conhecimento somático”121 é também um elemento que Bollas (1989, p. 282) refere no que respeita a o “conhecido não pensado”. Não só a nível psicanalítico como em todas as relações que experienciamos com outros indivíduos, a ideia que temos de alguém é registada por meio do corpo, e os efeitos dessas relações na esfera psíquica e corporal constituem um “conhecimento somático” que não é um conhecimento pensado.

Por exemplo, um bailarino pode expressar o “conhecido não pensado” por meio do conhecimento do corpo.

Nesta perspetiva, a psiquiatra e psicanalista Prudence Gourguechon (2009) expõe-nos a relação entre arte e medicina num artigo dedicado a Schiele, testemunhando como as imagens, neste caso, as obras de Schiele, se revelaram uma peça importante nas suas pesquisas sobre alguns distúrbios dos seus pacientes, nas suas interações com estes e no acesso ao inacessível, ao já referido “conhecido não pensado”, atuando como uma linguagem. A psiquiatra explica como os fenómenos mentais das associações e anormalidades no pensamento retêm a atenção dos psicanalistas, que recorrem às próprias associações para desvendar a vida psíquica que os pacientes não verbalizam. A autora serviu-se da série de obras inseridas no tema mãe e filho e estabeleceu uma analogia com os problemas, relacionados com as próprias mães, que os seus pacientes apresentavam, destacando no seu texto o progresso psicológico de Schiele, que podemos verificar na evolução das suas obras.

O tema da maternidade, em Schiele, encontra-se quase sempre ligado ao tema da morte.

O artista compôs, como já referimos num capítulo anterior, diversas obras que representavam o tema, retratando nelas uma mãe morta.

Em 1908, Schiele cria a obra Mãe e Filho (Madona), onde vemos a criança envolvida pela mãe, no rosto dissimulado da qual se destacam os olhos, brancos, projetando um olhar sinistro. A criança, com os seus tons claros, contrasta da tonalidade escura avermelhada do restante da obra; de olhos bem abertos, a boca semi-aberta, o seu rosto denota, ainda assim, pouca expressão. A figura da mãe não possui qualquer qualidade maternal e transmite uma expressão de morte.

Na obra Mãe Morta I, pintada em 1910, Schiele representa uma criança que parece estar aconchegada no ventre materno, focando-se no rosto – com expressão tranquila – e nas mãos, destacando-se pelas suas cores mais vivas. Encontra-se envolta num pano escuro que recobre também a mãe, deixando apenas ver-se o rosto e a mão que envolve a

121 Tradução livre do inglês: “somatic knowledge”.

72 criança. Ainda que possua um tom lúgubre, tanto a postura como a expressão no rosto de ambas a criança e a mãe – embora que esta reflita pouca emoção – transmitem alguma serenidade ao conteúdo da obra.

19. Mãe Morta I, 1910. Óleo e grafite sobre madeira, 32.4 x 25.8 cm.

Coleção particular.

Esta passividade é destruída na seguinte obra do tema, Mãe Morta II, de 1911, intitulada ainda de Nascimento do Génio. O rosto da criança realça-se da obra pelos seus tons claros e revela uma expressão de terror. O pequeno ser parece querer fugir do útero da mãe. Desta apenas vemos, novamente, o seu rosto, inexpressivo, morto, e a sua mão, com uma postura rígida. Todo o cenário confere à obra um tom tenso e ansioso.122 Na obra Mãe e Filho II, de 1912, a cor confere alguma vida à mãe morta, que agarra a criança próxima ao seu rosto, ainda que se mantenha o seu carácter sem emoção ou afeto maternal. A criança é de novo apresentada com uma expressão ansiosa e receosa, de olhos grandemente abertos e a boca – vermelha, como a da mãe – entreaberta, tal como nas acima referidas obras de 1908 e 1911.

Nos últimos anos de vida de Schiele, este possuía já uma consciência distinta e evoluída de si mesmo, e caminhou, consequentemente, para uma expressão plástica da qual se traduz, segundo Steiner (1993, p. 18), uma unificação do eu. A pintura Mãe e Dois

122 Esta obra pertenceu à coleção Max Roden e terá sido destruída durante um bombardeamento (Emberger & Lachnit, 2013, p. 15).

73 Filhos III, de 1917, aparece como sendo a última obra de Schiele dedicada ao tema da mãe morta. Os tons pálidos e neutros da figura da mãe, com o seu rosto descarnado, sugerem a sua morte. Mas todo o ambiente da obra é vivificado pelas cores e elementos decorativos que encontramos nas roupas das crianças, sobrepondo-se à plasticidade (Fischer, 1995, p. 130). As crianças apresentam um ar saudável e uma expressão serena, vestidas pelas roupas de padrões coloridos e envolvidas num cobertor laranja, substituindo o pano negro presente nas obras anteriores.

Um ano depois surge a última obra importante da sua vida artística, última também a tratar o tema da maternidade, na qual revela a sua evolução tanto a nível pessoal como artístico. Em A Família, de 1918, Schiele usou uma linguagem expressiva mais realista e branda. A figura do homem representa claramente Schiele. Os corpos, tanto o dele como o da mulher, e também o rosto da criança, salientam-se do fundo escuro, embora este já tenha tons menos pesados. Os contornos são menos angulares, tendendo a arredondar-se na passagem do corpo do homem para o corpo da mulher e o rosto da criança. Nesta obra, Schiele usa a cor para descrever os objetos, para lhes conferir volume, evidenciando-se nos corpos; a cor contém um carácter menos explosivo e mais

“físico e vitalizador” (Steiner, 1993, p. 74). Essa nova forma de expressão gráfica sugere a abordagem de novos conteúdos e transforma o “pathos extremo” (Ibid., p. 75) em melancolia e harmonia de sentimentos. A obra representaria um contexto real esperado – o nascimento de uma criança e a constituição de uma família – que Schiele não chegou a levar a termo, uma vez que ele e a mulher faleceram nesse mesmo ano.123

123 Fischer (1995, p. 132) refere que a criança terá sido adicionada por Schiele posteriormente, eventualmente na altura do conhecimento da gravidez da sua mulher, e que a obra não terá sido terminada.

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20. A Família, 1918. Óleo sobre tela, 150 x 160.8 cm.

Viena, Belvedere Museum.

No desenho Nu Masculino de Cócoras (Auto-Retrato), de 1918, a pose é idêntica à que utilizou para se retratar na obra A Família. Nota-se também uma expressão mais suave e uma representação mais próxima da realidade. O braço em ângulo reto é um elemento que se reencontra nas suas poses, ao longo da sua obra, e a posição de cócoras, deixando visível a zona genital, manifesta a desinibição sexual que contrastava com as representações de nus masculinos daquela época (Artinger, 1999, p. 60).

21. Nu Masculino de Cócoras (Auto-Retrato), 1918. Giz preto sobre papel, 30 x 47.9 cm.

Viena, Albertina.

75 Outro aspeto relevante nas conceções psicanalíticas é o conceito de self. O seu significado encontra-se associado ao da personalidade, no entanto, comporta inúmeras definições, de diversos autores. Melo (2005, p. 143) propõe-nos a definição de León e Rebeca Grinberg (1976): “a totalidade da pessoa e inclui o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, os vínculos com os objectos externos e internos e o sujeito como oposto ao mundo dos objectos”. Os aspetos essenciais são assim a totalidade do indivíduo e a relação do self consigo mesmo e com os objetos124 e mundo externos, representando o que se pode designar de não self.

A psicanalista Melanie Klein expôs um mecanismo psíquico de defesa do ego, que denominou de identificação projetiva, em que “o sujeito se liberta de partes não desejadas do seu self, que não são unicamente clivadas, mas projectadas sobre os objectos, ou mais exactamente sobre as representações dos mesmos” (Luzes, 2004, p.

38). Pode entender-se a identificação projetiva como um conjunto de ações que leva o indivíduo a uma evasão de si mesmo, escondendo-se noutros no intuito de escapar ao sentimento de abandono. Neste processo é envolvida a projeção sobre alguém e a identificação com esse alguém, e são partes do eu, como sentimentos, medos, etc., que se projetam. A identificação projetiva que Klein descreveu aproxima-se da teoria da projeção de Freud, ainda que se distingam por esta última considerar a envolvência de impulsos ou instintos, enquanto Klein refere partes do eu. Para esta autora, alguns aspetos que compõem a personalidade não se isolam nem se projetam, como argumentado por Freud. Mas o efeito que se produz frequentemente não é, como proposto na designação de Klein, uma identificação, mas antes uma desidentificação125 – o sujeito aliena-se de si mesmo de tal forma que a memória da sua identidade se dissipa (Ibid., p. 39).

Segundo a definição que James Grotstein apresenta em A Divisão e a Identificação Projetiva, de 1981, a identificação projetiva traduz-se no conjunto de operações mentais que permitem ao self vivenciar, inconscientemente, a ilusão de o seu todo ou parte dele se “translocar” (Melo, 2005, p. 166) para o interior de um objeto, com a finalidade defensiva ou exploratória. No caso da atitude defensiva, o self pode envolver-se na fantasia de abandonar partes de si mesmo que não são desejadas, trespassando-as para o objeto em que se projetaram; ou, ao inverso, de partes agradáveis salvaguardadas dentro

124 Conforme Melo (2005, p. 144), objeto refere-se, em termos de psicanálise, à “pessoa, coisa, experiência ou situação que é investida afectivamente”.

125 Conforme Luzes (2004, p. 39): “Nestas condições, a identificação projectiva poder-se-ia chamar de desidentificação projectiva.”

76 do objeto. No processo exploratório, uma parte ou o todo do self é projetado no objeto e esta característica é responsável pela empatia (Ibid., p. 167).

Dyer (2011) salienta que, de uma perspetiva psicanalítica, o trabalho de Schiele evidencia os conceitos de identidade, subjetividade e sexualidade nas questões com as quais o artista se preocupava. Nas séries de auto-retratos, as figuras representam atuações do seu eu, cada uma distinta das outras, com atos diferenciados ou novos elementos, remetendo para uma perceção da formação do ser como um “processo ativo de atualização contínua”126 (Ibid., p. 89). A exploração ativa do eu, apresentando-o como detentor de elementos incomunicáveis e cuja essência poderá ter efeitos em outros, pode associar-se também às noções de existencialismo.127

Às conceções sobre o self encontra-se ligado o narcisismo, definido por Stolorow &

Lachmann (1983), citados em Melo (2005, p. 151), da seguinte forma: “a actividade mental é narcísica no grau em que a sua função é a de manter a coesão estrutural, a estabilidade temporal e a tonalidade afectiva positiva da representação do self”. Essa coesão diz respeito aos sentimentos e sensações que remetem para uma unificação. A

“tonalidade afetiva positiva” (Ibid., p. 152) traduz-se em auto-estima.

No contexto da psicanálise, o narcisismo está relacionado com a libido, o corpo e a unificação do mesmo, num processo em que indivíduo se identifica com a imagem do próprio corpo. Freud distingue o narcisismo primário do narcisismo secundário e é no primeiro que o eu, ainda desunido, se envolve num processo de ligações, necessárias a uma perceção unificada de si próprio e à representação, ainda que de forma inconsciente, da própria vida psíquica, através de “investimento libidinal” (Golse, 2002, p. 126).

Se considerarmos o processo primário de pensamento128, este vincula-se às necessidades vitais e à satisfação e “é essencialmente narcísico (egocêntrico, na terminologia de Piaget) tratando desejos, fantasias e outros dados mentais” (Luzes, 2004, p. 80). A estrutura psíquica servir-se-á das imagens do objeto que deseja, ou de outros chegados a este, para se satisfazer, na impossibilidade de ter esse objeto.

Melo (2005, p. 154) explica-nos que o facto de as necessidades não serem satisfeitas e ainda da auto-estima ser ferida por outros está, frequentemente, na origem de fortes

126 Tradução livre do inglês: “an active process of continual actualization”.

127 Dyer (2011, p. 88) refere-se à psicanálise de Freud e ao existencialismo de Nietzsche.

128 A regra da associação livre, introduzida por Freud, permitiu descobrir um aspeto fundamental sobre o pensamento, respeitante à “descrição de dois processos de pensamento, um entrando em funcionamento antes do outro, e por isso classificados como primário e secundário” (Luzes, 2004, p. 79).

77 sentimentos de raiva, designando-se de raiva narcísica. Quando as necessidades são minimamente satisfeitas, o narcisismo torna-se saudável, possibilitando, segundo Kohut (1966), citado em Melo (Ibid.), o desenvolvimento de capacidades como a criatividade, a sabedoria e a empatia.

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