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L'érotisme, centre même de l'âme, est assailli de l'intérieur, cerné de l'extérieur, par le sentiment d'être une faute, de porter la culpabilité. 107

― Pierre-Jean Jouvre O erotismo é um aspeto fundamental nos desenhos de Schiele. Na altura, apesar da proibição, comercializava-se erotismo e pornografia. “Eu ainda acredito que os maiores pintores pintaram figuras… Eu pinto a luz que emana de todos os corpos. Obras de arte eróticas também são sagradas.”108 (Schiele, citado em Martin, 2014, p. 508). Schiele dedicou-se ao exibicionismo do corpo e do sexo, representando muitas vezes mulheres a masturbarem-se, ou ele próprio, salientando os órgãos genitais ou os mamilos.

O auto-retrato Eros, de 1911, reflete perfeitamente a desinibição sexual de Schiele. O tema é a sua própria sexualidade. A masturbação, principalmente masculina, era um tema tabu e um ato punível, na altura, considerado até uma prática que levaria a transtornos mentais e outros problemas. Para além de se expor sem pudor, Schiele libertou-se de uma iconografia tradicional, no que diz respeito ao que seria considerado pornografia, que quase se limitava a retratar a mulher masturbando-se, com os seus órgãos sexuais visíveis (Artinger, 1999, p. 54). Podemos verificar que o sexo da figura Eros é salientado, novamente, com uma cor avermelhada.

107 Jouvre, citado em Castelein (1998, p. 738).

108 Tradução livre do inglês: “I still believe that the greatest painters painted figures… I paint the light that emanates from all bodies. Erotic works of art are also sacred.”

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16. Eros, 1911. Guache, aguarela e giz preto, 55.9 x 45.7 cm.

Coleção particular.

Schiele explorou a sexualidade na sua obra não só no seu carácter de provocação e perversidade, mas principalmente na sua relação com a psique humana, analisando, assim, mais a personalidade do que o instinto sexual. As teorias que se desenvolviam sobre a sexualidade e o subconsciente, designadamente os estudos de Freud, influenciaram as mudanças sociais e criaram valores de consciência social contraditórios, especialmente em Viena. Izenberg (2006, p. 462) relata esse conflito como uma influência externa nos trabalhos de Schiele, identificando a crise de identidade masculina que era vivida na Europa, na viragem do século, derivada de evoluções político-sociais que afrontavam o sentido de valorização própria no homem, como os movimentos feministas e a consciência cultural do poder, em termos psicológicos, da sexualidade feminina.

Os seus auto-retratos, que a partir de 1910 evidenciam claramente uma estética do feio, refletem o seu interesse pela sexualidade humana e pelo seu próprio desejo sexual.

No seu diário de prisão, Schiele escreveu:

Terão os adultos esquecido o quão corrompidos, isto é, incitados e despertados pelo impulso sexual, eles próprios foram em criança? Terão esquecido como a

64 temível paixão os queimou e torturou enquanto ainda eram crianças? Eu não me esqueci, pois sofri terrivelmente por isso. E acredito que o homem deva sofrer tortura sexual enquanto for capaz de sentimentos sexuais.109 (Schiele, 1912, citado em Calcagnini, 2015, p. 11)

Os corpos de Schiele revelam de certa forma esta tortura a que se refere, expondo as figuras a explorarem sexualmente o próprio corpo, um corpo geralmente frágil e completamente exposto, como podemos observar, por exemplo, na obra Contemplada num Sonho, de 1911. Ao retratar a sexualidade, Schiele manifestava a insatisfação e a busca em transgredir normas, exibindo “os corpos de ansiedade. […] corpos de solidão e pânico”110 (Miglietti, 2003, p. 142). Numa carta de 1912, Schiele exprimiu ainda: “os corpos queimam, consomem a sua própria luz, vivendo.”111 (Schiele, 1912, citado em Ibid.). O carácter provocador da sua obra erótica alia-se à consciência da angústia sexual, na qual a componente idílica deixa de existir, tal como o reproduz nas suas figuras.

109 Tradução livre do inglês: “Have adults forgotten how corrupted, that is incited and aroused by the sex impulse, they themselves were as children? Have they forgotten how the frightful passion burned and tortured them while they were still children? I have not forgotten, for I suffered terribly under it. And I believe that man must suffer from sexual torture as long as he is capable of sexual feelings.”

110 Tradução livre do inglês: “the bodies of anxiety. […] bodies of solitude and panic”.

111 Tradução livre do inglês: “The bodies burn, they consume their own light by living”.

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17. Contemplada num Sonho, 1911. Aguarela e grafite, 47.9 x 32.1 cm.

Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art.

Em 1908, Freud questionava aspetos relacionados com a causa da doença mental e associava a inibição da pulsão sexual ao aparecimento de perturbações neuróticas.

Diversos autores dedicavam-se ao assunto e apontavam na origem das patologias psíquicas as imposições da sociedade moderna, na qual o indivíduo se vê a realizar um maior número de tarefas e a ter de se aperfeiçoar. Freud relacionava a doença psíquica com as restrições às quais a vida sexual da pessoa, na sociedade moderna, se sujeita.

Surge aqui uma oposição entre sexualidade e civilização e Freud estabeleceu, a partir daqui, um aspeto da relação entre o sujeito e a civilização, na qual a sexualidade se vê subordinada à moral vigente na época e local. Para Freud, tinha de haver uma parte de sexualidade satisfeita diretamente e a repressão da vida sexual proporcionava o desenvolvimento de doenças psíquicas (Pinheiro, Lima, & Oliveira, 2006, p. 39). A libido sexual deixa de estar, nas conceções de Freud, na origem predominante do

“desprazer” (Ibid., p. 40), quando este formula uma nova dualidade pulsional, onde introduz a pulsão de morte.

A conceção surgiu no seguimento de uma nova teoria que expunha o conceito de superego, no texto O ego e o id, de 1923, onde Freud reconhecia que o indivíduo era

66 perturbado por um conflito interno, atribuindo a componente moral ao superego (Ibid.).112

A morte e a inquietação sexual são temáticas que se inter-relacionam continuamente na obra de Schiele e os seus trabalhos iniciais revelam a tensão entre os instintos de vida e de morte – entre Eros e Thanatos (Werkner, 1989, p. 4).

Apesar da maior parte da sua figuração erótica representar mulheres, concebeu mais retratos extremamente expressivos de homens do que de mulheres, certamente pela expectativa que se tinha, naquela altura, de um retrato feminino – que exaltasse a beleza e elegância da mulher. A clara separação entre a esfera do homem, que teria capacidade intelectual para aceitar ensaios de expressividade, e a esfera da mulher, que devia transmitir uma imagem sensual, revela a tensão entre géneros (Ibid., p. 5). A abordagem do nu por Schiele compõe-se por um erotismo carregado de melancolia e drama, envolto num tratamento expressivo frequentemente sinistro, refletindo a agitação por detrás das questões relativas à sexualidade. Por exemplo, a obra Cardeal e Freira, de 1912, inspirado no quadro O Beijo (1907-08), de Klimt, mas que se opõe em termos figurativos e temáticos. Tanto pela composição como pelas expressões das figuras e pelo estatuto que representam, Schiele realça a problemática do “amor sexual”113 (Ibid., p. 6).

Uma expressão mais serena do erotismo só será manifestada em obras dos seus últimos anos de vida, como Nu Deitado de Bruços, de 1917, onde a figura se apresenta contornada por linhas mais leves, que lhe conferem tridimensionalidade; a textura e cor do corpo foram também suavizadas e conferem um aspeto mais próximo da realidade. A pose e a expressão meditativa da mulher quebram com o timbre sexualmente provocativo que Schiele expunha em obras anteriores (Fischer, 1995, p. 116).

112 Conforme descreve Marcuse (1966, p. 47), o id representa a esfera do inconsciente e dos instintos primários, na qual as normas que formam o ser consciente e social são inexistentes, desconsiderando valores e princípios morais. A sua função é satisfazer as necessidades provenientes dos instintos, obedecendo ao prazer. A partir do id, forma-se o ego, sugestionado pelo meio externo. Define-se como

“mediador” (Ibid.) entre o id e o mundo envolvente e tem também o papel de preservar este último;

compõe-se pelos aspetos percetivos e conscientes, através dos quais observa e desafia a realidade, traduzindo-a para o id. Enquanto se constrói o ego, manifesta-se o superego, que se origina nas influências dos pais sobre a criança e é posteriormente estimulado por valores morais e sociais. O superego constitui assim a consciência moral e é nele que se forma o sentimento de culpabilidade (Ibid., pp. 48–49).

113 Tradução livre do inglês: “sexual love”.

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18. Nu Deitado de Bruços, 1917. Guache e giz preto sobre papel, 29.8 x 46 cm.

Viena, Albertina.

Um dos quadros mais expressivos dessa forma mais delicada de representação é Abraço (Amantes II)114, datado de 1917. Esta obra aparece-nos, uma vez mais, como uma

“paráfrase”115 do já referido Beijo de Klimt, mas contrastando com a aura negativa que caracterizava a primeira abordagem (Cardeal e Freira). Sem perder o seu carácter dramático, realçado pela agitação nas roupas sobre as quais se encontram as figuras ou pelas poses das mesmas, a provocação sexual dá lugar à experiência da fisicalidade e espiritualidade que deriva de um abraço (Ibid.).

114 Ou, conforme a tradução de Paula Reis: Enlace (Par Enlaçado II) (Steiner, 1993, p. 65).

115 O termo é empregue por Fischer (1995, p. 116).

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