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O corpo como meio de expressão

[…] o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu.

O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é.74

― Eliane Brum É comum dizer-se que as figuras de Schiele ganham vida através da sua linguagem corporal, tanto facial como gestual. No entanto, Schröder (1995, p. 69) considera desapropriada a aplicação da expressão linguagm corporal ao definir a gestualidade expressiva nos trabalhos de Schiele. A linguagem pressupõe que haja compreensão; o significado de algo é o mesmo para quem o expressa como para quem ouve, da mesma forma que acontece quando comunicamos não verbalmente, através da linguagem do corpo. É quando os preceitos dessa comunicação são transgredidos que a compreensão pode ser afetada e dificilmente se consegue atribuir significados específicos ao repertório de gestos que Schiele nos apresenta, pela arbitrariedade e inconsistência com a qual os utiliza, nomeadamente na desconexão entre expressão facial e gesto corporal.

A sintonia entre a personalidade individual e os elementos emocionais dos gestos e expressões é quebrada nas figuras de Schiele, ainda que estas estejam formalmente unidas pelo contorno (Ibid.).

As expressões faciais que Schiele nos apresenta, como a que podemos observar no seu Homem Fazendo Caretas (Auto-Retrato) (1910), são, segundo Schröder (1995, p. 64), um produto que deriva mais da cultura do que do sentimento direto. A morbidez que envolve tanto os seus auto-retratos como os retratos marca um momento de mudança na evolução da relação criada entre imagem e observador. Schiele dissimula-se por detrás de uma aparência corporal ou facial irreal e serve-se da expressão facial como uma máscara, ocultando o carácter e personalidade inerentemente ligados à fisionomia. Em Schiele, a fisionomia é flagelada pela expressão facial e este aspeto, se considerarmos a teoria sobre a fisionomia de Johann Caspar Lavater, corresponderia à esfera psíquica:

“cada movimento frequentemente repetido, cada posição frequente ou alteração da face,

74 Em Exaustos-e-correndo-e-dopados, 2016. Consultado em Brum (2016).

49 deixa, no final, uma impressão duradoura nas porções suaves de um rosto.”75 (Lavater, 1775, citado em Schröder, 1995, p. 64).

13. Homem Fazendo Caretas (Auto-Retrato), 1910.

Guache, aguarela e carvão, 44 x 27.8 cm. Coleção particular.

Os movimentos da psique revelam-se na fisionomia como alterações de estados de espírito, enquanto os sinais momentâneos inserem-se no domínio do estudo das paixões e das emoções (Schröder, 1995, p. 64). Assim, as caretas interrompem o entendimento da essência do indivíduo pela fisionomia. As expressões faciais de Schiele não comportam interpretação no que diz respeito à personalidade. Nos seus auto-retratos duplos, a expressão facial desprende-se do rosto, como se fosse uma máscara.

Schiele desprezou as poses dos ideais tradicionais de beleza com os seus gestos expressivos, as contorções do corpo e a carga erótica e liberdade sexual das suas poses.

Representando as suas figuras isoladas e sem contexto narrativo, o observador é compelido a concentrar a sua atenção na essência e humanidade dos sujeitos (Martin, 2014, p. 508).

Schiele dramatizou a ideia da figura humana como representação da psique. O seu interesse centrava-se na complexidade das interligações ocorridas entre a experiência

75 Tradução livre do inglês: “Every often-repeated movement, every frequent position or alteration of the face, ultimately makes a lasting impression on the soft portions of a countenance.”

50 interior e as suas manifestações exteriores, e foi a figura humana que usou como meio expressivo, explorando, através da experiência de si ou de outros seres, a diversidade de expressão formal. Werkner (1989) utiliza a expressão “paisagem psíquica”76 (p. 1) como descrição da expressividade que Schiele confere aos seus corpos e da emoção e essência que comportam. O corpo serve de “meio de criação formal”77 que se desenvolve na base das possibilidades do inconsciente, revelando “um estilo de auto-interpretação altamente emocional”78 (Ibid., p. 2).

Um dos aspetos que estabelecem uma clara distinção entre os corpos de Schiele e os ideais estéticos secessionistas é a perca do centro – “o centro que define todos os membros”79 (Schröder, 1995, p. 78). Não existe um centro psico-físico donde resultaria a mobilidade dos membros do corpo e cada parte aparece sem conexão com as outras, ainda que iconograficamente unidas. Este fraturamento das figuras manifesta o conflito entre o todo e as suas partes e remete-nos para o confronto entre indivíduo e sociedade que Georg Simmel argumenta em Filosofia do Dinheiro (1900). Simmel sublinha o isolamento que caracteriza o indivíduo e a sua presença no mundo e descreve a ideia, ainda apoiada no conceito de personalidade do século XIX, da inteireza do indivíduo, da sua homogeneidade, em posse de um centro próprio de onde tudo provém e onde tudo se relaciona:

O indivíduo almeja ser um todo auto-suficiente, uma formação com um centro próprio, onde todos os elementos da sua essência e da sua atividade derivam num significado unificado e interligado. Mas se o todo supra-individual é um todo completo, não pode permitir que qualquer uma das suas partes sejam um todo completo no seu próprio direito... A totalidade do todo está constantemente em guerra com a totalidade do individual.80 (Simmel, 1900, citado em Schröder, 1995, p. 78)

A solidão, inerente ao mundo incompreendido do artista, revela-se na fuga à sociedade e a experiência do isolamento total ao qual o artista está sujeito é, conforme conclui

76 Tradução livre do inglês: “psychic landscape”.

77 Tradução livre do inglês: “a means of formal creation”.

78 Tradução livre do inglês: “a highly emotive style of self-interpretation”.

79 Tradução livre do inglês: “the center that defines all the limbs”.

80 Tradução livre do inglês: “The individual craves to be a self-contained whole, a formation with a center of its own, whence all the elements of its essence and of its activity derive a unified, interrelated meaning.

But if the supraindividual whole is to be a rounded whole, it cannot permit any of its parts to be a rounded whole in its own right… The totality of the whole is constantly at war with the totality of the individual.”

51 Schröder (1995, p. 80) sobre as declarações de Simmel, resultado da sua perda de comunicação clara com o mundo.

Na disposição estrutural dos elementos nas obras de Schiele, cada forma resulta implicitamente de outra, cada elemento é completado por outro. Tendo em mente a busca do artista para “unir o inconciliável”81 (Ibid., p. 81), Schiele confronta a disparidade dos elementos à sua reunião; os elementos relacionam-se no plano formal, mas a comunicação entre eles é contrariada no conteúdo (Ibid., p. 80). A unidade existe apenas em termos de composição.

No contexto da análise e interpretação da personalidade, o desenho da figura humana ocupa um lugar relevante. A psicóloga Karen Machover desenvolveu um método de avaliação da personalidade através do desenho da figura humana, definido como uma técnica projetiva. Os desenhos permitiam assim ao psicólogo ter acesso a elementos que compunham a personalidade do sujeito, tanto no que respeita ao desenvolvimento regular da personalidade, como nas personalidades com perturbações (Machover, 1978, p. 393).

Juntamente com outros métodos de análise da personalidade, os desenhos de figura humana permitiam chegar a conceções com fundamento sólido sobre a personalidade, fornecendo uma linha de orientação durante o diagnóstico. Segundo Machover (1978, p.

394), o desenho da figura humana manifesta “um testemunho direto da projeção do sujeito”82, apresentando assim uma grande vantagem em relação à descrição verbal.

Diversas literaturas focam o seu interesse no “valor projetivo” (Ibid., p. 395) da pintura e do desenho, quer no domínio da psicologia como no da arte, tendo-se já evidenciado que uma peça de arte comporta algum traço da personalidade do artista, assim como o facto do desenho da figura humana manifesta diversos aspetos da personalidade e da situação clínica individual.

O método do desenho pressupõe que a personalidade se desenvolve no pensamento, sentimento e no movimento de um corpo particular, isto porque “o corpo, com as suas tensões viscerais e esforços musculares, constitui o campo de batalha no qual se enfrentam fações de necessidades e pressões”83 (Ibid., p. 400). De um modo geral, o

81 Tradução livre do inglês: “unite the irreconcilable”.

82 Tradução livre do espanhol: “un testimonio directo de la proyección del sujeto”.

83 Tradução livre do espanhol: “el cuerpo, con sus tensiones viscerales y esfuerzos musculares, constituye el campo de batalla en que se enfrentan facciones de necesidades y presiones”. Machover (1978, p. 400) expressou esta ideia segundo a terminologia de Henry Murray.

52 desenho da figura humana corresponde à expressão de si, ou do próprio corpo, no espaço envolvente. Essa expressão pode traduzir-se por imagem corporal, que pode ser descrita, segundo Machover (Ibid.) como uma “reflexão complexa de auto-consideração”84, ou seja, a própria imagem de si, que comporta, conforme expressou Lawrence Kubie, citado em Machover (Ibid.), “o corpo, as suas partes, os seus produtos e as suas necessidades”85. Segundo a medicina psicossomática, cada órgão corporal tem uma significação emocional particular. A imagem corporal – o próprio eu – forma-se por norma num processo lento; é transformável e sujeita à intervenção de traumas, doenças, perturbações emocionais, entre outros fatores. Podemos dizer que a imagem corporal é a figuração do corpo humano que se forma na mente – o modo como este se expõe ao ser humano e como é experienciado a nível psíquico, fazendo parte de um processo psicológico que estrutura internamente as sensações sobre o próprio corpo (Saur, Pasian, & Loureiro, 2010, p. 498).

No “fenómeno da despersonalização” (Machover, 1978, p. 401), a imagem corporal pode ser confundida com o ambiente, e o eu pode perder os seus limites referenciais. As acentuações corporais relacionam-se com delimitações do ego e as emoções intensas podem restringir a imagem corporal a um modelo de postura particular. Quando um indivíduo desenha uma figura humana, irá reportar-se às imagens dele próprio e às de outros que estejam na sua mente. Machover (Ibid.) argumentou que a estrutura do eu é sobretudo seletiva, ou seja, “é produto das experiências, identificações, projeções e introjeções”86. A imagem representada pelo desenho está intrinsecamente vinculada ao eu e às suas subdivisões. No processo de desenho da figura humana intervêm diversos elementos conscientes, inconscientes e subconscientes do nosso conhecimento, que nos guiam para conseguirmos reproduzir o corpo de forma unitária. Estes aspetos abrangem fatores de carácter social e cultural que nos ajudam a construir a nossa conceção do indivíduo, associando determinadas traços físicos a aspetos psíquicos, por exemplo, identificando um perfil físico a um temperamento. Às imagens sociais juntam-se as imagens da nossa experiência pessoal, singulares a cada indivíduo, interligando-se e originando a projeção do eu (Ibid., pp. 401–402).

As avaliações introspetivas evidenciam que o desenho de uma figura humana forma uma experiência criadora que envolve-se nos princípios do movimento expressivo. A

84 Tradução livre do espanhol: “reflexión compleja de autoconsideración”.

85 Tradução livre do espanhol: “el cuerpo, sus partes, sus productos e sus necesidades”.

86 Tradução livre do espanhol: “es producto de las experiencias, identificaciones, proyecciones e introyecciones”.

53 dimensão motora e expressiva do desenho é inseparável do conteúdo do mesmo. A componente expressiva, ou, nas palavras de Machover (1978, p. 402), “a distribuição de energia gráfica”87, identifica-se nas supressões ou nas interrupções de linhas, na perspetiva, na tensão, nas manchas, nas sombras, e pode ser interpretado tendo em conta o significado que cada parte corporal detém. Dessa forma, o desenho possibilita a identificação do conflito. Os conflitos podem ser manifestados, graficamente, de diversas formas – desenhando apenas algumas partes do corpo, uma figura do sexo oposto, desproporções físicas, etc. O vigor da linha e da mancha revelaria mais direta e conscientemente o conflito; poderia traduzir por exemplo um estado de ansiedade. De uma forma geral, a imagem corporal que o indivíduo projeta no desenho manifesta um desejo íntimo, uma carência, uma compensação de carência ou até a junção de todas estas condições (Ibid., p. 403).

Embora se admita as potencialidades do instrumento do desenho da figura humana e este forme um método bastante utilizado no contexto da psicologia, ainda nos dias de hoje, para fornecer dados sobre a imagem que o sujeito construiu do próprio corpo, vários autores questionaram a sua eficácia, apontando para as suas limitações, nomeadamente no que respeita à sua metodologia, destacando a falta precisão, de regras e de dados empíricos que estabeleçam a sua validade. Clifford H. Swensen (1968), citado em Saur et al. (2010, p. 498) argumentou que não era possível comprovar que o sujeito se estaria a representar a si mesmo e definir com acerto o que estaria refletido no desenho. Estas deficiências sugeriam a necessidade de pesquisas adicionais para assegurar a valência da técnica.

De acordo com Biocca (1997, p. 13), o corpo é o meio de comunicação fundamental, atuando como um “portal carnal” para a vida mental.88 Nesse portal estão incluídos os sentidos. A nossa perceção do mundo é corpórea, e formado sobre padrões de energia que o corpo percebe. O corpo é afetado por todos os campos energéticos e nele se origina a comunicação.

Merleau-Ponty (1962) definiu o corpo como agente central no mundo, através do qual descobrimos os aspetos dos objetos ao nosso redor, por nos movimentarmos por entre os mesmos. Conforme refere o autor em Fenomenologia da Percepção, uma obra

87 Tradução livre do espanhol: “la distribución de energía gráfica”.

88 Conforme Biocca (1997, p. 13): “Before paper, wires, and silicon, the primordial communication medium is the body. At the center of all communication rests the body, the fleshy gateway to the mind.”

54 primeiramente publicada em 1945, o corpo é o meio essencial de estarmos no mundo; é percetível através do mundo e tomamos consciência deste pelo corpo, um corpo que se envolve no seu meio, habitando a esfera física que o estimula e identificando-se com aspetos aos quais se vincula continuamente (Merleau-Ponty, 1962, pp. 82–83).

Biocca (1997, p. 13) compara o nosso corpo a um “simulador mental interno”89, agregado à mente e atuando como um instrumento representativo para a mesma.

Diversas opiniões convergem para a ideia do corpo delinear as nossas representações mentais, que são incorporadas.90

Em O Erro de Descartes (1994), António Damásio descreve a forma como usamos o corpo para realizar essa incorporação dos pensamentos, rejeitando o conceito cartesiano que defende a separação do corpo e da mente, da razão e da emoção:

[…] o corpo, tal como é representado no cérebro, pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O nosso próprio organismo, e não uma realidade externa absoluta, é utilizado como referência de base para as interpretações que fazemos do mundo que nos rodeia e para a construção do permanente sentido de subjectividade que enquadra as nossas multividências. De acordo com esta perspectiva, os nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores acções, as nossas maiores alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição. (Damásio, 1994, p. 18)

Benthall & Polhemus (1975), citados em Biocca (1997, p. 13), entendem o corpo como um recurso comunicativo expressivo pelo qual traduzimos estados e emoções a outras pessoas. O autor cita ainda o psicólogo Paul Ekman (1974), que explicou que o corpo manifesta, intencional ou involuntariamente, elementos informativos “aos sentidos de outros corpos”91 (Ibid.). Essa interpretação leva-nos ao fenómeno da simulação empática pelo observador das emoções, intenções e carácter do corpo observado, seja ele físico ou mediado, de acordo com Dolf Zillmann (1991), citado em Biocca (Ibid.).

89 Tradução livre do inglês: “internal mental simulator”.

90 Conforme Biocca (1997, p. 13): “Some would say that thought is embodied or modeled by the body.”

91 Tradução livre do inglês: “to the senses of other bodies”.

55 O conceito de presença é realçado também por Biocca (1997), traduzindo-se na

“sensação percetual persuasiva”92 (p. 18) de estar presente num lugar distinto do qual se encontra o nosso corpo físico. Originado com a finalidade de design telecomunicativo, a conceção de presença ampliou-se a indagações e teorias filosóficas. Diversos domínios abordaram a problemática, como, por exemplo, a interação entre o ser humano e um computador, originando uma evolução do termo, nesse contexto, para telepresença.93 Se considerarmos a questão da corporeidade em ambientes virtuais, a perceção de presença origina-se unicamente, segundo Biocca (1997), citado em Sousa (2015, p. 198), pelo facto da imagem interna que concebemos acerca do nosso próprio corpo – o corpo fenomenal – poder não se assemelhar a nosso corpo físico. Assim, na esfera virtual, um avatar e as interações e estímulos que envolve podem proporcionar uma “presença corpórea” (Sousa, 2015, p. 201).

Um dos grandes temas das obras de Schiele foi o corpo nu, em que representava inicialmente crianças ou adolescentes na puberdade. O artista recorria a crianças que encontrava nos subúrbios mais pobres e nas zonas operárias. Em Krumau como em Neulengbach, Schiele recebia constantemente, nos seus estúdios, jovens, principalmente raparigas, cujas representações se estendiam ao semi-nu e ao nu. Schiele transpôs a complexa condição do despontar da puberdade e da sexualidade, apresentando desenhos eróticos dos seus jovens modelos – por vezes, a masturbarem-se – numa expressão que denota claramente o empenho do artista em ultrapassar o carácter pornográfico que uma imagem desse género pode suscitar (Artinger, 1999, p. 46). Na obra Nu com Cabelos Negros (de pé), de 1910, Schiele realçou a vermelho as zonas erógenas da figura, nomeadamente o sexo, os mamilos e a boca, uma marca que se reencontra em várias obras do artista.

92 Tradução livre do inglês: “compelling perceptual sensation”.

9393 Conforme Biocca (1997, p. 18): “[…] ‘telepresence’, the illusion of being present in a distant location.”

56

14. Nu com Cabelos Negros (de pé), 1910.

Aguarela e grafite, realçado a branco, 56 x 32.5 cm.

Viena, Albertina.

Schiele também desenhou recém-nascidos, uma abordagem que lhe foi possível desenvolver por ter acesso à clínica universitária de ginecologia, em 1910, através do seu amigo ginecologista Erwin von Graff. Schiele não retratava da forma delicada e carinhosa que se esperaria do retrato de um bebé, mas sim com uma expressão rude da realidade, observando-o com um olhar crítico e revelando a condição intrínseca do ser humano, ao invés de sublimá-lo (Fischer, 1995, p. 130). Recém-Nascido, de 1910, é uma das obras em que se manifesta essa preocupação. O corpo do bebé, magro, enrugado e flácido, é representado de forma desproporcional, os membros perdidos em movimentos desarticulados, a feição desfigurada e com uma expressão de aparente tormento. A figura está delineada por contornos rígidos, atenuando-se em certas partes, e manchada por cores fortes de tons avermelhados e roxos. Segundo Fischer (1995, p.

133), Schiele reconheceria os recém-nascidos como seres antigos com pesar no olhar, como que receosos de iniciar a sua vida e enfrentar as adversidades do mundo.

57

15. Recém-Nascido, 1910. Aguarela e carvão, 46 x 32 cm.

Coleção privada.

A abordagem artística de Schiele trazia a novidade da tendência para deformar o corpo.

Com o seu traço expressivo e estilo próprio de formas e contornos distorcidos, representou, nas suas últimas obras, poses forçadas e radicais, nas quais o olhar era dirigido para o sexo (Artinger, 1999, p. 61). Tinha especial interesse por figuras magras, rígidas, conferindo-lhe um carácter sofredor e atormentado, e eram desprovidas de ornamentos, concentrando-se no corpo sobre um ambiente vazio.

Segundo Artinger (1999, p. 60), “Schiele teria tido um desenvolvimento precoce, debatendo-se na puberdade com um desassossego e uma tensão interiores, que o acompanharam pela vida fora […]. Os seus nus refletem esta inquietação.”

A sua notável técnica de desenho consistia sobretudo na manipulação da perspetiva, da linha e da composição. Schiele escolhia posturas reclinadas e criava escorços extremos, conferindo às figuras um aspeto distorcido, mesmo que proporcionalmente desenhadas, no fundo vazio que realçava o corpo do sujeito. O seu estilo gráfico distingue-se ainda pelo seu uso de linhas rígidas e quebradas e pela forma como colocava os corpos no quadro, deslocados do centro e muito poucas vezes representados em posição frontal (Steiner, 1993, p. 35).

58 As poses invulgares revelam o modo de olhar de Schiele, que se poderá desprender da ideia de voyeurismo. Se compararmos as posições eróticas de Klimt com as de Schiele, percebemos uma relação diferente entre o observador e a obra. Klimt apresenta-nos o ambiente íntimo onde o modelo age como estando sozinho, sem ser observado, representando-o em poses esticadas e entregues às fantasias e prazeres eróticos. O observador ocupa assim um lugar que não lhe é destinado, trespassando a intimidade do sujeito e tornando-se num observador invisível que poderá deleitar-se sem ser identificado. Este aspeto é justamente o que identifica o voyeurismo. Contrariamente, os nus de Schiele induzem a sensação de que as poses foram criadas conscientemente e sujeitas ao seu olhar. Neste contexto, o olho não assume assim o papel de meio para chegar ao prazer,94 mas sim, o de um observador responsável pelas poses forçadas que expõem o modelo, permitindo uma análise atenta do corpo. Isto é enfatizado ainda pelo frequente direcionamento do olhar do modelo para o observador. Estes fatores objetam assim o reconhecimento em Schiele do voyeurismo que as obras de Klimt suscitam (Ibid., p. 36).

O obsceno constitui efetivamente uma base importante na obra de Schiele. Contudo, se considerarmos a definição de Georges Bataille, a obscenidade assume-se para além do sentido da proibição e da transgressão, perturbando as normas: “a obscenidade é uma manifestação do distúrbio que abala o estado do corpo em conformação com o autodomínio, o domínio de individualidade estabelecida e contínua.”95 (Bataille, citado em Miglietti, 2003, p. 140).

Pelo seu lado, o filósofo e pedagogo Karl Rosenkranz concebia a obscenidade ainda inserida nos moldes da estética do idealismo, relacionando a beleza à decência e a fealdade à indecência; conforme expressou, “o obsceno consiste na violação intencional da decência.”96 (Rosenkranz, 1853, citado em Schröder, 1995, p. 96).

O tema do obsceno só se torna objeto para a arte, de pleno direito, a partir do século XX e a sinceridade sexual com que Schiele nos depara transgredia as convenções que definiam a decência.

O pudor tem as suas origens nas crenças cristãs sobre a origem do mundo, que argumentam que a cultura criada pelo ser humano foi somente consequência da vergonha, ou seja, não existiria a noção de pudor ou de despudor se Adão e Eva não

94 Conforme o poeta Peter Altenberg, citado em Steiner (1993, p. 36): “órgão ideal do prazer”.

95 Tradução livre do inglês: “Obscenity is a manifestation of the disturbance that shakes the state of the body in conformation with self-possession, the possession of enduring and established individuality.”

96 Tradução livre do inglês: “The obscene consists in the intentional violation of decency.”

59 tivessem caído na tentação e não se tivessem tornado conscientes da sua nudez. O pudor, de facto, apenas existe no ser humano se este for dotado de conhecimento. Desde então, a ocultação da nudez tornou-se uma defesa simbólica contra a “ameaça da sexualidade”97 (Schröder, 1995, p. 95).

Encontramos aqui uma questão que envolve o confronto da natureza e da cultura, onde a natureza se revela pelo ímpeto sexual e comportamental e a cultura pela “moralidade civilizada”98 (Ibid.). Interiorizou-se a clara separação entre o instinto e a cultura, resultando na perceção de corpo e da psique como opostos impossíveis de reconciliar.

Uma forte “materialidade e presença corporal”99 (Levitt, 2014a, p. 5) marcam os nus de Schiele, ainda que alguns desenhos tenham sido concebidos com poucas linhas e aguadas de cor.

Diversos artistas desafiaram o conceito da aparência corporal ligada à identidade, usando a roupa como símbolo identitário, através da experiência de um “sentido de alteridade”100 (Ibid.), como por exemplo o artista Danny Treacey. Por outra parte, outras investigações centraram-se na representação corporal submetida às convenções sociais ou provocando as mesmas - são os “corpos públicos”101 (Ibid.) moldados pela sociedade ou negando a mesma. Não é apenas pelas roupas que caracterizamos o corpo, somos também influenciados pelas normas de representação da figura humana em diversas formas de nudez.

O nu e o despido são categorias distintas que se debateram na história da arte. Em The Nude: A Study in Ideal Form, com a sua primeira publicação em 1956, Kenneth Clark diz-nos que o despido se refere a não ter roupa e sugere o constrangimento que possa daí derivar. O termo nu, utilizado em educação artística, não comporta esse sentimento.

O autor considerava que a imagem que projeta na mente é a de um corpo equilibrado, confiante, e não de um corpo indefeso – “o corpo reformado”102 (Clark, 1972, p. 3). Na categoria do nu inserem-se, geralmente, as personificações, consideradas formalmente ideais, de deusas e heróis, figuras que não estão cientes de serem observadas, denotando inocência e imunidade às limitações da vida humana. Opostamente, o despido implica o

97 Tradução livre do inglês: “threat of sexuality”.

98 Tradução livre do inglês: “civilized morality”.

99 Tradução livre do inglês: “materiality and bodily presence”.

100 Tradução livre do inglês: “a sense of otherness”.

101 Tradução livre do inglês: “public bodies”.

102 Conforme Clark (1972, p. 3): “To be naked is to be deprived of our clothes, and the word implies some of the embarrassment most of us feel in that condition. The word "nude", on the other hand, carries, in educated usage, no uncomfortable overtone. The vague image it projects into the mind is not of a huddled and defenceless body, but of a balanced, prosperous, and confident body: the body reformed.”

60 confronto e a vulnerabilidade, um corpo predisposto ao constrangimento (Levitt, 2014a, p. 5).

Clark (1972, p. 5) defendia ainda que o nu não é tema, mas sim, forma de arte.103 É comum o corpo nu ser presumido um objeto que se observa aprazivelmente e que agrada ver reproduzido, uma realidade que, para a intelectualidade e conhecimento artísticos, não se perspetiva dessa forma. O corpo não se traduz na arte de forma direta, como, segundo Clark (1972, p. 6), ao contemplar o meio animal ou natural, pelos quais se pode sentir uma agradável identificação e união – empatia – da qual derivará a obra.

Este processo encontra-se, na opinião do autor, em oposição à atitude que gerou o nu;

nas suas palavras: “Uma massa de figuras despidas não nos leva à empatia, mas à desilusão e ao desalento. Não desejamos imitar; desejamos aperfeiçoar.”104 (Ibid.). Dá-nos o exemplo da fotografia, onde um corpo enrugado, cansado, imperfeito, não contenta os olhares ainda presos à harmonia da figura humana representada nos moldes tradicionais, reconhecendo-a como uma imagem plástica e não como um ser vivo.

Perturba ainda percecionar um corpo sem unidade e relação entre as partes, não reconhecendo o corpo que a arte clássica mistificava (Ibid., p. 7).

Os corpos nus de Schiele, envolvidos numa componente “dolorosamente real”105 (Levitt, 2014a, p. 5), afrontavam a moralidade aceite naquela altura, no que respeitava à representação corporal nua, e desafiava, pelas suas qualidades de expressão, a barreira entre o físico e o psíquico.

A preocupação de Schiele com a forma pictórica realça-se na forma como recortava e tornava angulosos os seus corpos, magros e deformados, uma expressão que traduz a oscilação entre a imagem corporal exterior e a essência interior, o eu. A posição de emergência, que releva dos nus de Schiele, reflete visualmente, segundo Shearman (2014, p. 6), conceitos que a psicanálise levou décadas a exprimir por palavras. No mesmo sentido, Smith (2000), citado em Dyer (2011, p. 88), defende que as obras de Schiele transmitem expressivamente conteúdos que não se traduziriam de outra forma.

103 Conforme Clark (1972, pp. 4–5): “These comparisons suggest a short answer to the question, "What is the nude?" It is an art form invented by the Greeks in the fifth century, just as opera is an art form invented in seventeenth-century Italy. The conclusion is certainly too abrupt, but it has the merit of emphasizing that the nude is not the subject of art, but a form of art.”

104 Tradução livre do inglês: “A mass of naked figures does not move us to empathy, but to disillusion and dismay. We do not wish to imitate; we wish to perfect.”

105 Tradução livre do inglês: “painfully real”.

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