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2. Outras dimensões da autonomia local

2.3 A Autonomia local, autoadministração e tutela

Esse poder político autárquico, como já referimos não é único, não é soberano, trata-se de um poder derivado de um poder político maior – o do Estado.

A autarquia local vai ter de se relacionar com esse já referido poder político maior, relação essa onde este tenderá, pela própria natureza das relações entre fortes e francos, à prevalecer sobre aquela.

Para regular as relações entre o Estado e as autarquias locais, torna-se necessário pois, estabelecer claramente as regras de tutela. Nesse sentido a Constituição vem limitar qualquer intervenção do Estado nos assuntos locais à mera possibilidade de tutela da legalidade – e nem de outro modo poderia ser (art.242.º n.º1 da CRP).

A autonomia local contém, como vimos, uma dimensão política, entendida como a possibilidade de um conjunto determinado de residentes numa determinada autarquia decidir, ainda que por meio de eleitos locais, os seus interesses – dentro, claro está, das atribuições do ente local em causa. Ora reconhecer mais do que a tutela de legalidade, seria reconhecer que a vontade da coletividade local poderia ser ultrapassada pela vontade do Estado, teríamos que reconhecer que, afinal, as populações locais não poderiam exercer uma escolha original sobre

116 Bacelar Gouveia refere aos atos eleitorais e referendários como uma das manifestações da função política

(ainda que não a propósito das autarquias). Ora esses dois atos estão previstos a nível local – art.239.º da CRP e 240.º da CRP. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de Direito Constitucional. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2005, p.1205.

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como conformar os seus interesses, perder-se-ia a possibilidade da opção original, perder-se- ia grande parte do sentido político e até democrático da autonomia local.

Nesse sentido, a Carta Europeia de Autonomia Local, no artigo 8.º n.º 2 vem estabelecer que “ A tutela administrativa dos atos das autarquias locais só deve normalmente visar que

seja assegurado o respeito pela legalidade e pelos princípios constitucionais”, indo mais

longe, a Constituição Portuguesa no seu artigo 242.º n.º1, dispõem que a “tutela

administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei”.

Constitucionalmente essa tutela sobre as autarquias locais está primeiramente atribuída ao Governo e às Regiões Autónomas – art.199.º d) e art.227.º n.º1m) respetivamente117. A par da regulação constitucional, a lei 27/96 vem desenvolver o regime concreto que disciplina o exercício por parte do Poder Central da tutela sobre às autarquias. A referida lei limita a regular apenas duas das espécies de tutela – a inspetiva, que atribuí no essencial ao Governo, e a sancionatória que fica a cargo dos tribunais. Há assim, uma clara opção pela desapropriação do Governo do exercício da tutela sancionatória a favor dos tribunais.

Essa desapropriação do Governo do exercício da tutela sancionatória será alvo de uma extensa crítica por parte de André Folque. Para este autor a extinção da tutela sancionatória confiada ao Governo seria inconstitucional, pois privaria o Governo de uma competência que a Constituição expressamente lhe confere, sendo que a tutela seria uma reserva específica da administração, no caso concreto, do Governo: “ Exercer a tutela é ainda administrar. Se o

exercício de poderes de tutela sobre as autarquias locais compete ao Governo, a sua remessa para a função jurisdicional sem um acto prévio do Governo determina inconstitucionalidade. Não é indiferente que seja o Governo ou os tribunais a decidirem, em primeira mão, a aplicação de sanções tutelares”118.

Ora, não cremos que esta crítica proceda, seguindo aqui de perto a opinião de Freitas do Amaral, não nos parece que ao Governo não caiba qualquer intervenção sancionatória. Com efeito, continua a lhe ser reservada uma relevante iniciativa pré-processual, sendo ainda certo que a Constituição parece permitir à lei uma margem grande de liberdade para a configuração da tutela administrativa sobre as autarquias, permitindo uma abordagem que comporte uma

117

Nas regiões autónomas o órgão tutelar é o Governo Regional, artigo 49.º e) do Estatuto Político- Administrativo da Madeira e artigo 90.º n.º1 g) do Estatuto Político-Administrativo dos Açores.

118

FOLQUE, André. Indisciplina normativa na tutela das autarquias. Direito Regional e Local, n.º5 (Janeiro / Março 2009), cit .p.40.

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maior ou menor intensidade de intervenção do poder tutelar sem se incorrer em inconstitucionalidade material. 119

Mas para além disso, cremos que a atual lei é a que mais se adequa à configuração constitucional do Poder Local, trata-se de um Poder, um poder que como anteriormente referimos tem uma legitimidade democrática – tal como o Governo – e uma dimensão politica. Essas três características – poder, legitimidade democrática e dimensão política – parecem justificar uma intervenção essencialmente inspetiva do Governo, remetendo as decisões sobre as medidas sancionatórias em concreto para órgãos – tribunais – que não tenham uma dimensão eminentemente política, como a que tem o Governo.

Escreve ainda André Folque, que se trata num primeiro momento de garantir o interesse público, o que “não se compadece, numa primeira fase, com a imparcialidade dos tribunais.”

120; o tipo de ilícito tutelar compreende conceitos indeterminados o que abriria as “ portas a um critério de oportunidade e conveniência, que surge como um poder discricionário (‘pode ser dissolvido quando …’) que os tribunais e o Ministério Público esvaziam de uma ponderação administrativa segundo critérios de interesse público para o preencherem de acordo com o grau de culpa do agente ou com as circunstâncias dos factos praticados”121.

Ora, é exatamente pelo facto de o Governo ser um órgão com uma natureza eminentemente política e administrativa, que naturalmente dirige as suas decisões por considerações de oportunidade, que nos leva a considerar mais consentânea com a configuração constitucional da autonomia local, que a sua ação esteja mais confinada a uma tutela inspetiva, mantendo contudo sempre um poder de impulso pré-processual.

Até aqui referimos apenas à dois tipos de tutela – a inspetiva, e a sancionatória –, contudo somos levados a aceitar, como aliás faz a generalidade da doutrina122, a tutela integrativa. Com efeito parece que a mesma não está vedada constitucionalmente, sendo até de lhe

119 Cfr. AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. 3.ª edição. Vol. I. Coimbra: Almedina,

2008, p.638

120 FOLQUE, André. A Tutela Administrativa nas relações entre o Estado e os Municípios. Coimbra Editora,

2004, cit. p.247.

121FOLQUE, André. Indisciplina normativa na tutela das…, cit. p.40, sublinhado nosso.

122 Cfr. AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. 3ª edição. Vol. I. Coimbra: Almedina,

2008, p.888; FOLQUE, André. A Tutela Administrativa nas relações entre o Estado e os Municípios. Coimbra Editora, 2004, p.368 ss.; OLIVEIRA, Fernada Paula; DIAS, José Eduardo Figueiredo Noções Fundamentais de

Direito Administrativo. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 2013, p. 90; SOUSA, Marcelo Rebelo de. Lições de Direito Administrativo. Vol. I. Lisboa: Lex, 1999, p.233.

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reconhecer especial mérito no que toca à atividade tutelar do Governo no campo das finanças locais.

Finalmente defendemos que não é possível aceitar, tendo em conta a própria restrição constitucional do controlo da Administração Central à tutela da legalidade, a existência de uma tutela revogatória ou substitutiva123