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Se inicialmente toda a atividade normativa tendia a concentrar-se no parlamento, cedo se constatou o facto de este ser incapaz de ser responsável por toda a normação necessária à boa execução das leis. Assim, já a Carta Constitucional Francesa de 1814 previa no seu artigo 14.º que ao rei fosse reconhecido o poder de emitir regulamentos para a boa execução das leis.239 Com a passagem para o Estado Social de Direito, mais gritante ainda tornou-se a necessidade de conceder ao poder executivo a possibilidade, de também ele, dispor de poderes normativos.

Ora, é neste contexto que surge o poder normativo administrativo. A norma administrativa partilha com a lei uma estrutura que muitas vezes com esta se confunde, sendo que contudo, o poder regulamentar da Administração tal como toda a atividade administrativa possui, em regra, um carácter secundário em relação a atuação do Estado, diferenciando assim da atividade legislativa. Trata-se de uma forma de atuação onde não se permite, em princípio, opções originais240por parte do titular do poder regulamentar, devendo este limitar a executar ou complementar as leis.

Como foi dito, há uma identificação estrutural entre a norma legal e a norma administrativa, ambas tendem a ser gerais e abstratas, sendo que essa tendência é unanimemente aceite pela doutrina.

Contudo, apesar de se aceitar o facto de tanto a lei como o regulamento tenderem a ser gerais e abstratos, tal não significa que em relação a este último – que é alvo da nossa análise

239Article 14. - Le roi est le chef suprême de l'Etat, il commande les forces de terre et de mer, déclare la

guerre, fait les traités de paix, d'alliance et de commerce, nomme à tous les emplois d'administration publique, et fait les règlements et ordonnances nécessaires pour l'exécution des lois et la sûreté de l'Etat” Charte constitutionnelle du 4 juin 1814, disponível em http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil- constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/charte-constitutionnelle-du-4-juin-

1814.5102.html

240 Veremos que se trata de uma característica tendencial, que não terá a mesma amplitude quando esteja em

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– não haja um dissenso quanto a necessária presença dos dois elementos supra enunciados – generalidade e abstração.

O problema surge essencialmente pela não previsão no Código do Procedimento Administrativo de uma noção de regulamento e de no mesmo Código, ao se definir o ato administrativo, limitar-se a exigir que o mesmo seja individual – artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo.

Assim antes de avançarmos no desenvolvimento do tema agora em análise, pareceu-nos pertinente procurar uma noção de regulamento administrativo.

A primeira questão que levantamos é se basta uma mera qualificação formal para que um determinado comando jurídico seja qualificado como regulamento administrativo ou se além disso exigir-se-á um determinado conteúdo em concreto.

O recurso a mera qualificação formal tem sido utilizado designadamente em relação aos atos de conteúdo eventualmente legislativo, tendo em conta a necessidade de alargar o poder de fiscalização do Tribunal Constitucional241, permitindo assim a fiscalização de atos

concretos e individuais que, apesar dessa estrutura, se assumam formalmente como tendo uma natureza legislativa.

No que diz respeito a noção de regulamento administrativo há também que determinar quais as exigências materiais que (se for o caso) se devem fazer a um determinado comando para que possa ser considerado como uma norma administrativa, e se essas exigências materiais são suficientes para que se possa qualificar uma determinada norma como regulamentar ou não.

Uma das primeiras questões que se levanta quanto a saber o que é ou não um regulamento administrativo, diz respeito a sua estrutura.

Várias posições têm sido assumidas. Assim, para Vasco Pereira da Silva, tendo em conta que o artigo 120º do Código do Procedimento Administrativo exige que um ato administrativo contenha um comando individual e concreto, a contrario sensu, para se estar perante uma norma administrativa bastava existir em alternativa, generalidade ou abstração.242 Para

241 Cfr. MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça Constitucional. Vol. I. Coimbra Editora, 2002, p.465.

242 Cfr. SILVA, Vasco Pereira da. Verde Cor de Direito Lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina,

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Oliveira Ascensão o único elemento relevante para a caracterização da norma jurídica seria a generalidade, não sendo a abstração uma característica da norma jurídica243. Considerando também apenas a generalidade como elemento determinante para se saber se se está perante uma norma ou se se está perante um ato administrativo, encontra-se Freitas do Amaral244. Do exposto tendemos a aderir a posição de Vasco Pereira da Silva, não exigindo cumulativamente, os dois requisitos clássicos245: a generalidade e a abstração246. Bastaria a existência de um dos dois requisitos enunciados para estarmos perante um regulamento administrativo. Se é certo que pela análise do Código do Procedimento Administrativo, podemos constatar que regime procedimental da produção regulamentar mostra-se tendencialmente mais débil do que o do ato administrativo, sendo que este último está submetido a um regime mais participado e garantístico para o particular. Não menos certo é que da análise do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ao contrário dos atos administrativos, a declaração de ilegalidade de um regulamento administrativo não tem prazo – artigo 74.º do referido Código – o que na mais das vezes apresenta-se como um fator determinante na defesa dos interesses do lesado, embora reconheçamos que, por outro lado, a qualificação de um determinado ato como regulamentar acarreta um nível maior de exigência para que o particular o possa atacar imediatamente, visto que tal só se torna possível se os efeitos da norma se produzirem imediatamente na esfera jurídica do particular sem dependência de ato administrativo ou jurisdicional – art.73 n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Sopesando o que atrás fomos dizendo, levando em conta o disposto no artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo, bem como o facto de considerarmos que a classificação de um determinado ato como regulamentar tende a ser mais favorável aos interesses de defesa do particular lesado247, concluímos que, uma visão mais alargada do

243 ASCENÇÃO, José de Oliveira. O Direito Introdução e Teoria Geral. 11ª edição. Almedina: Coimbra, 2001,

p. 495.

244 AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2001, p. 173. 245 Exigindo esse dois requisitos: GONÇALVES, Pedro da Costa. Entidade Privadas com Poderes Públicos.

Coimbra: Almedina, 2008, p.699.

246 Exigindo também a generalidade e abstração, embora apenas como regra, e não como requisito essencial,

Coutinho de Abreu define regulamento como “ norma escrita, geral e abstracta por via de regra, subordinada à

lei, emanada por uma autoridade administrativa, ou por uma entidade privada no desempenho de uma função pública-normativa” ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Sobre os Regulamentos Administrativos e o Pricípio da Legalidade. Coimbra: Almedina, 1987, cit. p.45.

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conceito de norma regulamentar mostra-se mais consentânea com o artigo 120º do Código de Procedimento Administrativo, bem como a ratio de conceder uma maior garantia ao particular face a administração – tendo sido essa aliás a tendência que vem norteando a mais recente evolução legislativa. Desta forma, a existência em alternativa de abstração ou generalidade bastaria para se qualificar um ato como regulamentar.

Até aqui fizemos referência apenas a estrutura na norma administrativa – o regulamento – mas a partir dela não é possível determinar a natureza administrativa ou não da norma em análise.

Há que analisar então, o conteúdo material da norma sub judice. Um dos critérios materiais para determinar a natureza administrativa de uma norma ou negá-la seria o de se procurar a presença ou não de uma componente política no conteúdo material da norma em causa. Se não se encontrasse essa componente política, primária, inovatória, estaríamos perante um regulamento administrativo, se pelo contrário, a norma resultar da função legislativa/política estaríamos não perante uma regulamento administrativo mas sim perante uma lei no sentido lato.248 Contudo essa posição peca por não poder dar uma noção abrangente de regulamento

administrativo pois, se é certo que permite fazer uma descrição do conteúdo material dos regulamentos emanados pela administração direta do Estado, já não o consegue fazer nomeadamente em relação a administração autónoma.

A normação resultante da atividade regulamentar da administração autónoma – no nosso caso concreto do município – tem subjacente, como já defendemos, uma dimensão política249, ou pelo menos, uma dimensão político-administrativa. Há nesses casos uma criação normativa original e não derivada – dentro das respetivas atribuições próprias, claro está. Aliás, é a própria Constituição que no seu artigo 112.º n.º7 vem prever a existência de regulamentos independentes que se bastam com uma lei que preveja a competência objetiva e subjetiva para a sua emissão – art. 112.º n.º 8 da CRP.

Partindo dessa impossibilidade de encontrar um conteúdo material da norma administrativa parece-nos ser de se seguir uma noção essencialmente formal, que aliás é defendida por autores como Mário Aroso de Almeida250 ou ainda Freitas do Amaral. Sendo que a definição deste último parece sintetizar o que o ordenamento jurídico-administrativo português entende

248 Defendendo essa posição, SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado Direito Administrativo Geral : Actividade administrativa. Vol. III. Lisboa: Dom Quixote, 2007, p.239.

249 Cfr. supra Capítulo II ponto 2.2.

250 ALMEIDA, Mario Aroso de. Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares. Coimbra: Almedina,

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por regulamento administrativo: “é regulamento todo o acto dimanado de um órgão com

competência regulamentar e que revista a forma de regulamento, ainda que seja independente ou autónomo e, por conseguinte, inovador”251.