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2. Poder regulamentar autónomo

2.3 A reserva regulamentar a favor do município

Uma outra questão que se coloca acerca do relacionamento entre lei e regulamento é o de saber se existe uma reserva de regulamentação autónoma a favor do município.

362 Correia, Sérvulo…Ibidem, cit. p.270.

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O Tribunal Constitucional bem como grande parte da doutrina364 tende a recusar a

existência de um limite à intervenção da lei numa determinada matéria de natureza administrativa – desde que não se mostre tão intensa que esvazie a função executiva do Governo. O Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos seus acórdãos n.º1/97 e n.º24/98, veio recusar a existência de qualquer reserva de administração que se oporia ao poder normativo da lei, isto é, esta poderia invadir áreas materialmente administrativas, áreas que estariam normalmente conformadas por regulamentos ou até atos administrativos. Recorrendo às palavras do juiz constitucional: “Daqui decorre que, mesmo havendo sempre que

considerar constitucionalmente um espaço próprio e típico de actuação do Governo, como ‘órgão superior da administração pública’ (artigo 182º; e cfr. artigo 199º), tal não significa que o legislador parlamentar não possa pré-ocupar esse espaço no uso dos seus amplos ‘poderes de conformação’”365.

Este entendimento é contudo alvo de profundas críticas por autores como, Mario Aroso de Almeida366, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, que consideram que tal

entendimento se mostra entre outros, “incompatível com o princípio da separação de

poderes”367.

Esta posição do Tribunal Constitucional ainda que discutível, teve como objeto as relações entre o poder executivo do Governo e o poder legislativo da Assembleia. Ora, mesmo autores como Vital Moreira, que rejeitam que possa existir uma reserva de regulamento governamental face à lei, admitem claramente a existência de “uma reserva regulamentar

autónoma, insuscetível de ser invadida pela lei”.368/ 369

364 Considerando que a reserva da função administrativa não é admitida no plano constitucional cfr. GOUVEIA,

Jorge Bacelar. Manual de Direito Constitucional. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2005, p. 1229.

Para uma visão geral da doutrina a esse respeito: MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça Constitucional. Vol. I. Coimbra Editora, 2002, p. 479 e ss.

365 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 24/98, sendo de se referir que esta posição do Tribunal Constitucional

foi proferida tendo em conta as relações entre o poder legislativo da Assembleia da República e o poder executivo do Governo.

366 Cfr. ALMEIDA, Mario Aroso de. Teoria Geral do Direito Administrativo: temas nucleares. Coimbra:

Almedina, 2012, p.92.

367 SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral : Introdução e Princípios Fundamentais. 3ª edição. Vol. I. Alfragide: Dom Quixote, 2008. cit. p.140.

368 MOREIRA, Vital. Administração Autónoma e Associações Públicas. Coimbra Editora, 1997, cit .p.182. No

sentido de considerar inquestionável de uma reserva específica a favor das autarquias locais; SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral : Introdução e Princípios

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Com efeito, dado ao facto do poder regulamentar autónomo dos municípios ser o âmago da sua autonomia; desse mesmo poder estar claramente autonomizado na Constituição no seu artigo 241.º, sendo a “expressão da ‘autoderterminação’ na realização de interesses

próprios”370; tendo ainda em conta a noção constitucional da autonomia local aqui defendida, seria esvaziar essa noção, se em áreas onde não relevasse o interesse geral, onde se estivesse perante um interesse claramente local, se permitisse à lei substituir-se ao ente local, no caso ao município371. Não que se questione a força prevalente da lei no quadro constitucional português, contudo é esse mesmo quadro constitucional que recorta áreas de atribuições e as entrega às autarquias locais, no caso aos municípios, sendo que permitir a prevalência da lei também nestas áreas, poria em causa o já referido recorte constitucional, exaurindo o conteúdo garantístico da autonomia local.

Recusar a existência de tal reserva seria aceitar a possibilidade da supressão por parte do legislador ordinário da autonomia local tal como conferida pela própria Constituição.

Desta forma há que concluir pela existência de uma reserva regulamentar a favor do poder normativo autónomo local.

Há que referir que, em consonância com as considerações já feitas sobre a noção por nós defendida das atribuições locais, não se trata de uma reserva que seja dada obrigatoriamente

ab initio por uma lei, pelo contrário, há de se revelar muitas vezes, caso a caso, sendo a

missão do aplicador do direito identificar os limites, ou as bordas onde começa e onde acaba essa mesma reserva.

Mas como se referiu, essa reserva identifica-se com uma reserva de densificação

normativa a favor do ente local,372 dessarte existe um dever de contenção por parte do legislador nacional perante matérias que se revelem de interesse local, sendo nestes casos

369 No mesmo sentido, PIÇARRA, Nuno. “A reserva de Administração.” O Direito, Ano 122, 1990 Abril

Junho.597 ss.

370MOREIRA, Vital…cit.p.182.

371 Defendendo a existência “ de uma garantia constitucional de uma reserva de normação (primária) e da imposição ao legislador ordinário de uma zona de competência exclusiva destas entidades públicas [autarquias

locais ] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. A Titularidade do Poder Regulamentar do Direito Administrativo Português. Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXX 2004, cit. p.538 ss.

372 Recorrendo ainda que não nos mesmos termos a essa noção Nuno Piçarra escreve: “As disposições citadas

[artigos 6.º n.º1, 235.º, 237.º e 241.º da CRP] deixam particularmente claro que a reserva de administração

vertical por determinação da Constituição aqui prevista não se traduz numa impermeabilidade ou imunidade à lei que exija a ausência desta, mas antes, numa questão de intensidade ou densidade de predeterminação legal do correspondente objecto, a qual deve limitar-se ao mero esboço das tarefas e à enumeração dos fins das autarquias ” PIÇARRA, Nuno. “A reserva de Administração.” O Direito, Ano 122, 1990 Abril Junho, cit p.598.

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obrigado a deixar um espaço de conformação à autarquia local, espaço esse que não poderá resumir-se a emissão de meros regulamentos executivos.