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2. Outras dimensões da autonomia local

2.2 Autonomia como autonomia “Política”

Está em causa, assumindo as palavras de Casalta Nabais, o “poder de desenvolver uma

acção política própria, entendida, esta, no sentido rigorosamente científica do termo, como a possibilidade de estabelecer, relativamente a uma determinada esfera de interesse (esfera autónoma), uma linha de ação própria ou um programa administrativo próprio, programa cuja definição e implementação estão ao dispor da liberdade conformadora (liberdade de decisão política) da comunidade autónoma através dos seus órgãos democraticamente legitimados”107 .

107 NABAIS, José Casalta. Estudos sobre Autonomias Territoriais, Institucionais e Cívicas. Coimbra: Almedina,

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Essa dimensão política das autarquias locais é também reconhecida de forma muito impressiva por Jorge Miranda:“ Inserindo o poder local no âmbito do poder político, a Lei

Fundamental de 1976 pretende impregna-lo de um relevo mais rico e mais sólido do que aquele que tinham tido em qualquer momento no passado as autarquias locais. Estas são deslocadas de meras instâncias administrativas para a instância política e para directa subordinação aos princípios e preceitos constitucionais.”108

Apesar de se lhe reconhecer uma natureza política esta não se confunde com o poder político soberano do Estado, está-se perante o que a doutrina designa como uma autonomia

político-administrativa 109/ 110.

Com efeito, não se trata de um poder político soberano porque é de segunda ordem, é derivado. Derivado do poder do Estado,111 e este de todos os seus cidadãos. Assim, apesar de se lhe reconhecer uma natureza política, esta será sempre contida; não será nunca plena mas sim delimitada às áreas de interesses e atribuições das autarquias locais, que como é consensual, revelam-se mais restritas do que as do Estado.

Mas, apesar de se reconhecer às autarquias uma natureza derivada, a dimensão política das autarquias locais implicará que as mesmas não sejam consideradas meros prolongamentos do Estado Central. Trata-se de entes que, apesar de tal como o Estado Central prosseguirem fins múltiplos, constituem um centro de interesses autonomizado deste. Estes interesses, quando reconhecida a sua dimensão local, devem resultar não da vontade geral – que é corporizada pelo Estado – mas sim, da vontade geral dos vizinhos (no caso dos concelhos).

A natureza política das autarquias locais revela-se na sua própria autonomia. A autarquia local, tal como o Estado decide na sua área de atribuições de forma originária, primária. Quando regulamenta de forma autónoma não está a desenvolver ou a completar prévias opções do Governo ou da Assembleia. É certo que esse poder de decisão primário está restrita a sua área de atuação, mas esta constatação não lhe retira o reconhecimento de uma dimensão política – de escolhas primárias.

108 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Estrutura Constitucional do Estado. 4ª ediçâo. Vol.

III. Coimbra Editora, 1998, cit.p.230. Refira-se que o sublinhado é nosso.

109 NABAIS José Casalta Estudos Sobre Autonomias Territoriais...p. 90.

110 Reconhecendo também essa dimensão político-administrativa do poder local ALFONSO, Luciano Parejo. La Potestad Normativa Local. Madrid: Marcial Pons, 1998, p.16.

111 Num sentido muito próximo, mas escrevendo sobre a descentralização: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Estrutura Constitucional do Estado. 4ª edição. Vol. III. Coimbra Editora, 1998, p.212.

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Essa natureza política revela-se de forma impressiva nas eleições para os órgãos representativos das autarquias locais. São eleições políticas, com partidos políticos112, onde se discute política, com escolhas políticas, cujo os reflexos podem mesmo afetar a própria

política nacional113.

Essa dimensão política revela-se ainda numa outra dimensão que lhe está intimamente ligada – a democrática. Esta assume-se como um dos elementos fundamentais na definição do conteúdo da autonomia local. A autonomia local nunca poderá ser plena se a mesma não resultar da vontade dos moradores da autarquia. Faltando esta vontade, estaremos quase sempre perante uma administração indireta e não autónoma. 114

Referindo-se a mesma realidade, mas denominando-a de um poder de

autodeterminação115, Vital Moreira refere que o que distingue a administração autónoma da

indireta é o facto de a primeira ser autodeterminada e a segunda ser heterodeterminada. À primeira seria reconhecido o poder de definir os seus próprios objetivos e meios de os realizar, de forma livre, sem interferência de qualquer poder exterior.

A dimensão democrática das autarquias locais reflete-se também em várias disposições normativas constitucionais.

Assim, logo no seu artigo 6.º n.º1, a Constituição Portuguesa refere-se claramente à dimensão democrática da autonomia local, assim como no seu artigo 235.º n.º1:“ a

organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais.” Mas para

além disso, a Constituição afirma a dimensão democrática da autonomia local ao prever a existência de órgãos representativos locais eleitos democraticamente pelas populações (artigos

112

A partir da Revisão Constitucional de 1997 passou-se a admitir também a participação de grupos de cidadãos nas eleições para as autarquias locais (art. 239.º n.º4 da Constituição).

113

Como terá acontecido nas autárquicas de 2001 onde os resultados terão levado a demissão do então primeiro- ministro A. Guterres.

114 Freitas do Amaral referindo-se expressamente ao poder local autárquico, distingue duas formas de

descentralização, uma que tem apenas uma dimensão jurídica – descentralização em sentido jurídico – e outra que para além da dimensão jurídica (isto é, a existência de uma entidade administrativa formalmente diferente do Estado), tem uma dimensão política que se há de revelar na possibilidade das populações locais elegerem os seus próprios representantes. Neste sentido, constata que no Estado Novo havia uma descentralização apenas jurídica, pois os presidentes da câmara eram nomeados e demitidos pelo Governo: cfr. AMARAL, Diogo Freitas do.

Curso de Direito Administrativo. 3ª edição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2008 3ª edição p.486.

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235.º n.º2; 239.º; 244.º; 250.º da Constituição); ao prever o recurso ao referendo local como forma de participação dos cidadãos eleitores (artigo 240.º da Constituição); ao prever a possibilidade de participação de partidos políticos ou grupos de cidadãos eleitores (art. 239.º n.º4 da Constituição); o facto de as autarquias serem erigidas pela Constituição em Poder – Poder Local –; todas estas normas revelam de forma inequívoca que às autarquias locais não se reconhecem apenas uma dimensão administrativa, elas não são apenas administração pública, elas são também administração política; política116 e democrática.

Assim, falar na dimensão política da autonomia local há de implicar falar também da sua dimensão democrática. Sendo certo que a relação de dependência se revela mais acentuada quando se refere a dimensão política, pois esta só tenderá a existir se for suportada por uma estrutura de escolha e conformação dos interesses locais eminentemente democrática.