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A Constituição de 1976, em reação ao profundo esvaziamento do conceito de autonomia local que se tinha verificado durante o Estado Novo, vem proclamar as autarquias locais como sendo um Poder, o Poder Local.

Existe uma grande preocupação em afirmar a efetividade desse novo poder local, que se queria mais do que meramente formal, que se consubstanciasse em algo de real. Assim, logo no artigo 6.º n.º 1 da Constituição se afirma a “ autonomia das autarquias locais” que, como muitos autores constatam,150 trata-se de uma afirmação pleonástica, redundante, pois não pode em princípios existir autarquia sem autonomia. Mas se seria assim no puro campo dos conceitos, a realidade do Estado Novo veio a provar que tal redundância afinal poderia não ser assim tão redundante – durante 50 anos as autarquias locais não passaram, praticamente, de meras extensões do Estado Central.

Desta forma, a Constituição logo ao referir-se aos seus princípios fundamentais, consagra a autonomia das autarquias locais como sendo um desses princípios – art. 6 n.º1 CRP. Mas mais do que a consagração em sede de princípios fundamentais, no seu artigo 288.º alínea n), a Constituição erige a autonomia local como um limite material de revisão constitucional, tornando-a assim um elemento caracterizador da própria ideia da Constituição, ou melhor, da Constituição de 1976.

A Constituição autonomiza o tratamento normativo das autarquias locais num título próprio que denomina de Poder Local – o Título VIII da Parte III da CRP – com um total de 31 artigos.

Para além desse tratamento autonomizado que a Constituição dispensa ao Poder Local num título autónomo, encontramos fora deste outras referências151 que se mostram relevantes para

150 Cfr. NABAIS, José Casalta. Estudos sobre Autonomias Territoriais, Institucionais e Cívicas. Coimbra:

Almedina, 2010, p.65;

OLIVEIRA, António Cândido de. Direito das Autarquias Locais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 198.

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Ao longo de todo o articulado da Constituição Portuguesas a expressão “autarquias locais” aparece quase 40 vezes, apesar de se tratar de uma constatação que pode não passar de uma mera curiosidade, revela de alguma forma a relevância constitucional que lhes é concedida.

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compreender, nomeadamente, qual deverá ser o conteúdo das atribuições locais. Assim destacamos o artigo 65.º n.º4 CRP que atribuí às autarquias locais, em conjunto com o Estado e as Regiões Autónomas, a definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos – temos aqui a previsão que na prática se revela uma das mais caras ao poder autárquico, em especial ao municipal. Ainda, referindo-se às funções das autarquias, a Constituição no seu art. 66.º n.º 2 e) lhes atribui, a par com o Governo, promover a qualidade ambiental e arquitetónica, bem como a proteção das zonas históricas. Prevê-se ainda a existência de um domínio público autárquico – art.84.º n.º2 CRP –; no plano da governação económica, é reconhecido aos representantes das autarquias locais o direito à participarem nas reuniões do Conselho Económico e Social – art. 92.º n.º2 CRP.152Destacamos também o reconhecimento expresso na Constituição do papel das autarquias locais na promoção de políticas sociais ao atribuir aos municípios, a par com o Estado, a função de promoção de habitações sociais – art. 65.º n.º2 alínea b) CRP. Por último há que referir mais uma vez o artigo 288.º alínea n) CRP, que declara a autonomia local como um limite ao próprio poder do legislador em sede de revisão constitucional.

Estes artigos agora citados, juntamente com os do Título VIII Parte III da CRP, permitem- nos ter uma visão global da imagem que a Constituição quis desenhar do poder autárquico, das suas atribuições e do seu núcleo essencial.

Defendemos tratar-se contudo, apesar da ênfase dada a sua tutela pela Constituição, de nada mais nada menos, do que um princípio organizacional153 dos poderes públicos e não de uma qualquer figura equiparada aos direitos fundamentais ou ligada a autonomia da pessoa humana. Não parece-nos, como defendem alguns autores, nomeadamente Baptista Machado154 e A. Cândido de Oliveira155, que a Constituição ao falar em autonomia local esteja a se referir a algo que vá para além de uma mera opção organizacional dos vários poderes do Estado por parte do legislador constituinte. Discordamos, com o devido respeito,

152 Embora aqui reconhecemos o facto do referido conselho ter uma natureza puramente consultiva e ter uma

muito diminuta influência nas grandes opções económicas a serem tomadas pelo Governo.

153 Neste sentido, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Distribuição pelos municípios da energia eléctrica em baixa tensão in Colectânea de Jurisprudência. Vols. I-. Coimbra: Associação Sindical dos Magistrados Judiciais

Portugueses, 1989, p.18.

154 Cfr. MACHADO, J. Baptista. Participação e descentralização; Democratização e neutralidade na Constituição de 76. Coimbra: Almedina, 1982, p. 65 e ss. e p. 95 e ss.

155 Cfr. OLIVEIRA, António Cândido de. Direito das Autarquias Locais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993,

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destes autores que ligam a noção de autonomia local a uma espécie de exigência meta- constitucional; uma exigência fundamental derivada da noção de liberdade, da liberdade do indivíduo singularmente considerado; uma exigência da própria dignidade da pessoa humana. Sendo que essa noção tinha necessariamente que se concretizar através da consagração de

bolhas de proteção infra-estaduais contra as investidas das maiorias contra as minorias. Não

que discordemos da necessidade de sistemas de bolhas que permitam dar expressão à vontade das minorias – considerando-as sempre que possível na construção da vontade geral ou mesmo criando espaços autónomos de liberdade. Rejeitamos também, da mesma forma, as conceções rausseaunianas156de liberdade, onde a maioria sobrepõe-se ao indivíduo de forma categórica. Apesar disto, não consideramos que o papel da autonomia local seja esse, pelo menos prima facie.

Se é certo que uma das consequências da existência de autarquias locais pode ser de facto o de se criar um núcleo populacional que pode expressar uma vontade que se contraponha à vontade geral, consideramos que se trata apenas de um efeito secundário. Na verdade, as autarquias locais tendem, o mais das vezes, a reproduzir a uma escala reduzida as maiorias e as minorias do país, não representado um efetivo espaço realmente diferenciado, onde vontades minoritárias ganham voz.157

A procura pela proteção da liberdade do indivíduo singularmente considerado, do respeito pelos grupos minoritários, deverá ter a sua demanda noutros institutos e princípios constitucionais158 que não o da autonomia local. Esse efeito protetor deve ser procurado essencialmente no bloco respeitante aos direitos liberdades e garantias, bem como no princípio da representação proporcional na Assembleia da República.

156 Rousseau defendia claramente uma ditadura da maioria sobre as minorias, citando o seu livro Contrato Social:

“Afin donc que ce pacte social ne soit pas un vain formulaire, il renferme tacitement cet engagement, qui seul

peut donner de la force aux autres, que quiconque refusera d'obéir à la volonté générale, y sera contraint par tout le corps; ce qui ne signifie autre chose sinon qu'on le forcera à être libre” ROUSSEAU, Jean Jacques. Du Contrat Social: ou Pricipes du Droit Politique. Livro I capítulo 1.7 Obra em formato eletrónico disponível em :

www http://classiques.uqac.ca/classiques/Rousseau_jj/contrat_social/Contrat_social.pdf, sublinhado nosso.

157 Basta constatar a tendência de os resultados das eleições autárquicas refletirem globalmente os grandes blocos

políticos do país – PSD/PS – bem como a tendência que os resultados das eleições locais têm de acompanharem os resultados das eleições legislativas – ainda que se reconheça muitas exceções.

Mas se é assim a nível da pura repartição partidária dos votos, não menos certo é o facto de as outras minorias (étnicas, de orientação sexual, religiosas, culturais etc.) permanecerem também em minoria nas autarquias.

158Mostra-se mais apto para essa função o princípio do respeito da dignidade humana, da igualdade, das várias

liberdades (liberdade de consciência, religião e culto, de associação, reunião, de participar na vida pública de criação cultural, de aprender e ensinar, etc.) e da proibição do excesso – limitando-se assim a margem de “arbitrariedade” do legislador.

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Assim, como já se referiu, há muito que as minorias não se identificam com a pertença a uma determinada circunscrição geográfica, as referências sociais são outras; passam por outras dimensões de pertença (sexuais, ideológicas, profissionais, etc.). Parece assim excessivo erguer o município como uma barreira protetora das minorias contra as maiorias, sabendo que, na maior parte das vezes, a definição de minorias ou maiorias não se faz em termos territoriais mas sim, puramente sociais, culturais ou étnicos.

Seguindo o raciocínio exposto, torna-se imperativo considerar que o princípio da autonomia local e a existência de autarquias locais, mostra-se parcial ou totalmente incapaz de dar expressão aos sectores minoritários da sociedade – pois além do mais, estes tendem a permanecer, também, minoritários dentro da própria realidade autárquica.

Assim, a premissa da qual partimos é a de que todo o poder se reconduz ao Estado, este é o único ente original. Todas as outras estruturas institucionais, nomeadamente de natureza pública, são dele derivadas. O único detentor originário da autoridade é o Estado, tudo o resto resulta da partição do poder soberano do Estado. Assim, o Poder Local é com toda a certeza um Poder, mas é um poder derivado não original, um poder que só existe porque é consentido pelo poder soberano que é o Estado.

Quando defendemos a natureza derivada do Poder Local não recusamos que nos primórdios da existência dos concelhos estes assumiram-se como verdadeiros entes soberanos159 (ou quase), que se afirmavam de pleno direito perante outros poderes, nomeadamente o senhorial e o real. Mas a história evoluiu no sentido do esbatimento da legitimidade concelhia a favor da legitimidade real, este vai desapropriando progressivamente o espaço de autonomia que se reconhecia ao concelho, o município vai tendo progressivamente a sua existência submetida à vontade do Rei. O foral vai perdendo relevância como documento que seria o repositório do direito local. Sendo que a estocada

final, terá sido dado no período liberal, quando claramente o concelho passa a ser apenas uma

forma de organização do Estado, ainda que como alguma tradição histórica – só assim torna- se possível compreender que em 1836 Passos Manuel possa ter extinguido, sem mais, 445 concelhos em Portugal.

Pelos motivos referidos parece-nos anacrónico considerar que o concelho possa ainda ser considerado uma realidade meta-constitucional.

159 Como referimos na parte histórica (capítulo I), se para determinados concelhos o foral vinha apenas

reconhecer uma realidade de facto, cedo este passou a ser usado como instrumento constitutivo do próprio concelho. Era o foral que dava origem ao conselho – nomeadamente os forais que pretendiam potenciar o povoamento de uma determinada localidade. Ora não podemos deixar de ver nestes forais também uma forma de erodir a ideia de comunidade originária e autónoma que os primeiros concelhos consubstanciavam.

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Ora, ao assumirmos a dimensão puramente constituída do poder local, e não como realidade que impor-se-ia ao legislador constituinte, não queremos dizer que o poder local não se constitua como algo mais do que uma simples proclamação, que estaria à mercê do legislador ordinário – que deve-se salientar, também ele, tal como o poder local, não passa de um poder constituído.

Com efeito, a Constituição ao consagrar a existência de autarquias locais como sendo um dos seus princípios organizacionais fundamentais, assim como ao erigir a autonomia local – i.e. o Poder Local – como um limite à revisão constitucional, quis afirmar a sua opção essencial a respeito da forma como pretendia fazer a distribuição dos poderes, como pretendia que o Estado se organizasse.

Apesar de se tratar de uma opção meramente organizacional, trata-se de uma opção constitucional fundamental, no mesmo plano que a opção por um determinado sistema de governo.

Assim, partindo da premissa básica, que se está perante uma opção fundamental do legislador constituinte há que procura a natureza, o conteúdo e a configuração básica dessa opção.

1.2 A natureza constitucional da autonomia local: garantia