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Poder de normação secundários (regulamentos executivos ou complementares)

Como resulta do exposto, nomeadamente da noção de interesse local aqui defendida, há que concluir que não existirá um interesse local (pelo menos, suficientemente relevante) em todas as matérias em que a administração local autárquica é chamada a intervir, nomeadamente exercendo o seu poder regulamentar.

Assim, a primeira consequência lógica da consagração de um poder regulamentar na esfera de competências do poder local é aceitar a sua competência para emitir regulamentos de execução ou complementar de leis: regulamentos que visam apenas desenvolver ou aprofundar a disciplina jurídica constante de uma lei, viabilizando a sua aplicação aos casos

concretos380.

A atividade regulamentar do município, assume aqui uma natureza derivada não primária, não existe já uma decisão primária no âmbito das suas atribuições, há sim, uma espécie de continuação de uma opção previamente tomada pela Estado Central cabendo à administração local, quase que apenas, limitar a torna-la exequível.

Sendo essa a ideia de partida, tratando de um poder ainda que de mera execução conferida a um ente autónomo, cabe fazer algumas precisões.

O Estado Central, ao conferir poderes aos município para regular decisões por aquele previamente conformadas, fá-lo tendo em conta a necessidade de adaptar a normação primariamente estabelecida, a cada realidade local em concreto, existe assim o reconhecimento, ainda que meramente implícito, da existência de uma concorrência – ainda que ténue – entre o interesse local e o interesse nacional ou geral. Pois, é essencialmente nestes casos que faz sentido conceder expressamente tais poderes às autarquias locais.

Assim sendo, há que reconhecer uma maior amplitude aos poderes conformadores do município em comparação com uma situação idêntica, por exemplo, envolvendo a

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Adotamos a distinção meramente dual de espécies de regulamentos feita por Freitas do Amaral (regulamentos autónomos ou independentes e regulamentos de execução ou complementares) AMARAL, Diogo Freitas do.

Curso de Direito Administrativo. 2ª edição. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2012, p.185.

380 Cfr. AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2001, p.159;

SOUSA, Marcelo Rebelo de ;MATOS André Salgado. Direito Administrativo Geral : Actividade administrativa. Vol. III. Lisboa: Dom Quixote, 2007,p. 246.

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administração indireta do Estado. O princípio da autonomia local, o facto de existir muitas vezes uma – ainda que ténue – concorrência de atribuições entre o Estado e o município, leva a que se seja obrigado a ter sempre em conta a natureza autónoma e politicamente legitimada do concelho, ainda que se esteja perante regulamentos meramente executivo.

Uma segunda questão que se levanta em relação ao poder de emissão de regulamentos executivos ou complementares por parte das autarquias locais prende-se com a necessidade, ou não, de expressa previsão por parte da lei à regulamentar, de poderes normativos a favor da administração local.

Ora, as autarquias locais estão incumbidas pela Constituição de zelarem pela prossecução

de interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º n.º 2 da CRP) sendo que, para

tal tarefa, são investidos de poder regulamentar próprio (artigo 241.º da CRP ). Partindo destas premissas, estando em causa regulamentos puramente executivos, onde a administração, por regra, não pode acrescentar nenhum quid novum à legalidade, não parece que se deva recusar ao município a possibilidade de fazer uso de regulamentos executivos para regulamentar questões não essenciais de uma determinada lei sem que esta expressamente o conceda esse direito, desde que: i) se contenha dentro do sentido da lei, ii) estarem em causa interesses que justificam uma regulamentação diferenciada em razão do local381, de forma a otimizar o cumprimento da norma legal iii) e que ainda, ao emitir o regulamento em causa cumpra os requisitos da identificação da lei que pretendem regular.

Aceitamos desta forma a possibilidade de emissão de regulamentos executivos ou complementares por parte do município – respeitando as exigências já enunciadas – sem que haja uma previsão autorizativa expressa na lei que se pretenda regular.382

Uma terceira questão que se coloca em sede de competências regulamentares

executivas, é o de saber se em caso de omissão regulamentar pode a Administração Central

381 Aqui não se refere aos interesses locais tais como referimos anteriormente, trata-se apenas de interesses que,

embora não sejam eminentemente locais, tenham relevância local.

382 No sentido de se admitir expressamente essa possibilidade às autarquias locais Rui Medeiros em anotação ao

artigo 241.º CRP; Cabral de Moncada admite tal possibilidade ainda que referindo-se apenas aos regulamentos do Governo; Ana Raquel Gonçalves Moniz também aceita tal possibilidade ainda que referindo-se à administração em geral. MIRANDA, Jorge, e Rui MEDEIROS. Constituição Portuguesa Anotada. Vol. III. Coimbra Editora, 2007, p.490; MONCADA, Luís S. Cabral de. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 1046. MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. “A Titularidade do Poder Regulamentar do Direito Administrativo Português.” Boletim da Faculdade de Direito, 2004, p.497 e 498.

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substituir-se ao município, suprindo assim a lacuna originada pela inação do poder local em causa.

Paulo Otero383 responde de forma afirmativa a essa possibilidade. Este autor em nome do princípio da supletividade do Direito do Estado que tem “como fundamento directo os

princípios constitucionais da unidade e soberania do Estado”384 defende que seja possível a aplicação do Direito do Estado sempre que esteja em causa :“( i ) preenchimento de espaços

de total vazio normativo decorrente da omissão ou inércia dos entes infra-estaduais na normação das suas matérias; (ii) integração de lacunas pontuais provenientes de entes infra- estaduais; (iii) definição de critérios de interpretação e princípios gerais de aplicação das normas originárias dos entes infra-estaduais. ”385 Este autor contudo restringe esta possibilidade aos casos em não esteja em causa “ uma área de reserva de competência

normativa”. 386

André Folque387também pronuncia-se favoravelmente a esta hipótese, pois “a tutela, por

si, não exclui, um controlo substitutivo”388 desde que estejamos perante um poder vinculado

por parte do município e essa intervenção obedecer ao princípio da necessidade.

O Tribunal Constitucional, por sua banda, tem respondido negativamente a esta hipótese, decidindo, nomeadamente, no acórdão n.º260/98 que: “ Ora, reconhecendo que os nºs 2 e 3

do actual artigo 242.º implicam a existência de formas sancionatórias de tutela de legalidade, maxime a dissolução, que afectam genericamente, e não apenas quanto a actos determinados, a autonomia das autarquias locais, deve considerar-se que a tutela substitutiva de legalidade está afastada pelo nº 1 do mesmo artigo”.

Por nossa parte consideramos que a luz do princípio constitucional da autonomia local, bem como pelo facto do artigo 242.º n.º 1 da CRP limitar qualquer tutela à verificação do

cumprimento da lei, parece que, mesmo em sede regulamentos executivos, onde em princípio

não estão em causa interesses eminentemente locais, admitir a possibilidade do Estado se substituir à competência normativa do município constituiria uma brecha à tutela

383 Cfr. OTERO, Paulo. A Legalidade e a Administração Pública. Coimbra: Almedina, 2003, p 868 e ss. 384 Idem, ibidem, cit. p. 868.

385 Idem, ibidem cit. p. 869.

386 Idem, ibidem, cit. p. 872 nota 438.

387 Cfr. FOLQUE, André. A Tutela Administrativa nas relações entre o Estado e os Municípios. Coimbra

Editora, 2004, p.378 e ss.

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constitucionalmente concedida ao poder local, brecha esta que a Constituição parece não aceitar. Sendo assim, a previsão de qualquer poder de substituição a favor do Estado seria de se afastar por ser inconstitucional.

Se até 2004 poder-se-ia objetar tal entendimento com a necessidade de haver um meio que pudesse permitir uma reação perante uma omissão regulamentar ilegal, a partir da reforma do Contencioso Administrativo de 2004 veio-se, pela primeira vez, prever um meio processual específico destinado a reagir contra omissões regulamentares ilegais (artigo 77.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), sendo que tanto o ator popular como o Ministério Público têm legitimidade ativa para o solicitar a declaração de ilegalidade por omissão.389

Contudo, tendo em conta a dimensão política da autonomia local, o tribunal terá que ter em conta que essa mesma dimensão pode implicar um direito de opção pela não regulamentação, e não apenas um direito pelo como regulamentar. Contudo aqui há de revelar-se fundamental, como critério a presidir a ponderação do tribunal – que terá sempre que ser casuística – , a imperatividade do comando que impõe a regulamentação autárquica, bem como os interesses em causa: se estão em questão interesses fundamentalmente da autarquia como ente autónomo, ou se pelo contrário está em causa interesses de terceiros, nomeadamente de particulares. Estando em causa estes últimos, há que concluir pela inexistência dessa dimensão política de optar por regulamentar ou não regulamentar.

3.1 Em especial: a relação entre regulamentos “emanados das autarquias de

grau superior ou das autoridades com poder tutelar”.

Uma outra questão pertinente é a levantada pela previsão que consta do artigo 241.º da CRP: “as autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da

Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar”. Ora em relação a primeira parte da norma – a relação do

poder regulamentar municipal com a lei e a Constituição – já nos referimos as suas principais implicações ao longo do presente trabalho. Trata-se agora de determinar qual o real alcance desse dever de obediência regulamentar do município aos regulamentos do órgão tutelar e das autarquias de grau superior.

A referida norma constitucional deve ser analisada juntamente com a limitação da tutela das autarquias locais apenas à verificação do cumprimento da lei – art.242.º da CRP. Ora,

389 Sendo certo que o Supremo Tribunal Administrativo tem-se mostrado muito relutante em decidir pela

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assim sendo, parece que não está em causa neste caso, uma questão de hierarquia entre regulamentos municipais, supramunicipais, regionais e governamentais – devendo os primeiros obedecer os últimos –, o problema deve ser analisado do ponto de vista das competências. Assim, estando em causa competências próprias dos municípios não existe qualquer dever especial de respeito do regulamento municipal versus regulamento de grau

superior, conclusão diferente seria permitir o exercício de poderes de tutela de mérito que

como vimos não é possível por imposição constitucional.

Situação diferente acontece quando, na sequência de competências/atribuições próprias do Governo, este emite um regulamento sobre uma matéria que é posteriormente alvo também, de um regulamento municipal. Nestes casos é o próprio princípio da legalidade que impõe o respeito por parte do município do anterior regulamento governamental (ou supramunicipal), pois qualquer normação inovatória por parte de um município na matéria em causa – de competência governamental – resultaria no vício de incompetência absoluta, e consequente nulidade, pois estaria a extravasar as suas atribuições (i.e.“…os interesses próprios das

populações respetivas.” art. 235.ºn.º2 in fine da CRP).

Contudo resta então descortinar o sentido do art. 241.º da CRP in fine. Seguindo a posição de Sérvulo Correia defendemos o dever de respeito aos regulamentos, nomeadamente do Governo, se limita à normas administrativas que visam regulamentar leis que possam “servir

de instrumento à tutela exercida por este órgão de soberania”.390

390 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratula nos Contratos Administrativos.

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CAPÍTULO V