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7.1 CATEGORIAS A PRIORI

7.1.2 Eu-Isso

7.1.2.2 A autoridade na relação treinador-atleta

A autoridade do treinador surge também como um componente importante da relação com o atleta, no sentido de o primeiro centralizar sob a sua responsabilidade a maior parte das decisões dos treinamentos e competições. Apesar do treinador aparecer como a figura de autoridade na relação, é importante, no entanto, pensar nas forças que permeiam o vínculo formado pelos dois atores, onde poderão surgir elementos como coerção, poder, influência e prestígio, em uma disputa bilateral. Assim, é comum o aparecimento de conflitos e enfrentamentos entre treinador e atleta em decorrência de uma disputa de poder que dá a vitória, quase sempre, ao primeiro. A autoridade outorgada ao treinador permite que o comando das mais diversas

situações esteja em suas mãos, o que não invalida a capacidade do atleta de usar recursos para ter o controle em determinados momentos.

Para Stirling e Kerr (2009) o poder do treinador sobre seus atletas pode estar baseado na sua autoridade para tomar decisões e para recompensar e punir, bem como no seu conhecimento técnico e nos sucessos do passado. Consequentemente, atletas em busca de performance e resultados acabam por permitir esta condição na medida em que o conhecimento especializado e as habilidades dominadas pelo treinador são necessários para a melhora do desempenho.

Assim, os depoimentos dos entrevistados mostram como a autoridade do treinador pode se revelar nas mais variadas situações. A fala do treinador 2 exemplifica como os questionamentos em relação aos treinamentos podem ser recebidos quando não são bem fundamentados: “daí eu reajo com um certo vigor assim, eu digo não e pronto, não discuto. Aí a autoridade é minha e acabou”. O treinador 6, na mesma direção, diz que ao ser questionado “no início eu dou uma empurradinha pra ver se ele tá firme mesmo, porque o atleta, às vezes, ele quer dar uma curva, principalmente do alto rendimento, porque dói, eles são o rei da curva, se eles puderem encurtar o caminho, eles dão uma encurtadinha, primeiro eu dou uma porrada para ver se ele quer encurtar, daí se ele se argumenta com fundamento, aí vamos sentar, vamos ver, porque a maior contribuição que tu vai dar no treinamento é pro próprio atleta”. O treinador ainda diz que “eu reajo bem quando ele é do meu nível, quando é um piazinho, ah o que é isso? Não sabe p.... nenhuma, estuda? Quantos livros sobre treinamento tu leu? Ah não li nenhum ainda, p... então faz o treinamento velho”. A partir dos depoimentos percebe-se que o treinador usa da sua autoridade para tomar as principais decisões do treinamento, podendo em alguns momentos ouvir as contribuições do atleta. Ao dizer que “e muitas vezes também eu já respondo, sei que eu tô certa e não abro mão, porque eu sei que eu tô certa, eu já refleti e vi também que eu não errei”, a treinadora 3 confirma esta ideia de que em muitas situações a definição de elementos que compõem o treinamento fica, incontestavelmente, sob o seu controle.“Nessas horas não, vai ser do meu jeito e ponto, não é uma... não chega a ter um desgaste da relação, é simplesmente eu coloco um ponto e limite, afirma o treinador 4 mostrando também que os limites da liberdade do atleta se manifestar são impostos por ele. O treinador continua dizendo: “eu sou bem flexível, daí eu, eu tiver, se eu ver que ele tá certo em algum ponto eu vou mudar, eu vou ter paciência de explicar o porquê e as razões de a gente tá fazendo

esse treinamento, agora se for na hora do treino, que às vezes acontece, pessoal, aquece, coloca a sapatilha no pé, quando vai largar levanta e pergunta porque que a gente tá fazendo isso? Aí eu sinto muito, não tem, primeiro tu vai fazer aí, depois a gente conversa. [...] “Eu ouço bastante, eu peço sugestões, mas eu tenho, hã... uns limites pra dizer que, ó, até aqui tu pode ir, a partir daqui é comigo, né?”Percebe-se que, embora haja algum espaço para questionamentos ou a colaboração do atleta em questões relacionadas ao treinamento, em última análise é o treinador que define como e quando isto ocorrerá. A fala do treinador 5 complementa esta ideia, onde este deixa claro que ou o atleta faz o que está sendo proposto por ele, ou pode procurar outro lugar para treinar: “eu tenho a minha maneira, que é mutável, né? Porque eu também vou aprendendo, todo dia eu aprendo, mas a minha maneira não quer dizer que, dizer que é melhor e tem que impor, se tu quiser fazer a coisa aqui dentro é dessa forma, se não quiser tá aberta a porta pra ir pra outro lado ou então não vai aproveitar o máximo que eu posso te dar, né?”

A análise da relação treinador-atleta sob o ponto de vista do Eu-Isso traz à tona um tema que merece atenção, no sentido de entender que poderá existir uma linha muito tênue que separa o treinador autoridade do treinador autoritário. Certamente a autoridade do treinador é extremamente importante para o atleta, contribuindo para sua performance e segurança. Entretanto, os depoimentos dos entrevistados revelam que os treinadores, em alguns momentos, mostram atitudes prepotentes e autoritárias, distanciando-se de um diálogo com o atleta. Com objetivos e metas de desempenho estabelecidos, o espaço que o treinador abre para a escuta pode tornar- se exíguo. Buber (2006, p.79) aponta para esta lógica, quando questiona o que poderá acontecer “se a missão de um homem exige que ele só conheça o vínculo com sua causa, e então desconheça qualquer relação atual com um Tu e a presentificação do Tu, de modo que tudo aquilo que o envolve se tome um Isso, um Isso útil à sua causa?” Assim, ao utilizar a autoridade concedida à sua posição, o treinador poderá ultrapassar esta linha tênue e, por trás do argumento de que persegue o resultado, justificar sua atitude autoritária, vendo no atleta apenas este Isso útil aos seus objetivos.

É interessante, por outro lado, observar como os atletas percebem esta autoridade do treinador. Ao dizer que “ele abre espaço, é claro que a gente tem que saber a autoridade que ele tem”, o atleta 6 mostra que compreende os limites estabelecidos na relação com o treinador, entendendo que este espaço a que se

refere possui um limiar já definido que determina até onde é permitido chegar. Da mesma forma, o atleta 4 revela em sua fala que a autoridade do treinador é necessária para um bom desempenho: “é, precisa, senão a gente vai começar a fazer tudo que é fácil, e o fácil não vai dar resultado”. Parece que, em nome da excelência da performance, os atletas entrevistados entendem como natural a autoridade do treinador, evitando até mesmo uma tentativa de apresentar o seu ponto de vista, como mostra a fala do atleta 5: “...tudo tem que ser visto numa ótica que tipo...eu tenho que ir melhor, eu tenho que ganhar e deu, entendeu? [...] Não adianta eu contrariar a versão, a, a opinião dele, por que isso não vai...não constrói nada, entendeu? Então eu vejo mais por essa...por esse lado”. Na mesma linha, a atleta 1 afirma que “[...] a gente conversou bastante entendeu? Mas aí ele botou isso na cabeça dele e fui tentar...”, relatando uma situação de luta em que o treinador determinou qual o golpe deveria ser feito. Além disto, é possível que, na lógica da busca pelo resultado, os atletas considerem normal um tom autoritário do treinador, o que não significa que esta atitude não afetará a relação. “Ele é muito autoritário também, então ele quer ter o controle de tudo, então isso com certeza interfere diretamente, entendeu?”, diz o atleta 6, referindo-se a como este comportamento do treinador poderá abalar a relação entre os dois. Em sua posição de autoridade, o treinador pode sentir-se à vontade para controlar aspectos relacionados ao treinamento, bem como outras questões da vida do atleta. [...] Se eu deixo de falar alguma coisa pra ele, de comunicar e ele fica sabendo pelos outros, ou ele fica sabendo depois, ou... isso aí já gera um stress que cada vez vai aumentando e ele quer ter sempre o controle disso...”, comenta o atleta 6, mostrando como esta posição do treinador ultrapassa, em muitos momentos, os limites do esporte.

A autoridade do treinador vista pelo prisma do Eu-Isso foge à ideia de uma relação onde os dois participantes percebem-se como iguais, predominando a noção de que não existe um reconhecimento mútuo. Parece claro, sob este enfoque, que treinador e atleta não se veem como semelhantes, ou como afirma Zuben (2006, p.26), com “disponibilidade para o encontro com o outro”, mas sim como personagens ocupando lugares hierárquicos diferentes dentro da relação, enfrentando a dualidade.

Sobre a perspectiva do Eu-Isso, o autor (p.24) ainda diz que “a experiência estabelece um contato na estrutura do relacionamento, de certo modo unidirecional entre um Eu, ser egótico, e um objeto manipulável”. Assim, o papel deste ser egótico, que enfrenta outro que não considera seu igual, pode ser atribuído tanto ao treinador,

quanto ao atleta, embora este ocupe, na maioria das vezes, o lugar do objeto manipulável. O depoimento do treinador 5 traz esta ideia, ao dizer que “é assim na esgrima, assim como qualquer esporte, o técnico, o mestre d'armas, ele é muito egocêntrico”. A autoridade exercida pelo treinador pode passar por essa noção do ser egótico, onde este se vê como figura indispensável e insubstituível, amparado por suas capacidades e pela sua trajetória de conquistas profissionais. A fala do treinador 4 mostra como ele percebe sua competência de enxergar coisas que o atleta não é capaz, justificando sua postura: “a gente sempre quer mais que os atletas, eu tento me policiar nisso, mais se eu me policiar eu deixo de ser treinador, né? Porque eu vejo o que ele não consegue ver...”. Na mesma direção, o treinador 7 se vê como uma referência em função de resultados obtidos, enfatizando sua competência profissional ao dizer que “veja assim, vamos pra uma visão fria, eu sou um treinador, que tem uma trajetória aí, que tem alguns atletas medalhistas olímpicos e medalhistas em campeonato mundial. Então eu já, não que eu já tô deitado na cama, mas eles, eu, eu, eu já... eu já tenho, já não preciso provar nada, todo mundo que vem treinar comigo no Brasil inteiro sabe que, vem treinar porque sabe que eu, que eu sou uma referência...”.

Por outro lado, em determinados momentos a autoridade do treinador pode ficar limitada, passando o papel de ser egótico ao atleta, que terá o domínio da situação. A fala do atleta 5 evidencia como o treinador terá que adaptar-se ao temperamento do atleta, determinando como a relação com ele será estabelecida: “o mais interessante é...porque a relação que tu tem com o teu treinador não pode ser, não, não...muitas vezes, que é quase nunca é a mesma que o teu colega tem com ele, vocês treinam no mesmo lugar, no mesmo horário, né? Porque o temperamento de cada atleta é diferente. E às vezes o temperamento de cada atleta na pista é mais diferente ainda, entendeu? Então tudo é questão de relação e...isso vai se adaptando e muda sempre, o tempo inteiro”. O depoimento do entrevistado mostra que, mesmo representando a figura de autoridade na relação, o treinador terá que fazer constantes adaptações para manter a relação com o atleta. Além disso, o mesmo atleta diz que “então se tu não gosta de uma certa postura do treinador durante a competição tu chega pra ele e diz: cara, tu é um idiota, tu tem que falar para ele, tu tá fazendo isso aqui errado, eu não me sinto bem assim, assim, assado”, mostrando que numa relação Eu-Isso o Eu egótico estará também representado pelo atleta. Ao falar do atleta, o treinador 4 afirma que “porque existe isso, é um cara assim, as coisas têm que ser na

hora que ele quer, ele é muito imediatista”, revelando como a lógica do modo unidirecional do Eu egótico e do objeto manipulável poderá se inverter na relação Eu- Isso. O treinador 7 completa esta ideia dizendo que o esporte “é um ambiente hostil, é um ambiente de profunda disputa e o atleta, se ele não tiver um ego gigante e não tiver uma personalidade, e não tiver um controle emocional gigante ele não vai chegar”.

Para Buber (2006, p.76), o Eu da palavra-princípio Eu-Isso representa o ser egótico, aquele que se relaciona consigo mesmo ou que entra em relação com o seu si-mesmo “e toma consciência de si como sujeito (de experiência e de utilização)”. Portanto, parece claro nas falas dos entrevistados que esta relação consigo mesmo, de ser egótico, estará representada tanto pelo treinador quanto pelo atleta ao contrapor-se ao outro, procurando, segundo Buber (2006, p.77), por meio da experiência e da utilização, “apoderar-se do máximo que lhe é possível”. Isto posto, nota-se que o treinador terá possibilidades de apoderar-se de tudo o que o atleta poderá lhe dar em termos de resultados e projeção profissional, o que não invalida a situação contrária, em que o atleta esgotará todas as oportunidades de utilização do conhecimento técnico do treinador. O sujeito da forma como se reconhece, conforme assegura Buber (2006, p.77), é capaz de apropriar-se de tudo o que quiser, não obtendo substância alguma e permanecendo “como um ponto funcional, o experimentador, o utilizador, e nada mais”.