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A magnitude da relação treinador-atleta está diretamente relacionada à quantidade de papéis que o primeiro representa. A figura do treinador tem tamanha importância na vida esportiva e pessoal do atleta, que não se limita apenas a garantir a qualidade do seu desempenho nos treinos e nas competições. O treinador é professor, cuidador, motivador, líder, conselheiro, confidente, protetor, nutricionista, médico, psicólogo, podendo acumular mais uma ampla gama de funções na sua relação com o atleta. No entanto, ao mesmo tempo pode também ser inflexível, intransigente, implacável, rígido, agressivo, cruel e intolerante. Assim, embora a primeira função do treinador seja a orientação para a melhora de habilidades esportivas, existem expectativas depositadas na sua personalidade e nas suas atitudes que envolverão competências que terão o mesmo grau de importância para o sucesso do atleta.

Com o papel de mestre e guia, o treinador tem importância substancial na vida do atleta, que parece criar um laço vital com este. Em muitos casos, um simples olhar, ou apenas a presença do treinador já é suficiente para que o atleta se sinta seguro e confiante em sua performance. O tenista Gustavo Kuerten, em sua biografia, descreve esta cumplicidade existente entre treinador e atleta ao relatar uma troca de olhares com Larri Passos, seu treinador, no final do jogo que o classificou para as semi-finais do Torneio de Roland Garros, uma das mais tradicionais e importantes competições do tênis internacional:

Enquanto guardava minha raquete na bolsa, olhei de novo para o lugar em que meu pessoal ficava. Larri estava arrebatado. [...]. Caminhando para sair da quadra, tentando compreender o episódio, olhei mais vez para ele e ele olhou para mim. Nessa troca de olhares, sem nenhuma palavra ou gesto, eu entendi. Sem margem para dúvida, nascia ali entre nós a convicção de que o título de Roland Garros seria nosso (KUERTEN, 2014, p. 26).

Nas palavras do tenista percebe-se a importância da figura do treinador para o atleta, onde o vínculo que é criado dispensa o uso de palavras para a comunicação, deixando claro a existência de uma intensa coparticipação. Outro ponto importante da fala de Kuerten (2014) é quando este se refere ao título como “nosso”, reconhecendo que sua trajetória como atleta está inegavelmente atrelada à presença do treinador. O atleta, portanto, certifica que suas vitórias são também do seu treinador e confirma

a relevância desta personalidade ao longo de todo o seu percurso. Com isso, entende- se o treinador como aquela pessoa capaz de compreender o atleta em todo o seu potencial e nas suas dificuldades, o que nem sempre o fará afável, acolhedor e cúmplice do atleta. Em outra passagem da biografia de Gustavo Kuerten, o tenista narra suas dificuldades em alguns treinamentos e de como seu treinador Larri tornava- se exigente:

Tinha dia que simplesmente não dava, parecia que as pernas sumiam e o braço esfarelava. Quando via que eu estava amolecendo, Larri endurecia. Mais de uma vez, cansado de tanto repetir o golpe, fiz menção de parar. - Aonde tu pensa que vai? – Larri me interceptava.

- Não aguento mais. Vou descansar um pouco.

- Não acabou. Volta lá e só pensa em sentar quando acertar tudo.

[...]. Se percebesse que eu não estava me dedicando como deveria, Larri chegava a me colocar para fora da quadra por uns minutos como advertência. [...]. Numa das vezes em que fiz corpo mole, Larri me deixou do lado de fora até o fim do treino. Detestei aquilo. Eu nem sempre entendia a mensagem que ele queria passar, mas, dessa vez, ela foi clara (KUERTEN, 2014, p. 117- 118).

O treinador ora amado, ora odiado, complacente e afetuoso e ao mesmo tempo exigente e severo, torna-se muitas vezes, no alto rendimento, a personalidade central da vida do atleta, tendo mais influência que os pais, a família e os amigos. Normalmente, o contato diário do treinador e do atleta ultrapassa, em muito, o tempo dedicado às pessoas mais próximas. Portanto, partindo da premissa de que o trabalho do treinador não está limitado à técnica, torna-se fundamental pensar em como a sua práxis estará fortemente impregnada da sua identidade e personalidade e de como os diferentes papeis que atua na sua relação com o atleta podem ter diferentes desdobramentos.

Neste sentido, um importante tema a ser abordado nesta discussão é a formação do treinador, onde se assinalam alguns elementos para reflexão. Normalmente, o treinador tem na sua experiência como atleta a base de seus conhecimentos e os subsídios técnicos para sua ação profissional, usando sua trajetória esportiva para o desenvolvimento das competências específicas do ofício. Entretanto, parece conveniente ressaltar que o fato de ter sido atleta e ser capaz de dominar técnicas de uma modalidade esportiva não irá garantir que outros aspectos relacionados ao exercício da profissão sejam apreendidos.

Assim, métodos e atitudes observados ao longo da carreira como atleta acabam sendo reproduzidos, fazendo com que a formação inicial do treinador esteja sustentada em uma aprendizagem informal, adquirida por meio da prática como

esportista. Nesta lógica, Cavazini (2012) afirma que as experiências vivenciadas e os resultados obtidos ainda como atletas tornam-se elementos importantes para o processo de formação de treinadores e podem ser uma forma de acúmulo de prestígio. A reputação de um atleta com grande destaque pode, muitas vezes, permitir seu acesso ao campo profissional sem a exigência de uma instrução formalizada, sendo a sua fama e o seu sucesso as justificativas que sustentam sua permanência na atividade. Assim, os títulos e as conquistas esportivas podem abrir caminho para o ingresso na profissão, mesmo que outras bases de conhecimento, também importantes e necessárias, não estejam consolidadas. O que se vê, frequentemente, é a repetição de modelos de treinos, técnicas e metodologias de trabalho, sem, muitas vezes, haver um entendimento destes processos.

Corroborando as ideias, Becker Jr. (2000, p.84) reitera que existe grande número de atletas que “[...] quando sentem que se aproxima o final de sua carreira, pensam na possibilidade de seguir no mesmo esporte, na condição de treinador”. O autor adverte para critérios usados por dirigentes na seleção de pessoas para trabalhar com o esporte infantil, trazendo uma importante reflexão acerca da formação de treinadores esportivos, visto que dimensões sociais e pedagógicas podem fugir deste tipo de instrução informal, centrada no alto rendimento e nos resultados.

A confiança atribuída ao treinador, segundo Marques e Kuroda (2000, p.132), refere-se às experiências adquiridas e ao conhecimento de técnicas, no entanto quando suas ações são pautadas unicamente na sua experiência anterior, “[...] tende a reproduzir o modelo que lhe foi ensinado [...]” o que pode acabar desconsiderando as particularidades dos atletas. Para os autores (p.132), a função do treinador “[...] vai além da simples reprodução de um modelo preconcebido”, uma vez que deve contribuir para a “[...] formação de indivíduos não apenas em relação aos conhecimentos adquiridos, como também para a realização do aluno/atleta como ser humano, preparando-o para enfrentar os desafios impostos pela sociedade”. Assim, segundo Marques e Kuroda (2000), esta formação só poderá ser realmente efetiva se houver algo a mais do que a simples transmissão de conhecimentos técnicos e científicos, capacitando para a orientação do atleta para além da prática esportiva.

Bento (2006c, p. 30) traz alguns questionamentos interessantes sobre a formação do treinador e as competências pedagógicas necessárias em seu campo de atuação, oferecendo alguns aspectos relevantes para ponderação:

De quais competências deve dispor um treinador para agir de maneira pedagogicamente responsável? Como se formam tais competências? Quais são os pilares que sustentam a sua deontologia profissional? Têm mais sucesso no desporto os treinadores pedagogicamente qualificados? Ou, pelo contrário, a qualificação pedagógica não desempenha qualquer papel? O que pensam do seu papel pedagógico os treinadores? O que dificulta que o treinador assuma a sua função de pedagogo? Como é a relação pedagógica entre treinador e atletas? Que noções de criança e de homem, de educação e desenvolvimento têm os treinadores? Como veem o papel do desporto no tocante a estas noções? [...] Como deverá ser um programa de formação pedagógica dos treinadores?

Portanto, ainda para Bento (2006c), o desporto deve ser visto com preocupação, uma vez que o nível de formação daqueles que o dirigem, organizam e realizam deve ser atendido. Para o autor, muitas vezes existe enorme disparidade entre a formação apresentada e a competência requerida. Assim, Bento (2006c, p.30) considera que o treinador irá transportar para as situações de treino e competição não apenas competências técnicas ou táticas, mas a “[...] versão individual da formação requerida para o desempenho das respectivas funções”. Segue dizendo, ainda, que a formação do treinador, centrada em competências sociais, culturais, pedagógicas e metodológicas permite que este se apresente perante os outros sujeitos intervenientes no seu campo profissional, defendendo a construção de “[...] uma prática culminada e responsabilizada pela teoria, uma prática iluminada e inundada por princípios e valores teóricos, espirituais, éticos e morais” (BENTO, 2006c, p.31).

Nesta direção, Moraes e Medeiros Filho (2009) apresentam algumas variáveis que influenciam os treinadores na função de desenvolver o desempenho de seus atletas, baseados no modelo do treinador, proposto por Côte et al em 1995. Para Moraes e Medeiros Filho (2009) três componentes devem ser considerados como elementos centrais deste modelo, relacionados à parte técnica e tática, onde estão situados a organização, o treinamento e a competição. Nestes componentes percebe- se que estão envolvidas as questões puramente técnicas e específicas do esporte, onde o conhecimento dos treinadores aparece como elemento fundamental para estabelecer a correta condição dos treinamentos, o ensino de habilidades e a ajuda para a obtenção dos máximos desempenhos em competições. No entanto, dentro do modelo também aparecem as características pessoais dos atletas, as características pessoais dos treinadores e fatores contextuais. Assim, influências familiares e culturais da personalidade do treinador, associadas às qualidades pessoais dos atletas e aos fatores contextuais, como os pais e as condições financeiras, podem ser

elementos que irão definir o sucesso e o perfil do treinador, colocando-o ou não em uma definição de treinador ideal.

Além disto, Moraes e Medeiros Filho (2009) enfatizam que o treinador com uma abordagem humanista nas orientações, que considera as características pessoais dos atletas para a organização das sessões de treino e no estabelecimento de metas, dando suporte emocional e superando restrições motivacionais, tem mais chance de atingir altos desempenhos.

Deste modo, definir um treinador ideal pode ser uma empreitada fracassada se houver a tentativa de se padronizar atitudes, qualidades e características inerentes ao que se considera modelo para um profissional de sucesso. É preciso, pois, pensar nesta definição dentro de um quadro específico que delimita as modalidades esportivas com suas particularidades, níveis de exigência e competências, bem como a própria personalidade e temperamento dos treinadores e atletas envolvidos. Assim, balizar um modelo ótimo, elencando os comportamentos, as qualidades e as atitudes esperadas não permite uma visão singular e unificada, uma vez que muitos elementos intervenientes podem influenciar a fixação de uma gênese do treinador ideal. Entretanto, algumas características podem servir como referência a todos os treinadores, independentemente do nível de exigência de desempenho, modalidade esportiva ou faixa etária dos atletas.