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A Avaliação Escolar e a Reprodução Social

8. Entre a Escola e o Lar: O Ensino e a Aprendizagem na Escola

8.2. A Avaliação Escolar e a Reprodução Social

O seminário correspondente a este tópico do programa será iniciado com a discussão de dois trechos de investigadores que dedicaram as suas vidas a estudar a reprodução social: um de Pierre Bourdieu; outro de Raul Iturra.

Texto 1

“O sistema de ensino reproduz tanto mais perfeitamente as estruturas de distribuição do capital cultural entre as classes (e entre fracções de uma classe) quanto mais a cultura que transmite estiver próxima da cultura dominante, e quanto menos afastado do modo de inculcação familiar estiver o seu próprio modo de inculcação. Por operar no quadro de uma relação de comunicação, e através dela, a acção pedagógica que pretende inculcar a cultura dominante pode, de facto, escapar (mesmo que só em parte) às leis gerais da transmissão cultural, de acordo com as quais a apropriação da cultura proposta ( e consequentemente o sucesso da aprendizagem, que é sancionado pelo diploma académico) depende da posse prévia dos instrumentos de apropriação; mas só

poderá consegui-lo na medida em que, explícita e deliberadamente, forneça em meio do próprio processo de comunicação os instrumentos indispensáveis ao êxito da comunicação, os quais, numa sociedade dividida em classes, estão distribuídos de forma muito desigual pelos filhos […]” (Bourdieu, 1982: 333).

Texto 2

“Portugal parece constituir um laboratório sui generis para a investigação acerca dos processos de ensino/aprendizagem. Desde logo, esta especificidade é atestada se considerarmos o facto de, em termos comparativos, o país se destacar por ter sido dos primeiros na Europa a criar legislação sobre a obrigatoriedade da escolarização (1835) e dos últimos, senão mesmo o último, a atingir taxas de frequência escolar acima dos 90% no primeiro ciclo de escolaridade básica (anos 80). Portugal apresenta igualmente elevadas taxas de analfabetismo (10,2% em 1997) e, de acordo com estudos recentes nacionais (Benavente, 1996) e internacionais (OCDE, 2000), elevados níveis de literacia. Isto leva a concluir que largas camadas da população têm mantido com a escola e os saberes escolares relações marcadas por estratégias de resistência ou de mera credencialização. Apesar de tudo isto, o país tem-se modernizado de forma tão vertiginosa quanto contraditória nas últimas duas décadas” (Iturra, 2004)50.

A disciplina de Antropologia da Educação deverá alertar e sensibilizar professores, agentes educativos, políticos e sociedade civil para a necessidade de construção de pedagogias devidamente contextualizadas, capazes de permitir o sucesso escolar para todos.

A questão do desencontro entre a vida na escola e a escola da vida não é só motivacional, é também cognitiva. É facto que Bernstein refere que não há nada num dialecto enquanto tal que não permita que a criança interiorize e aprenda o uso dos significados universalistas. Diz-se que a criança não está é à vontade no mundo educativo: "Se a professora tem de dizer continuadamente, «repete lá isso, minha querida; não compreendi», a criança pode acabar por não dizer nada" (Bernstein, 1982: 29). Mas o problema da hecatombe de algumas crianças no processo educativo escolar, não é só da motivação que está ausente quando presentes num contexto estranho. Está também na uniformidade do próprio contexto escolar - monolítico e monocultural.

O objectivo da educação escolar estatal é, segundo Raul Iturra, o de igualar: “Como igualar? Educando. Pelo menos um mínimo: as regras dos signos, a sequência do

discurso escrito, os elementos primários do cálculo, a verdade oficial que dá louvor aos indivíduos desta nação sobre os das outras nações. A escola vem mostrar uma verdade que é evidente porque está escrita e leva a licença do Estado e as ideias dos seus gestores – em conjunto, um novo rei […] No entanto, o saber da escola acaba por não integrar tudo o que é preciso para reproduzir a vida em matéria do saber. E como a educação não é matéria sobre a qual se possa pronunciar facilmente o povo que a consome, acaba por não se saber para que é que serve o estudo e por se pensar que a dificuldade em avançar que demonstram as crianças, provem da sua culpa individual, a sua incapacidade. Um outro efeito, ainda, é o de silenciar o discurso quotidiano e conjuntural das pessoas que, em sabendo que há um saber bom que não se conhece e outro mau que se tem, acabam por calar enquanto alguém letrado não fale em sua representação”. (Iturra, 1990a: 23).

É portanto a escola que deverá mudar. É verdade que Ana Maria Domingues, et alii, na obra que organizaram sobre a teoria de Bernstein, dizem que "as crianças da classe trabalhadora mais baixa estão em crucial desvantagem, o que não significa que crianças, famílias e comunidades devam ser vistas como sistemas deficitários patológicos e as suas formas de consciência como patológicas ou, no melhor dos casos irrelevantes" (1986: 8). Mas há que ir um pouco mais longe com a mudança da escola e a formação de professores, para que se construam pontes com os diversos contextos de aprendizagem que não podem ser reduzidos e classificados apenas de produtores de códigos linguísticos restritos. Eles são também muito heterogéneos e multiculturais, logo, não passíveis de se reduzirem a uma única sintaxe e categoria de pensamento oposta à da cultura dominante veiculada pela escola. A escola tem assim que enveredar por um processo educativo intercultural, e Bernstein não me parece tirar esta conclusão, muito embora, nos seus trabalhos mais recentes, já não defenda a relação directa que tinha estabelecido entre a classe social "de quem fala e os códigos que emprega" (Stubbs, 1987: 70).

Os professores não estão treinados para entender a mente cultural quer de alguns alunos quer de alguns pais. Daí a importância da Antropologia da Educação na formação de

professores como tenho defendido em vários textos51.

O currículo operacional deverá ser sempre, possivelmente, e ainda que paradoxalmente, um currículo oculto52, não o prescrito e desejável, único para todos. Romper com o currículo formal e oficial, proposto à priori, não pode ser, de modo algum, usando um outro, aquele que deriva das práticas e da memória da escola vivida pelo professor enquanto aluno, que é autista e monocultural, que nada tem de construção e reajustamento à realidade educativa, mas, pelo contrário, com a reprodução do que o docente entende ser importante: o saber que o enformou, formou e ensinou a pensar. O currículo escolar pretende socializar o individuo (ou ressocializar?) com conteúdos e metodologias que em nada lhe são familiares, que dificilmente consegue imaginar, e que, naqueles em que produz resultados escolares de sucesso, lhes apaga a memória de origem, a mente cultural (Iturra, passim) e lhes aponta o caminho da abstracção e da descontextualização e a separação entre estudar e trabalhar: “o sucesso individual nos estudos representa para o jovem o distanciamento progressivo da sua realidade de origem – a comunidade rural – e a sua integração gradual num mundo diferente, o mundo urbano, onde trabalho intelectual e manual não se misturam” (Freire, 1983: 86). Os alunos em que o processo educativo não produz os resultados idealizados pelo currículo estatal voltam ao trabalho da terra53, à sua comunidade de origem, à procura do sucesso social num saber local onde a aprendizagem não necessite de ensino especialmente descontextualizado dos seus hábitos incorporados.

Mais que reformas curriculares, pensamos que a mudança passa essencialmente pelo papel do professor na mediação entre os saberes e culturas várias dos alunos que tem pela frente com o conhecimento científico que a escola pretende ensinar.