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7. Entre a Escola e o Lar: A Aprendizagem no Lar

7.1. Os Saberes da Infância

Começa-se por explorar o livro coordenado por Raul Iturra (1996) com textos de Raul Iturra, Amélia Frazão Moreira, Filipe Reis, Paulo Raposo e Ricardo Vieira, a propósito dos diferentes saberes que os diferentes contextos culturais ensinam às crianças.

Discute-se, em seguida, o conceito de infância. A infância é uma construção social que emerge a partir do Renascimento e que se vai consolidando com o século das Luzes (cf. Ariès).

Várias questões / perguntas:

Há uma infância ou várias infâncias? Diferentes crianças? Diferentes “escolas” da infância? Diferentes estilos cognitivos, consoante a proveniência cultural da criança? Diferentes preparações para acesso à cultura hegemónica do estado e cultura dominante? Uma epistemologia / versus a epistemologia dos adultos? Ou várias epistemologias nas crianças?

Há, talvez, infâncias diferentes dentro duma infância global, umas mais em desigualdade que outras como alicerces dum futuro de sucesso.

De acordo com Raul Iturra (2002: 136) “falar de epistemologia da infância acaba por ser um problema duplo: o problema da epistemologia como conceito que procura definir ou explicar a lógica das relações sociais; e o da infância, como processo de relações sociais de épocas conjunturais da vida de um ser humano em qualquer grupo social, cultura, hierarquia ou em qualquer classe social”. Mas ainda que vivendo infâncias diferenciadas no espaço e no tempo e sempre de forma heterogénea, a criança tem sempre

um conhecimento cultural com o qual observa o mundo que a rodeia. “O que a criança não tem é palavras para explicitar o que entende à sua medida em pequena. Mas sabe aplicar esse conhecimento, primeiro nas suas brincadeiras e, num dia mais tarde, no trabalho que vai necessitar para sustentar o seu lar, para poder, ou procurar, melhorar a sua economia. Economia tal e qual definiu Aristóteles: o trabalho em conjunto de todos os membros do lar, de cada um conforme a sua possibilidade, para cada um conforme a sua necessidade.” (Iturra, 2002: 151).

Aborda-se, de seguida, a ideia das trajectórias sociais e da recuperação constante da infância em cada presente etnográfico.

a. A ideia da biografia, da entrevista etnobiográfica, da história de vida que leva a um recuperar da infância como modelo e tempo vivido que em muito é responsável pelas atitudes da adultez (cf. Vieira, 1996).

b. A questão de saber se a infância que vive dentro de nós, através da memória, se é anulada e recuperada apenas na racionalização das práticas ou, se, pelo contrário, há coexistência de vários eus dentro de nós, sendo que um deles é a criança que pode, eventualmente, nunca morrer.

Discussão sobre o que a brincadeira ensina e sobre a ideia do trabalho infantil e da brincadeira – os vários pontos de vista: ético e émico.

A propósito de semelhanças e diferenças entre crianças, reflecte-se sobre o binómio campo-cidade, que é um modelo simples mas que ajuda a pensar comparativamente.

Semelhanças no fazer e ser Criança

Prazer desinteressado das tarefas e actividades realizadas; Ludicidade;

Interculturalidade (linguagem comum? Epistemologia comum para além da verbalização?). De facto as crianças entendem-se e funcionam bem em grupo. Se forem provenientes de países com línguas diferentes, as crianças encontram, mesmo assim, outras formas de se comunicar, para além do domínio comum de uma mesma língua.

Com o crescimento, parece que é o domínio comum ou não da gramática escolar que é vital para continuarem ou não a comunicar interculturalmente. É como se a escola destruísse esse know-how to live bettween different cultures e precisasse, mais tarde, de o voltar a recuperar com projectos como “educação intercultural”

Que sabe fazer a criança? Antes de mais, a criança sabe aprender e desenvolver o seu imaginário perante a materialidade da vida. Saberá ser criança. Isto se os adultos a deixarem ser, se não a forçarem a subir a escada da vida de uma só vez, obrigando-a a ser adulta desde que começa a poder fisicamente colaborar nos trabalhos domésticos.

É na rua e no quintal, com os amigos, que muitas crianças são criança. Aí é ela própria. Na sala de aulas, prestando prova à atenção dos adultos, e tantas vezes submetida à pedagogia do silêncio, não passa de um boneco de cartão (cf. Vieira, 1992).

Fora do espaço e lógica escolares, as crianças são rainhas e reis do seu tempo e do seu espaço, ambas aproveitadas de forma organizada pelo jogo, actividade que cimenta a sociedade infantil, já que “pelo jogo a criança conquista, pela primeira vez, a autonomia, a personalidade e até os esquemas práticos de que a actividade adulta terá necessidade” (Chateau, 1975: 29).

O tempo da infância acaba por ser um espaço onde se forjam saberes, um espaço cheio de significados e construções sociais. Através do contacto com a areia, com a água, com a natureza, com os brinquedos, com o jogo, etc. a criança vive situações privilegiadas de interacção e de desenvolvimento social. Trata-se de um desenvolvimento social e também de um desenvolvimento de aptidões: da atenção, da concentração, da impulsividade, da reflexividade e, ainda, como nos referem Iturra e Reis, “ O jogo desenvolve aptidões que passam por fora das categoria abrangentes e oficiais, e organizam um saber de vários degraus que começa na repetição do real e acaba na abstracção […] O jogo é, enfim, a estrutura onde se forma e se constrói o saber local”. ( Iturra e Reis, 1990: 30 e 31).

Como diz Manuel Sarmento, “a questão fundamental no estudo das culturas da infância é a interpretação da sua autonomia, relativamente aos adultos. Com efeito, há muito que se vem estabelecendo a ideia de que as crianças realizam processos de significação e estabelecem modos de monitorização da acção que são específicos e genuínos. O

«mundo da fantasia» das crianças constitui, na expressão vulgar dos adultos, o reconhecimento, no senso comum, dos modos de construção de significado pelas crianças. […] Não obstante, a autonomia cultural das crianças, continua a ser um tema envolto em alguma controvérsia (cf. Iturra, 1997; Sarmento e Pinto, 1997; Frazão- Moreira, 2000). O debate não se centra no facto, de as crianças produzirem significações autónomas, mas em saber se essas significações se estruturam e consolidam em sistemas simbólicos relativamente padronizados, ainda que dinâmicos e heterogéneos, isto é, em culturas.” (Sarmento, 2004: 21).

Relativamente aos traços distintivos da cultura de infância, analisar-se-á, ainda, nesta primeira parte da aula, a proposta de Sarmento a propósito do que ele chama a gramática das culturas da infância e que, em sua opinião se exprimem nas seguintes dimensões: semântica (o «era uma vez» de uma criança que serve para construir significados autónomos); sintaxe ( a articulação na ordem do discurso do real e do imaginário; do ser e do não ser) e morfologia ( os jogos, os brinquedos, os rituais, os gestos e as palavras). A propósito desta metáfora tomada de empréstimo da linguística para estudar as culturas da infância, Sarmento salienta, contudo, que “falei de gramática, mas importa destacar que as culturas da infância não se reduzem a elementos linguísticos, antes integram elementos materiais, ritos, artefactos, disposições cerimoniais e também normas e valores” (Sarmento, 2004:23).

A Escola de Cultura e Personalidade, o culturalismo, autores como Ruth Benedict, Margaret Mead, Ralph Linton, Kardiner, etc., interessaram-se também pela relação etno- psicológica entre a cultura e o pensamento. Contudo, tratava-se de uma visão algo monolítica: a pessoa é o papel químico do grupo social que habita. Hoje, cada vez mais, as crianças vivem, convivem e habitam, objectiva e subjectivamente vários mundos desde a infância, o que resulta na construção idiossincrática de cada criança.

Daí as Diferenças

Cada criança constrói, reconstrói, a seu modo, no jogo, na aprendizagem, na interacção, uma nova dimensão: um terceiro45. Não se trata de copiar; de imitar, apenas. Há uma dimensão da autoaprendizagem; da autoformação. Não se trata da psicologia behaviorista, comportamentalista, do estímulo-resposta.

Como diz Filipe Reis (1991), “entre os que os adultos dizem e o que as crianças aprendem, medeia a prática, especialmente numa sociedade cuja lógica é resultado de experimentar directamente no real. Só que a prática da criança é altamente simbólica e o mundo no qual vive é feito de representações elaboradas no desenvolvimento do seu entendimento. É isso que significa o jogo infantil como processo de aprendizagem. É a introdução do real dentro do mundo da criança que ainda o entende através dos seus próprios conceitos, o que faz do jogo um processo pedagógico.” (Reis, 1991: 27).

De seguida discute-se a infância como um “Entre Lugar”46: a criança entre dois mundos; entre dois modos. Por um lado, temos a criança e o que é considerado pelos adultos ( desde a concepção até o desenvolvimento do entendimento, pelos 4, 5 anos de idade, como define Wilfred Bion em 1962; entre outros grupos, até ao começo da puberdade); por outro, ainda, temos o que é inventado pelas crianças. Relativamente aos adultos, estamos perante a norma axiológica, gnoseológica; no tocante às crianças, estamos perante um novo mundo construído por elas mesmo.

As trajectórias sociais, os vários mundos culturais que habitamos e a recuperação consciente ou inconsciente da infância

Quando o avô brinca com os netos é um adulto, um idoso ou uma criança que brinca, que passou a ter tempo, de novo, para brincar. E como é que os outros, as crianças, vêem os que designamos de adulto e que às vezes brincam com elas?

A este propósito, vale a pena lembrar o artigo de Teresa Vasconcelos (1996) que descreve a interacção feita com a Tina, uma menina negra de 4 anos, em contexto de

45 Ver a este propósito os conceitos de terceiro instruído de Michel Serres, de terceiro homem de Gellner e de terceira pessoa de Vieira (1999 a e b) (cf. bibliografia geral final)

etnografia numa sala de educação pré-escolar, em que a miúda ordena à etnógrafa que vive a situação de jogo com ela, que se sentasse porque ainda não tinha comido:

“ao ordenar senta-te!, a Tina convidou-me a tomar parte do seu jogo, mas deu uma mensagem clara de que era ela que estava a orientar a situação. Eu não podia limitar-me a «passar» … Não havia também forma, como etnógrafa, de deixar de me tornar vulnerável, de me esconder para não ser vista. […] A Tina continuava a controlar a situação quando questionou o facto de eu tentar sair sem comer as suas panquecas. Ao perguntar aonde pensas tu que vais? Ela estava implicitamente a falar das relações de poder no seu jogo. […] Devo confessar o meu embaraço quando a Tina referiu que estava pronta a sair da «sua casa» - do seu jogo, da sua «representação secreta» - sem ter comido as panquecas cuidadosamente preparadas por ela. Quando comemos uma refeição na casa de alguém, não partilhamos a sua intimidade? […]” (Vasconcelos, 1996: 26 e 27).

Reflectir-se-á também sobre o papel da transgressão da criança na sua própria aprendizagem e na construção de capacidades de relativização e de inovação social. A transgressão em relação ao instituído é vista como uma forma de constatar e experienciar a diversidade cultural. Consoante a história de vida de cada indivíduo e os adultos que mediaram a arrumação de ideias, a diversidade pode ou não ser interiorizada duma forma relativizada, dando ou não origem a atitudes e práticas interculturais. “O acto de preverter ou de transgredir47 que é habitualmente considerado como processo transtornador, no sentido de desvirtuar, é contudo, se o considerarmos numa perspectiva factual, não valorativa e como apenas perturbador duma ordem, a possibilidade de entrar em contacto com o diferente. É no fundo uma eventual possibilidade de constatar o outro, o estrangeiro, o exótico, o diferente, a alteridade, as alternativas à monocromia, à ordem instituída, enfim à monocultura. Pode ser o experienciar duma racionalidade diferente, consciente e enriquecedor, porque ensaiado comparativamente com a ordem da socialização primária.

O resultado da comparação com o diferente, quer quando se rompe com a rotina e se busca a alternativa que se experimenta, quer porque na caminhada da vida se observou e se viveu diferentes contextos de interacção humana, é a arrumação de pelo menos duas ideias: a da constatação da diversidade cultural - a factualidade da multiculturalidade, e a da potencialidade de integração dessas diferenças numa experiência de vida que se torna mais híbrida, mais diversificada e portanto mais enriquecida quer do ponto de

vista dos saberes e da aprendizagem cognitiva, quer do ponto de vista das atitudes para com o próximo - o que designo de construção da interculturalidade”. (Vieira, 1996: 130- 131).

É no jogo e na brincadeira que as crianças provam as suas habilidades para cimentar recursos de lazer, assim como criar os seus próprios modelos de relações sociais. É na transgressão (aquilo que as crianças fazem em vez de fazer aquilo que os adultos mandam) que a criança recria a sua autopedagogia.

A transgressão é uma desobediência planificada à autoridade dos pais ou professores, é antes uma auto-afirmação e uma procura de entendimento do real não entendido.