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9. A Mundialização da Cultura

9.1. Tradição e Modernidade

Inicia-se este primeiro ponto da aula n.º 9 com uma discussão sobre as representações que há sobre a antropologia como ciência de particularismos. A Antropologia tem sido concebida (senso comum e não só) como uma ciência que confronta presente e passado, aqui e ali, nós e os outros (primitivos e civilizados; urbanos e rurais, maiorias e minorias,

etc...) - um discurso de ruptura que se constrói num jogo de contrastes e semelhanças. A abordagem da variedade cultural - o(s) modo(s), social e culturalmente definidos, como o Homem age e pensa - tem sido o mote dominante no discurso antropológico. Hoje a modernidade e a Tradição (e paralelamente, a coexistência de relações entre as manifestações locais e globais da(s) cultura(s) são refrões ou bordões particulares nessa tal dimensão de ruptura da disciplina.

No domínio da análise dos processos educativos é significativo também ponderar o modo como as práticas de ensino / aprendizagem devem ser (re)pensadas à luz desse confronto entre tradição / moderno e local / global; complementarmente estamos a (re)pensar a definição de cultura e a própria prática e produção de conhecimento antropológico.

Apresenta-se, como ponto de partida, e de seguida, a obra de Richard Hoggart (fundador com Raymond Williams da linha inglesa de abordagem socio-antropológica designada por "cultural studies", ele próprio um proletário letrado).

Tese central da obra As Utilizações da Cultura: debate entre processos de aprendizagem formais e informais em grupos proletários ingleses, sobretudo centrado na análise dos efeitos dos meios de comunicação de massas sobre estas classes (cinema e imprensa) – i.e., na sua não influência, já que estes grupos se exprimem e inspiram numa tradição oral e local. Usam-se, essencialmente, 2 capítulos: Cap.II "A paisagem e suas figuras - um cenário" e Cap. III "Nós e Eles".

Tradição oral: resistência e adaptação

Uma primeira reflexão permite ver que os novos meios de comunicação de massas não têm conseguido afectar grandemente a cultura proletária (que vê os seus membros viverem intuitivamente, verbalmente, de acordo com antigos hábitos, inspirados no mito, no ritual e no aforismo).

9. 2. Dialéctica do Local/Global

Este segundo ponto da aula e seminário, dedicados a pensar a mundialização da cultura, será, evidentemente, muito articulado com o anterior e posteriores. De resto, só em termos de leccionação é possível separar estas questões, mas nunca em compartimentos estanques.

A proposta é de iniciar esta problemática com uma citação de Warnier a propósito do que designa de moderno caleidoscópio:

“Dançamos o tango argentino em Paris, o bikutsi camaronês em Dakar, a salsa cubana em Los Angeles. O MacDonalds serve os seus hambúrgueres em Pequim, e Cantão apresenta a sua cozinha no Soho. A arte Zen do tiro ao arco entusiasma a alma germânica. A baguette parisiense conquistou a África Ocidental. Em Bombaim podemos ver o Papa através da mundovisão. Os filipinos choram a princesa de Gales, enquanto vêem, em directo, as suas exéquias.

A expressão «mundialização da cultura» designa esta circulação de produtos à escala global. E ela suscita as reacções mais contrastadas. Uns descodificam as promessas de um planeta democrático unificado por uma cultura universal – um planeta reduzido pelos media às dimensões de uma «aldeia global», como disse Marshall McLuhan. Outros vêem a causa de uma inelutável perda de identidade que eles deploram. Outros, ainda, militam para fazer afirmar os seus particularismos até ao ponto de fazer uso da violência.” (Warnier, 2000: 7).

Para Anthony Giddens, a modernidade impõe separação do tempo e do espaço; mecanismos de descontextualização e reflexividade institucional:

há uma escolha múltipla como elemento de ruptura entre modelos tradicionais e modelos modernos de delimitação das trajectórias do self;

na modernidade os indivíduos seguem estilos de vida (conjunto mais ou menos integrado de práticas que podem adoptar, não só porque satisfazem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto identidade);

um estilo de vida é "adoptado" e escolhido numa pluralidade de opções (não é "transmitido") e é situacional; e é através do traçar de planos de vida que os indivíduos organizam o tempo / espaço reflexivamente;

por outro lado, a ruptura ou multiplicidade de acesso à informação / saber permite reformular a relação entre contexto local / globalização;

finalmente, a modernidade e a tradição estão ligadas aos processos de transformação / desenvolvimento dos meios de comunicação / modos de conhecer (media).

A modernidade recobre o Industrialismo, o capitalismo, instituições de vigilância e de controlo dos meios de violência - formas sociais do tipo Estado-Nação (cf. Gellner, 1993) e ascensão de (sistemas de) organização; e alteração no ritmo, âmbito ou profundidade das mudanças sociais que afectam as práticas e os modos de comportamento preexistentes.

Para Daniel Miller (1995), uma das vertentes da ruptura está na dimensão do consumo – que os economistas (e não só) definem no quadro da discussão sobre o papel dos bens e dos serviços assumindo o consumidor como um sujeito que escolhe / opta – e que pode ser evocada como algo mais abstracto num debate potencialmente filosófico; consumidor é oposto a ideal estético ou produtor criativo; ser consumidor é ter consciência que vivemos através / com objectos e imagens que não são criação.

Há então uma dupla questão:

1) pensamos a diversidade cultural à priori – homogeneizada através da universa1ização do consumo de massas; ou

2) diversidade cultural à posteriori – criada pelo consumo diferencial do que foi concebido como / pelas instituições homogeneizantes e globalizadoras (exemplos: as diferentes formas de modernidade, de burocracia, de mundo mediático e de capitalismo; os fenómenos gerados pelo pensamento homogeneizador da religião com o florescimento de respostas regionais aos clamores universalistas religiosos ou os "novos cultos") ou pelo que foi construído por grupos sociais que não edificaram a sua auto identidade dentro de um único sistema de valores irremediavelmente contextualizado histórico- espacialmente.

Conforme a interacção promovida na aula e no seminário, e de acordo com a manifestação de interesses dos alunos, poderá aqui ser convocada a questão do (re)nascimento das tribos, uma vez que se revelam dois caminhos antagónicos na sociedade. Um deles é a crescente individualização das relações sociais e humanas e, por outro lado, a retribalização ou, se se preferir, o regresso às tribos.

Marc Augé diz que “nunca a história colectiva interferiu tão explicitamente nas histórias individuais, mas as referências de identificação colectiva também nunca foram tão flutuantes” (1994: 45). Esta frase marca a ponte entre os dois fenómenos de que falamos: a exclusão de um lado, e a «tribalização» do outro. Os dois fenómenos, à primeira vista são antagónicos, mas ocorrem ao mesmo tempo.

Sente-se uma desintegração das massas e uma consequente fragmentação do público. Michel Maffesoli (2000), na obra O Tempo das Tribos, defende que a existência social faz-se através de grupos tribais fragmentados, que se reproduzem, e que rapidamente são alvos de estereótipos. Porque os elementos dessas tribos exteriorizam os seus próprios sinais identitários, como o modo de vestir, de falar, a música que ouvem, o regime alimentar, os desportos que praticam, os modos de ocupar o tempo livre, a orientação política, a linguagem gestual, etc.

O reaparecimento das tribos é sinal da crescente liberdade individual, do espaço que cada indivíduo tem, do enfraquecimento das fronteiras entre nações, da massificação dos meios de comunicação social, e como estes «publicitam» novas identidades.

Para Roberto da Matta (1996), a problemática da globalização deverá passar por uma reflexão a partir de oito perspectivas: “1 – visão planetária com categoria sociológica; 2 – ancoragem em estados nacionais como a ONU, a UNESCO, o FMI; 3 – Ideologia elitista, académica ou jornalística, sintonizada como o «mais moderno», ou «mais novo» e o «melhor»; 4 – universalismo e individualismo como credos; 5 – divisão entre centro e periferia; 6 – Linguagem burocrática, legalística e abstractas como dominante; 7 – Temporalidade irreversível, cumulativa ou histórica, direccionada para o futuro e para o «progresso»; 8 – Coerção de ordem natural e histórica porque o mundo tende para esse estado globalizado e multifacetado” (Da Matta, 1996: 1).

Reflectindo sobre as tensões entre o global e o local, Boaventura Sousa Santos refere não existir uma «globalização genuína» já que o elemento tornado global tem uma origem local que se impõe através da globalização, por isso, Santos (1997) enumera quatro formas de globalização: o localismo globalizado (fenómeno local mundializado com sucesso); o globalismo localizado (processo que surge de cima para baixo); o cosmopolitismo (organização transnacional em defesa de interesses comuns dos grupos excluídos que surge de baixo para cima); o “património comum da humanidade” (Emergência das problemáticas ligadas ao ecossistema e que interessa a todos os habitantes do planeta e que ilustra a globalização contra-hegemónica).

“As manifestações de nacionalismos, fundamentalismos e xenofobismos que reaparecem com força, principalmente nas nações desenvolvidas pelo confronto com o acentuado contingente de emigrantes provenientes dos países periféricos, reafirmam a necessidade

de se pensar o processo de globalização como movimento complexo e não dicotómico” (Candau, 2002: 18).

Efectivamente, a “aldeia global” não é homogénea ainda que haja uma grande influência de indústrias culturais de massas. Contudo, mantêm-se fortes tensões entre o nacional e o local, entre o local e o estrangeiro. E, como diz Stuart Hall, no mundo contemporâneo coexiste, o velho e o novo, o local e o global, o moderno e o tradicional, o universal e o particular, produzindo uma heterogeneidade cultural ligada a sujeitos já não definidos por identidades unificadas e estáveis, mas por “identidades contraditórias”, “continuamente deslocadas”(cf. Hall, 2003). Para Stuart Hall, “a homogeneização cultural é o grito angustiado daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as identidades e a «unidade» das culturas nacionais. Entretanto, como visão do futuro das identidades num mundo pós moderno, este quadro, da forma como é colocado, é muito simplista, exagerado e unilateral” (Hall, 2003: 77).

Por isso Jean- Pierre Warnier diz que falar de mundialização da cultura é um abuso de linguagem:

“esta expressão, que além do mais é bem cómoda, devia ser banida de todo o discurso rigoroso. Este objecto dissolve-se na análise. Quando muito pode-se falar da globalização de certos mercados dito “culturais” (cinema, audiovisual, disco, imprensa, particularmente as revistas). Confundir as indústrias da cultura e a cultura é tomar a parte pelo todo. É privilegiar as aparências mediáticas dos países industrializados em detrimento daquilo que não é suficientemente espectacular para imergir nas zona de captação dos media e que constitui a substância das culturas do mundo. É colocar mentalmente fora do jogo as nove décimas da humanidade, cuja vida, da nascença à morte, tem outras referências que gravitam em volta do ecrã catódico. Aqueles que estão fechados no mundo das indústrias culturais não se apercebem nada do que é normal. Eles fazem prova de um etnocentrismo análogo ao de toda uma sociedade mais ou menos fechada e fortemente estruturada. Os dois debates (o da erosão das culturas singulares e o da americanização) não são mais do que um. A humanidade, hoje como antes, é uma máquina de fabricar diferenças, clivagens, distâncias, distinção de clãs, de linguagens, de domicílios, de classes, de países, de fracções políticas, de regiões, de ideologias, de religiões.” (Warnier, 2000: 105).

A modernidade é inseparável dos seus "próprios" media - o texto impresso e o sinal electrónico - e daí decorre a mediação da experiência que estas formas de comunicação trouxeram consigo (por exemplo os livros produzidos à mão exigiam um público sequência); com a difusão da Imprensa e da palavra impressa as redes de leitores aumentaram; o jornal, o telégrafo, o telefone e comunicação por rádio ou pelo éter, bem

como a TV e o sinal electrónico dos computadores transformaram os canais de comunicação, as pressões das diferenças espaço-tempo, permitiram o salto da descrição de eventos próximos e recentes e a narração desactualizada dos eventos passados e distantes para uma "coincidência" entre notícia e evento.

Há dois traços fundamentais a destacar na experiência mediada em condições de modernidade:

i. o efeito de colagem - uma vez que o evento se toma mais ou menos completamente dominante sobre a localização, a apresentação dos media toma a forma de justaposição de histórias e itens que nada têm em comum a não ser o facto de serem "oportunos" e consequentes.

ii. a intromissão de acontecimentos distantes na consciência quotidiana - familiaridade gerada pela experiência mediada pode produzir sentimentos de "inversão da realidade": o objecto e o acontecimento reais, quando confrontados, parecem ter uma existência menos concreta do que a sua representação nos media; estes não espelham as realidades, formam-nas.