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A pratica da mediunidade dentro do contexto estudado é entendida como um meio para a prática do bem e da caridade. Através do desenvolvimento das capacidades de comunicação com o mundo espiritual, o médium deve se empenhar em auxiliar os seres tanto

encarnados quanto desencarnados no intuito de contribuir para a evolução espiritual, tanto sua própria, quanto a dos necessitados.

O trabalho de caridade em contextos kardecistas ocorre dentro de situações controladas em que o médium passa por toda uma preparação, existindo todo um conjunto de preceitos e instruções que embasam este procedimento. No Santo Daime, apesar de abrirem espaço para o trabalho de caridade espírita nos ritos de banca aberta, ainda não existe um conjunto de instruções mais formalizadas. Os daimistas acreditam que o adepto vai aprendendo como deve ser realizado o trabalho durante o próprio rito no estado de miração, em que se crê ser possível receber os ensinos diretamente do ser divino contido no Daime.

De acordo com esta daimista:

O Padrinho Sebastião era um grande médium, mas ele não deixou instruções mais formalizadas no sentido de orientar como devia ser feito o trabalho mediúnico. Porque na nossa doutrina é o Daime que ensina. Quando eu cheguei no Santo Daime, eu não tinha noção do nível da minha mediunidade. Eu passava a metade do tempo achando que eu era maluca. Porque eu não confiava nas coisas que eu via, eu não confiava nas coisas que eu sentia. Eu duvidava e isso não é o tipo de coisa que dá pra você sair perguntando pra todo mundo. Então, eu tive um grande treino, que foi o de ser ensinada pelo próprio Daime. Você tem que entender que cada um vê e percebe de uma forma. Então, existem temas que é só você com o ser divino do Daime, que vai te ensinar. Porque o outro é diferente, nasceu num lugar diferente, traz uma cultura diferente e cada um vem trazendo nessa vida, padrões diferentes para curar. Então, se você ficar perguntando pro outro, vai mais é confundir sua cabeça. Então, no Santo Daime é assim, é você e o Daime (Entrevista realizada com Lúcia: Saquarema, 03 out. 2015).

Na concepção do grupo, o trabalho de caridade espírita é feito através da capacidade do médium de se sintonizar com a energia espiritual, o que na visão dos adeptos é chamado de mediunidade de transporte. Esse tipo de mediunidade pode envolver incorporação de entidades ou não, podendo ser realizada apenas através da descarga de energias negativas através do aparelho do médium:

Todo mundo que tem a mediunidade de incorporação tem um pouco a de transporte também, porque o canal é o mesmo. A Baixinha, quando ela botava a mão na pessoa, vinha a carga toda pra ela. No inicio, o trabalho dela era muito esse, de pegar as cargas dos outros e transformar essa energia. Quando ela começou a trabalhar em terreiro, o chefe do terreiro viu a capacidade dela e botava ela pra fazer isso. Então, ela botava a mão na pessoa e a coisa vinha naturalmente pra ela, as cargas negativas, seres que acompanhavam a pessoa, obsessores e assim é que se dava esse transporte. A mediunidade de transporte é isso... é você poder ser um canal pra cura de

uma outra pessoa ou espírito. Você receber no seu aparelho aquelas cargas, que tão ali, que não tem como sair por outro meio. O nome já fala né?! É o transporte de energias (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

No discurso nativo, quando não é possível ajudar o espírito sofredor apenas com irradiações de energia positiva, o médium dotado de mediunidade de transporte pode se dispor a “dar passagem” no seu corpo para a manifestação daquele ser, ou pode acontecer de um médium desequilibrado ou em início de desenvolvimento dar passagem involuntariamente como já apontamos anteriormente.

Segundo a concepção do grupo, o contato com a matéria produz naquele espírito uma conscientização de que ele já não se encontra encarnado no plano físico e reconhece aquele corpo como não sendo seu. A respeito do trabalho com os espíritos sofredores, uma entrevistada relata que:

No trabalho, o médium não tem obrigação de incorporar sofredor, na verdade a gente não tem obrigação de incorporar nada, a gente incorpora se a gente quiser. Mas pode acontecer da pessoa tá com a mediunidade dela toda desequilibrada e incorporar às vezes numa situação que sai do seu controle. Se o médium estiver dentro do seu equilíbrio, ele só incorpora se ele quiser, se não quiser, não incorpora. Mas às vezes o espírito pra ter uma operação espiritual, tem que ter contato com o corpo físico. Porque a força de encarnado é muito grande. Um espírito desencarnado ele não tem essa força física, por isso que dizem que aqui é uma grande escola. Porque esses espíritos são trazidos pra incorporar na gente? É pra ter uma fração de segundo em que aquele espírito tem a força física de transformação. Que essa que é a grande parada da gente entendeu? De ser encarnado. A gente tem força física de transformar as coisas (Entrevista realizada com Elisa: Barra do Sana, 11 jul. 2015).

Nos trabalhos daimistas de banca aberta, que tem entre seus propósitos o trabalho de caridade espírita, como é o caso da Gira e do Mensageiros da Cura, o médium que “dá passagem” ao espírito sofredor deve se esforçar por manter o controle do seu aparelho enquanto incorporado do espírito, realizando com ele um diálogo mental.

Segundo esta entrevistada, o trabalho de caridade:

é feito na comunicação entre o médium e as entidades que chegam. O médium faz o transporte, quando sente que vai precisar dar passagem pra aquele sofredor para conseguir ajudar ele. Aí, ocorre uma comunicação, que é como se fosse um diálogo no plano mental. O médium deve se colocar num estado de muito amor e estar entregue para a caridade. Você passa a ser um canal de bons fluidos pros seres. Mesmo quando você tá fazendo um transporte e você recebe um ser sofredor muito agressivo, é naquela

comunicação com ele que você vai conseguindo transmitir essa calma, transmitir esse amor. Fazer com que aquele ser se entregue, para receber aquela luz também. Que ele possa pedir o seu perdão e receber o seu encaminhamento. Ficar receptivo aos guias de cura que estão ali presentes, que vão encaminha-lo para o tratamento necessário no plano espiritual. Tem que ter muita paciência, porque não é fácil a vida do médium. Ocorrem situações em que a pessoa perde o controle do aparelho, principalmente no início do desenvolvimento (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

Quando os recursos empregados não são suficientes para encaminhar aquele espírito que insiste em se manter no corpo do médium, pode-se entrar em cena um segundo médium doutrinador ou ainda pode-se recorrer a um outro recurso; o uso do Daime para iluminar o espírito como já foi exposto previamente. Percebo que no discurso nativo, além de bebida sacramental que permite o contato do adepto com a divindade, o Daime também assume uma função de medicina espiritual capaz de trazer a iluminação para espíritos que se encontram presos na escuridão da ignorância espiritual.

Segundo, uma entrevistada, no início de seu desenvolvimento mediúnico ela se deparou com diversas situações difíceis com seres sofredores:

Eu já passei muito. Já incorporei cada coisa... que não eram seres que vinham pra ajudar. É difícil trabalhar com esses seres. Eu não queria ser aparelho de jeito nenhum. Porque tem hora que vem seres de luz, mas tem hora que baixa uns também que você quer correr. Quando vem sofredor, às vezes precisa de um aparelho pra poder fazer uma passagem. O Padrinho Sebastião, ele trabalhava com ambos. Ele fazia trabalho de caridade dando passagem pra sofredor, e aparelhava também seres de luz. Mas ele também passava nos trabalhos de caridade com sofredor, e quem doutrinava muitas vezes era o Padrinho Alfredo. Porque às vezes, descia um espírito muito brabo e tinha que alguém doutrinar, às vezes dava uma dose de Daime pra iluminar o espírito. A Baixinha, muitas vezes também fazia esse trabalho de doutrinação, quando algum médium dava passagem pra algum sofredor na hora do trabalho. Ela ia lá ajudar, dava uma dose de Daime (Entrevista realizada com Alice: Lumiar, 29 mai. 2015).

O desenvolvimento mediúnico é um processo que também comporta alguns riscos, pois a influência de entidades negativas quando não controladas, pode ocasionar prejuízos para a saúde física, psíquica e espiritual do médium. Durante a pesquisa, escutei alguns relatos de médiuns que se sentiram prejudicados por conta de influencias espirituais negativas no início de seu desenvolvimento mediúnico como podemos ver na fala da entrevistada a seguir:

Quando eu conheci a Baixinha, em 1993, eu cheguei aqui muito doente, doente espiritualmente. Aí, nesse tempo, eu comecei a frequentar a igreja

aqui e a Baixinha me atendeu e me ajudou. Ela fez os boris133 comigo, uma outra amiga minha me atendeu com florais, e aí eu fui melhorando. Mas a minha questão foi que, eu já era médium e tinha consciência da minha mediunidade quando cheguei no Santo Daime, em 85, lá no Céu do Mar. [...] E teve uma época em que começou a aparecer pessoas que eram viciadas em cocaína na igreja, foi uma época que apareceu um monte, apareceu um agrupamento e aí o dirigente abria o Trabalho de Estrela pra gente trabalhar a cura dessas pessoas, e nisso, a gente também trabalhava os espíritos viciados que tavam lá acompanhando essas pessoas. Aí, ele dizia assim: “hoje nos vamos trabalhar os seres que tão num processo de vício” e nisso descia a falange no salão. Todo mundo que era médium começava a fazer descarrego daquela situação toda entendeu? Então, a gente dava passagem pra esses espíritos viciados e trabalhava pra que eles fossem iluminados. Era um trabalho de resgate e libertação dessas almas, tanto do encarnado, quanto dos desencarnados que o acompanhavam. Mas naquela época, não se tinha muita noção de coisa de proteção não, tanto é, que eu saí de lá doente. Era um trabalho puxado, porque eram seres que estavam nas trevas e aí, tudo passava pelo seu aparelho, quem tinha mediunidade, abria pra passar por todas aquelas coisas entendeu? E era uma coisa de sobrecarregar mesmo o aparelho (Entrevista realizada com Elisa: Barra do Sana, 11 jul. 2015).

Na igreja Flor da Montanha, atualmente, aconselha-se que os médiuns só façam transporte em casos de extrema necessidade, optando por trabalhar com os sofredores por meio de irradiação de fluidos positivos e diálogo telepático. Segundo uma daimista, tal medida é advinda da necessidade de se evitar prejuízos para a saúde do médium:

O médium, ele tem que tá muito atento às energias que ele tá trabalhando. Porque quando você começa a dar muita passagem pra sofredor, eles trazem uma energia mais carregada, muita carga negativa, de dor, de sofrimento, então essa vibração negativa vai esgarçando o chacra do plexo solar, que é o chacra das relações, que nos conecta aos outros. Então, quando o médium tá desequilibrado e começa dar passagem demais pra sofredores, isso prejudica demais esse chacra e vai havendo também um desgaste energético do aparelho, porque esses seres eles deixam resquícios de energias pra trás e isso vai se acumulando no corpo áurico do médium. Então, aqui, a gente tá tentando limitar mais esse tipo de trabalho e tentando trabalhar mais os sofredores sem dar passagem no aparelho, a não ser quando o médium percebe que é muito necessário pra ajudar aquele ser (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

133 O Bori ou Ebori é um ritual tradicional do Candomblé de Nação (Jejê, Nagô, Angola) realizado no processo de iniciação de um neófito. A palavra vem de Ori que quer dizer “cabeça”, podendo ser traduzida como “dar de comer a cabeça” O objetivo do rito é fortalecer a cabeça do neófito para receber o Oxixá (BERKENBROCK, 2007). Na Flor da Montanha o rito é realizado com o intuito de oferecer proteção ao adepto, fechando sua mente contra a influencia de entidades negativas. O procedimento ritual que era realizado por Baixinha na Flor da Montanha requeria que o adepto ficasse um dia inteiro em período de reclusão após a aplicação de certas comidas rituais em sua cabeça enrolando-a posteriormente com um pano branco. A necessidade da realização de tal rito é determinada pelo jogo de búzios. Como Mãe Baixinha era iniciada no Candomblé de Nação Jejê, tais procedimentos faziam parte de seu repertório de práticas e vários dos adeptos mais antigos da Flor da Montanha tiveram a oportunidade de fazer o Bori com Mãe Baixinha quando esta era viva.

Aconselha-se também no processo de desenvolvimento mediúnico que os médiuns fiquem atentos com relação a atuação dos “zombeteiros”, pois nos momentos críticos do rito, em que ocorre a chamada de entidades através dos hinos, estes seres se aproveitam para assediar os médiuns mais despreparados e apressados, que segundo o discurso nativo, não aguardam para identificar melhor a energia que se apresenta, dando passagem a estas entidades malevolentes, que se manifestam como colocado anteriormente de forma brusca e exagerada, muitas vezes tentando imitar gestos típicos de outras entidades.

Além de tumultuar os ritos, os zombeteiros vampirizam o aparelho do médium causando desgaste energético, podendo, na visão dos daimistas, deixar “buracos” no seu campo áurico ou mesmo podem passar informações erradas para os médiuns os confundindo ou fazendo-os proceder de maneiras inadequadas. A incorporação desses seres deve ser alvo de doutrinação, com o médium impondo sua vontade sobre a deles e emanando fluidos de amor e compaixão para que eles possam ser iluminados. Um exemplo interessante a respeito da ação mal intencionada de um zombeteiro foi dado no relato de um entrevistado134:

Eu vou te citar um exemplo de uma situação com um zombeteiro que quase me fez matar o Padrinho Sebastião: Quando eu fui ao Mapiá em 89, o Padrinho Sebastião estava bem doente. Uma noite, eu e o José Rosa135 fomos lá na casa dele, e quando entramos no quarto tava o Padrinho Sebastião aos prantos, com falta de ar, tendo um enfarto na hora. E o José Rosa falou: “faz alguma coisa que ele tá morrendo”. E eu falei pra ele: “fazer o que?” Porque no meu consultório, se alguém chegar com esse quadro, eu vou ligar pra uma ambulância pra levar pro hospital. Mas no meio do Mapiá não tem nada disso, nem médico, nem hospital, nem remédio, nem nada. Aí, eu comecei a rezar, porque eu não sabia tecnicamente como salvar uma pessoa assim. Eu rezei e meu guia me mostrou que eu tinha que botar uma agulha grande na região do períneo dele. Então eu falei com o José que era essa a instrução que eu tava recebendo do meu guia. Eu tinha que botar no lugar certo, porque os pontos de acupuntura são bem pequenos. Aí, eu botei a agulha e ele começou a respirar de novo. E nas próximas duas semanas, o José e eu, ficamos na casa dele e todo dia eu ouvia a voz do meu guia dizendo pra aplicar um ponto de acupuntura no Padrinho. Um dia, eu fui pra botar uma agulha no meio do peito do Padrinho, que é um ponto bem delicado, especialmente pra quem tem problema de coração. Uma voz falou: “bota aí”. E na hora que eu estava indo botar, eu senti uma intuição muito forte dentro de mim falando que não era pra botar. Aí, eu desisti e meu guia falou: “Se você botar a agulha aí vai matar ele”. E nessa hora, eu vi com clareza um zombeteiro rindo. Então, eu aprendi uma coisa muito importante sobre discernimento com essa situação. Apesar desse ser ter tentado imitar meu guia, eu senti que isso não tava certo. Eu senti que aquele ser não veio com amor, não veio com calma, veio com uma vibração de confusão. Tem

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Lembrando que este entrevistado exerce a profissão de acupunturista como já exposto anteriormente.

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Dirigente da Comunidade do Céu da Montanha em Visconde de Mauá durante o início da década de 90 até o ano de seu falecimento em 1996. Foi instrutor de Jonathan e amigo intimo de Mãe Baixinha.

pessoas que vem pra mediunidade e qualquer coisa que eles escutam da entidade eles fazem e não é assim. Isso foi um ensino muito importante pra mim e até hoje eu estou desenvolvendo esse discernimento (Entrevista realizada com Paulo: Lumiar, 25 abr. 2015).

Segundo a concepção do grupo, médiuns negligentes e indisciplinados com relação a sua melhoria pessoal e ao trabalho de vigilância mental, podem acabar atraindo entidades “problemáticas” e espíritos violentos, o que pode ocasionar episódios turbulentos durante os ritos, com as entidades causando agitação na sessão, gritando, esperneando, fazendo muito barulho, se movimentando excessivamente. Assim, a pratica mediúnica aliada ao autoconhecimento segundo os adeptos, viabiliza um trabalho mediúnico mais harmonioso, onde o médium tem a capacidade de doutrinar o espírito fazendo-o se adequar as regras do ritual.