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Em religiões como a Umbanda e outras expressões afro-brasileiras, o desenvolvimento mediúnico possui muitas vezes um caráter profilático, sendo a descoberta da sensibilidade mediúnica motivo de adesão do indivíduo ao culto. Geralmente, muitos adeptos destas religiões tem um histórico parecido com relação ao aparecimento de sintomas que os

acometem na vida cotidiana e que denunciam a presença da mediunidade, compelindo-os a buscar seu desenvolvimento mediúnico para amenizar a sintomatologia (MONTERO, 1985).

De acordo com Montero (1985, p. 182), acredita-se que as pessoas possuidoras de sensibilidade mediúnica geralmente são acometidas por sensações mórbidas, prenunciadoras da eclosão da mediunidade, sendo comum mal estares, visões, confusão mental, dores no corpo, dores de cabeça, instabilidade emocional, surtos depressivos ou surtos de pânico, que aparecem sinalizando o contato do indivíduo com os espíritos e a apreensão de informações que transcendem a realidade convencional apreendida pelos cinco sentidos habituais que estamos acostumados a utilizar.

No contexto umbandista, os adeptos entendem que o não desenvolvimento da mediunidade pode levar o indivíduo a ter seu quadro agravado, vindo a adoecer caso opte por não desenvolver suas qualidades mediúnicas. Assim, esse “caráter profilático” assume uma conotação terapêutica, a medida em que o neófito deve optar por se implicar nas práticas mediúnicas em contexto ritual para que possa aprender a ter maior domínio da sua mediunidade, impedindo que a influência do plano espiritual ocorra de forma descontrolada e em contextos inapropriados, evitando prejuízos na esfera da saúde e das relações sociais. Na concepção umbandista, portanto, o desenvolvimento mediúnico é um processo ritual a que o indivíduo se submete no intuito de conhecer, desenvolver e dominar as energias espirituais que o influenciam (MONTERO, 1985).

Até onde foi possível mensurar dentro da esfera de alcance desta pesquisa, não pude identificar no contexto daimista nenhum caso em que a descoberta da mediunidade fosse motivo de adesão ao culto. No entanto, alguns adeptos relataram que passaram por crises mediúnicas durante a juventude antes de se tornarem daimistas. O próprio dirigente do grupo revela a seguir a respeito do surto mediúnico que teve quando jovem, numa época em ainda não estava inserido em nenhum culto religioso:

Eu hoje sou ogan, mas a revelação do meu caminho espiritual veio num surto de incorporação. Eu tive uma amostra de vários tipos de manifestações mediúnicas na minha juventude. Incorporei várias entidades da umbanda. Tive um surto, que foi considerado um surto esquizofrênico né... na época pela família, porque ninguém entendia... sabia o que era aquilo. Eu tive também clarividência, clariaudiência, desdobramento do corpo astral. Todos esses fatores mediúnicos aconteceram comigo, e hoje eu interpreto que foi só pra me mostrar que existe: “tá vendo existe, não duvide”. A partir daí eu passei a ser um crente e dei a base pra Baixinha desenvolver o trabalho dela. Mas aí eu fiquei mais no trabalho de sustentação, no tambor, nas puxadas de corimba e ajudando a organizar as pessoas e essa parte de manifestação mediúnica acalmou completamente. Aí quando eu conheci o Santo Daime eu

tive uma nova eclosão mediúnica. No meu primeiro contato com o Daime eu tive incorporação, tudo de novo, muito forte, mas depois acalmou de novo. Aí, depois que eu me fardei eu tive um novo surto mediúnico, mas depois acalmou e nunca mais tive. A minha missão mediúnica foi mais essa de ser médium de firmeza e segurar o trabalho. Mas eu entendo que eu tive que ter essas experiências pra não duvidar. (Entrevista realizada com Marcelo Bernardes: Lumiar, 19 set. 2015).

De acordo com os relatos, a conscientização dos entrevistados, em relação a sua sensibilidade mediúnica, fez a maioria deles procurar um sistema religioso que os auxiliou a significar os sintomas. Lúcia e Elisa significaram sua mediunidade no sistema kardecista e Alice e Marcos significaram dentro do contexto umbandista anteriormente a adesão ao Santo Daime. Marisa e Paulo sofreram durante anos com sintomas, atribuindo-os a questões ligadas a saúde mental, só conseguindo significá-los como sendo advindos de sua sensibilidade mediúnica após a inserção no Santo Daime. No entanto, ressalta-se que este não foi o motivo da adesão. De acordo com Paulo:

Na época em que eu cheguei no Santo Daime em 1988 lá em Visconde de Mauá, eu não sabia nada de mediunidade, nem nunca tinha escutado essa palavra. Eu vim a ter consciência da minha mediunidade depois que eu tive as primeiras experiências com o Daime, porque antes eu nem sabia o que era. Foi muito difícil pra mim antes, porque eu vivia lotado de energias pesadas. Então, só depois que eu cheguei no Santo Daime que eu fui ter o discernimento de que várias coisas que eu tinha passado era por causa da mediunidade. Eu fiquei doente quase que minha vida toda. Oitenta por cento dessas doenças era por causa de carrego espiritual, energético e emocional de outras pessoas que eu absorvia (Entrevista realizada com Paulo: Lumiar, 25 abr. 2015).

Eduardo, apesar de ser consciente de sua mediunidade por vir de um contexto umbandista, já que seus pais eram umbandistas, não estava inserido ativamente em nenhum sistema religioso anteriormente à adesão ao Santo Daime, vindo a significar sua mediunidade dentro do contexto daimista onde teve sua primeira experiência de incorporação:

Quando eu era criança meus pais eram da Umbanda e faziam sessões lá em casa, mas aí depois eles se afastaram e eu também fiquei afastado, sem uma religião. Aí, a minha esposa, que na época era namorada, já tinha ido lá no Céu do Mar, no Rio de Janeiro e me chamou pra ir um dia. E na primeira vez que eu fui lá, era numa reunião de oração e eu senti muita vibração. Aí, eu senti que lá também tinha essa parte mediúnica. Minha mão começou a suar e a tremer e eu senti um algo diferente, uma presença perto de mim (Entrevista realizada com Eduardo: Lumiar, 04 jul. 2015).

Após o contato com Baixinha no fim dos anos 80 e início dos anos 90, todos eles aderiram as ressignificações feitas no sistema mediúnico por ela desenvolvido, primeiramente na Cabana Lua Branca, quando o grupo ainda se configurava como um terreiro de Umbanda e posteriormente na Flor da Montanha, com a mesclagem da visão umbandista com a visão daimista a respeito da mediunidade. Ainda com relação a identificação da sensibilidade mediúnica uma entrevistada relata que:

Na minha juventude eu comecei a ter muitos problemas, que hoje eu reconheço que eram de ordem mediúnica, mas na época eu não percebia que aquilo era mediunidade. Eu aparelhava muita coisa, questões familiares... Eu era a pessoa que acabava dando vazão pras todas aquelas questões e energias de uma forma, e geralmente da forma errada. Também, se eu chegava num ambiente, às vezes sala de espera de consultório, começava a me dar uma dor de cabeça e dores no corpo. Eu começava a puxar as coisas pra mim, mesmo sem querer, por causa dessa minha mediunidade de transporte. Eu também tinha muito desequilíbrio emocional e aí, eu comecei a fazer terapia. Aí um dia, eu li no jornal, sobre um terapeuta que trabalhava com o Daime. O jornal tava falando muito mal, mas eu achei aquilo muito interessante e fiquei curiosa, aí meu irmão soube que tinha uma igreja no Rio e a gente foi lá, no Céu do Mar. Isso foi no ano de 1990. Aí nesse processo, eu me fardei em 1991 e comecei a desenvolver o meu trabalho espiritual. Com o passar do tempo, rapidamente eu comecei a sentir manifestações mediúnicas dentro do trabalho de Daime, e comecei a perceber as entidades e aí o pessoal me falou: “vai procurar a Baixinha”. Na época, a Baixinha fazia umas Giras no Céu do Mar. Então, eu fui procura-la e o Caboclo Tupinambá me falou: “pode colocar a pataca e começar a trabalhar” (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

Não foram encontrados indícios de que o desenvolvimento mediúnico no contexto daimista estudado seja realizado apenas como medida profilática para evitar os sintomas que supostamente são advindos da recusa da vocação mediúnica. No Santo Daime, o desenvolvimento da mediunidade não é o objetivo do culto, mas uma possível consequência.

Na pesquisa, todos os entrevistados relataram-me que tiveram seu potencial mediúnico exacerbado após a adesão ao culto daimista. Constatei também, em conversas com os fardados da Flor da Montanha, que são comuns casos de adeptos que não apresentavam sintomas de mediunidade, começarem a vivenciar experiências mediúnicas (não apenas de incorporação) nos ritos e posteriormente também na vida cotidiana. Os entrevistados revelaram que suas experiências mediúnicas foram intensificadas após adesão ao Santo Daime. Acreditam eles que, o Daime enquanto substancia que promove a expansão da consciência e dos processos psíquicos e sensoriais facilita e apreensão de informações que estariam disponíveis numa outra camada de realidade sobreposta realidade material. Uma

médium relata a respeito da dificuldade que teve ao ingressar no Santo Daime por conta da exacerbação de sua experiência mediúnica:

Quando eu cheguei no Santo Daime eu já tinha 14 anos de mediunidade trabalhada no Kardecismo, e o Daime, ele expandiu mais, ele afinou mais o instrumento, apurou mais meu aparelho pra exercer essa mediunidade. Mas no início foi muito difícil, porque eu mirava muito. O que me ajudou foi que, eu já trazia uma educação espiritual, um conhecimento espiritual, mas que tinha que ser adequado pra trabalhar dentro do Santo Daime. Então, eu me adequei, mas nunca diminuiu a minha mediunidade, ao contrário, fez foi aumentar (Entrevista realizada com Lúcia: Saquarema, 03 out. 2015).

Os daimistas acreditam que o Daime é um instrumento que expande a consciência através da ação do seu efeito psicoativo em certas áreas cerebrais pouco utilizadas cotidianamente. Através da sua ingestão, acredita-se ter acesso a conteúdos e informações que não estão disponíveis no estado de consciência ordinária, no qual estamos habituados a utilizar apenas os cinco sentidos conhecidos (tato, visão, olfato, audição, paladar) para apreender o mundo na vida cotidiana. Esses conteúdos dizem respeito à existência de entidades espirituais, acesso a informações advindas de memórias passadas, bem como acesso a conteúdos da mente inconsciente dos indivíduos. Para os daimistas, o Daime expande o estado de consciência a outros sentidos, além dos que se estariam acostumados, mostrando uma realidade expandida. Dessa forma, a ingestão do Daime combinado à prática ritual da religião poderia induzir os adeptos ao estado de miração que, como já mostrei, é um estado de transe extremamente complexo, podendo envolver vários tipos de fenômenos de percepção extra-sensoriais considerados na cosmovisão grupal como sendo mediúnicos.

Noto que, os adeptos podem ter sua sensibilidade perceptiva exacerbada, mas nem sempre chega a ser de forma tão sobressalente que os configure como médiuns segundo os parâmetros do grupo estudado.

Na concepção daimista, a mediunidade deve ser utilizada para o acesso ao mundo espiritual, para o autoconhecimento e para prestar a caridade espírita (auxiliando na iluminação tanto de seres encarnados como desencarnados), tudo isso tendo em vista o processo de evolução espiritual individual e planetário.

Segundo a concepção do grupo, que corrobora com a concepção espírita (kardecista e umbandista), cada espírito antes de encarnar, tem em certa medida, de acordo com seu grau de evolução, o livre arbítrio para escolher que tipo de missão desempenhara na Terra; em que contexto irá nascer, em que família, que tipo de profissão irá exercer, de qual religião fará

parte etc. Dessa forma, a presença da mediunidade também seria uma escolha, na medida em que oferece uma oportunidade de prestar caridade, equilibrar o ciclo cármico (de ação e reação) e consequentemente evoluir. Nesse sentido, pode assumir, portanto, uma conotação de missão a desempenhar ou dívida a saldar, tendo em vista o processo de evolução espiritual. Essa seria também a razão, na concepção do grupo, do porque alguns desenvolvem a mediunidade e outros não, já que de acordo com a crença grupal todos teriam essa potencialidade latente.

Segundo uma entrevistada a mediunidade seria advinda de um compromisso cármico que foi assumido antes desta encarnação, como é exposto a seguir:

O Caboclo Tupinambá falava que a mediunidade é um dom, que você pode através do desenvolvimento dela beneficiar outros, mas é também um carma. Você tá pagando uma dívida cármica e de certa forma você escolheu servir como um aparelho para que as curas aconteçam. Então, a mediunidade é também um resgate cármico. O médium nunca deve se esquecer disso pra não se engrandecer (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

Na concepção do grupo, as entidades guias também teriam uma missão a desempenhar junto ao médium, havendo, segundo relatos por mim registrados, um contrato prévio entre ambos que determinaria o trabalho conjunto a ser realizado na presente encarnação:

Na linha da Umbanda, é como se você tivesse combinado com aquela entidade que nessa encarnação você ia fazer esse trabalho com ela. Então, quando você chega aqui, ela vem trabalhar com você porque já foi combinado. Porque aquela entidade, ela também tem a cota que ela tem que cumprir. Mesmo aquelas entidades de luz que estão mais evoluídas, elas vem aqui na Terra porque tem uma missão. Porque aqui é uma escola, ninguém vem aqui sem ter um dever de casa a cumprir. Então, eu vejo a mediunidade como uma possibilidade de crescimento espiritual. Que é igual a uma faca, você pode usar a faca pra descascar um legume ou pode usar para ferir uma pessoa. Então, a mediunidade ela te dá uma possibilidade de um crescimento espiritual, desde que você opte por usa-la para o bem (Entrevista realizada com Elisa: Barra do Sana, 11 jul. 2015).

No discurso religioso, o desenvolvimento mediúnico seria um processo de aprendizado de longo prazo em contexto ritual, ao qual o médium se submete no intuito de conhecer, desenvolver e dominar a influência do mundo espiritual, tendo em vista o objetivo de prestar o trabalho de caridade e auxiliar na sua própria evolução espiritual e na de outros seres encarnados e desencarnados. Nesse sentido, pode-se destacarque, do ponto de vista da

identidade do grupo, este processo representa uma espécie de oportunidade de graduação, já que se considera que os adeptos podem evoluir espiritualmente ao se implicarem nas práticas mediúnicas. No entanto, a complexidade do ritual daimista e do estado de transe envolvido, imporiam ao processo de desenvolvimento mediúnico dos adeptos desta religião objetivos mais abrangentes que os umbandistas como veremos a seguir.