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No ano de 1964, chegou ao Santo Daime o homem que seria o sucessor de Mestre Irineu na tarefa de desenvolver e expandir a doutrina do Santo Daime. Sebastião Mota de Melo nasceu no município de Eurinepé63 no dia 7 de outubro de 1920. Segundo ele mesmo relata, desde os 8 anos de idade já tinha experiências de transe (ALVERGA, 1992).

Segundo as narrativas de sua origem, o Padrinho Sebastião, como assim é chamado, já vivenciava experiências de desdobramento astral e contatos com espíritos desde criança. Na sua juventude, conheceu um médium kardecista vindo de São Pauloque era referido por ele como Mestre Oswaldo, que o ensinou sobre mediunidade e lhe transmitiu os fundamentos do trabalho de mesa espírita, tornando-se seu grande orientador espiritual. Sob essa orientação, passou a trabalhar com dois guias64 kardecistas: o Doutor Bezerra de Menezes65 e o Professor Antônio Jorge66. Logo adquiriu fama como curador e rezador e passou a prestar atendimento para a população carente da região tratando os mais diversos problemas de saúde e principalmente obsessões por espíritos (ALVERGA, 1992).

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Pequeno município localizado na região amazônica do Vale do Juruá, no estado do Amazonas, à aproximadamente 1160 quilômetros da capital Manaus. Em 2015 o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estimou a população local da cidade em 32.025 habitantes.

64 De acordo com a literatura espírita, “guias” são espíritos evoluídos que se encarregam de influenciar de forma positiva o médium.

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Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti foi um médico, escritor, filantropo, político e um dos patronos da doutrina espírita no Brasil. Nasceu em Riacho do Sangue, interior do estado do Rio de Janeiro em 1831. Após seu falecido em 11 de abril de 1900, Bezerra de Menezes, como ficou conhecido, se tornou um dos principais guias espirituais do Kardecismo.

66 O professor Antônio Jorge é um guia espiritual bastante popular em centros espíritas do Brasil desde o início do século XX (Goulart, 2004). Ademais não foi possível obter dados biográficos deste em vida.

Após se casar e ter filhos, Sebastião se mudou com a família para a Colônia 500067, nos arredores de Rio Branco, capital do estado do Acre, onde continuou seu trabalho como médium recebendo tanto guias kardecistas como espíritos sofredores em busca de auxilio (ALVERGA, 1992; MORTIMER, 2000).

Sebastião Mota de Melo chegou ao Santo Daime em busca da ajuda de Mestre Irineu para curar uma doença misteriosa que o acometera. Sua primeira participação foi em um Trabalho de Concentração, no qual Mestre Irineu o instruiu a tomar o Daime e a sentar em seu lugar. Durante a sessão, Sebastião perdera a consciência e caíra no chão, o que ocorreu segundo suas palavras foi uma cirurgia espiritual.

Eu, já fora do corpo, fiquei olhando para aquele bagulho velho que era eu. De repente, se apresentam dois homens que eram as duas coisas mais lindas que eu já vi na minha vida. Resplandeciam que nem fogo. Aí eles pegaram e sacaram o meu esqueleto todinho de dentro daquela carne toda, sem machucar nada. E vibraram tudo de um lado para o outro. E eu do lado de cá olhando tudo que eles faziam. Tiraram tudo que era órgão, um deles ficou segurando o intestino com as mãos. Pegaram uma espécie de gancho, abriram, partiram e tiraram três insetos do tamanho de uma unha, que era o que eu sentia andar para cima e para baixo [...] Aí um deles disse: Está aqui. Quem estava te matando eram esses três bichos, mas desses você não morre mais. Aí eles fecharam e pronto! [...] Graças a deus fiquei bonzinho, igual a menino (ALVERGA, 1992, p. 84, 85).

Após este episódio, Sebastião tornou-se adepto do Santo Daime juntamente com vários membros de sua família e da comunidade onde vivia, passando a frequentar as reuniões. Depois de um tempo, Mestre Irineu concedeu-lhe autorização para produção de Daime e para realização de ritos daimistas na Colônia 5000, onde residia, por conta da distância e do difícil acesso a sede. Desde então, desenvolveu-se uma pequena comunidade do Santo Daime na Colônia 5000. Por ocasião do falecimento de Mestre Irineu no dia 6 de julho de 1971, houveram divergências a respeito de quem seria ou deveria ser seu sucessor. Apesar da escolha de Leôncio Gomes para a presidência do culto, muitos acreditavam que os hinos recebidos por Sebastião indicavam-no como o sucessor espiritual que levaria adiante a religião do Santo Daime (MORTIMER, 2000). No ano de 1974, Padrinho Sebastião como passou a ser conhecido, anunciou sua retirada oficial do centro de Mestre Irineu, e continuou a

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A colônia 5000 era um conjunto de lotes de terra que se situava nas proximidades da cidade de Rio Branco no Acre. Esse nome é advindo do preço pago por cada lote de terra, que na época custava 5000 cruzados. A colônia 5000 foi formada em 1975 “com a união de 25 pequenas colônias, num total de 380 hectares, congregando 43 famílias de seringueiros organizados sob princípios comunitários que se estabeleceram à medida que realizavam um trabalho espiritual profundo com o Santo Daime” (Froes, 1986, p. 27). De acordo com Froes (1986) no início da década de 80 a Colônia 5000 contava com aproximadamente 300 moradores.

realizar trabalhos com Santo Daime na Colônia 5000. Estima-se que mais da metade dos adeptos do culto o teriam seguido (COUTO, 1983; MACRAE E MOREIRA, 2011).

O Santo Daime se dividiu desde então em duas vertentes, o Alto Santo, onde foi mantido o centro fundado por Mestre Irineu, e o grupo comandado por Padrinho Sebastião, que foi oficialmente registrado sob o nome de CEFLURIS - Centro Ecléticoda Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (MACRAE E MOREIRA, 2011).

O núcleo da doutrina e dos rituais se manteve semelhante ao da época do Mestre Irineu, no entanto, algumas influências significativas foram sendo gradativamente incorporadas, de acordo com as necessidades que iam surgindo no âmbito da comunidade liderada por Padrinho Sebastião (ALVES-JÚNIOR, 2007).

Mesmo após sua adesão ao Santo Daime, Padrinho Sebastião nunca parou seus atendimentos como médium, passando agora a direcionar seus trabalhos mediúnicos para o ritual do Santo Daime, onde era comum ele incorporar espíritos sofredores em busca de iluminação, bem como guias espirituais e ocasionalmente apresentar episódios de glossolalia. Agora como líder de uma comunidade daimista tinha certa autonomia para realização de ritos onde pudesse exercer sua vocação mediúnica (ALVES-JÚNIOR, 2007).

A religião do Santo Daime já havia estruturado seu sistema de crenças em torno conceitos espiritualistas e adotado noções como evolução espiritual, reencarnação e carma como já exposto anteriormente. Percebe-se que neste momento os preceitos espiritualistas passaram a ser afirmados com mais ênfase através dos ensinamentos transmitidos por Padrinho Sebastião, que introduziu conceitos mediúnicos ligados a concepções kardecistas na liturgia daimista, como os trabalhos de banca aberta, a noção de caridade espírita e a doutrinação de espíritos. Os rituais passaram a ser concebidos como momentos para o intercâmbio com o mundo espiritual de forma mais direta, com o uso da mediunidade voltada para a caridade e cura de espíritos sofredores.

Da mesma forma que os kardecistas, os daimistas creem que os espíritos se comunicam continuamente com os homens através de seus pensamentos e desejos. Portanto, a realização dos rituais tem uma dupla ação doutrinadora, atuando direta e indiretamente sobre o mundo espiritual. Diretamente, pois se crê que muitos espíritos são atraídos ao recinto onde se realiza o trabalho, simplesmente para receber a “luz divina” que está sendo irradiada. Indiretamente porque são nesses momentos em que o adepto aprende a doutrinar seus pensamentos e desejos, doutrinando também os espíritos com os quais mantém contato mediúnico (MACRAE, 2000, p. 89).

A partir desse período de introdução mais intensa de conceitos doutrinários espíritas, o termo mediunidade passou a ser usado entre os daimistas, que passaram a concebê-lo de forma similar à kardecista. O fenômeno de incorporação passou a ser aceito, não como sendo objeto de exorcismos como na época de Mestre Irineu, mas como uma forma de uso responsável da mediunidade para prestar caridade.

Apesar de ter como modelo o trabalho de caridade espírita aos moldes do Kardecismo, cujo transe de incorporação é cercado de cuidados e controles, nesse primeiro momento, ainda não havia muita clareza a respeito de como realizar o trabalho mediúnico, nem haviam médiuns preparados para exercer o domínio preconizado sobre o transe de incorporação garantindo maior eficácia aos propósitos da doutrinação.

Portanto, esses primeiros anos de introdução de conceitos mediúnicos na doutrina daimista sobrecarregaram bastante Padrinho Sebastião, na medida em que ele era o único médium experiente que havia tido uma formação kardecista, realizando o trabalho mediúnico sem o auxílio de um corpo mediúnico68. Houve a tentativa, por parte de Padrinho Sebastião, de desenvolver alguns de seus seguidores que julgava mais aptos para o trabalho de incorporação, no entanto não havia uma diretriz clara a respeito do desenvolvimento mediúnico (ALVES-JÚNIOR, 2007).

Inicialmente, no desenvolvimento do trabalho mediúnico, não se percebe a introdução de práticas que fugissem aos preceitos espíritas. As ocorrências de incorporações compulsórias e descontroladas eram mal vistas devendo ser alvo de doutrinação por parte dos adeptos, reforçando-se a necessidade do controle do médium sobre a manifestação, passando a incorporação à condição de objeto de estudo.

Nos rituais do Santo Daime a doutrinação de espíritos69 pode ser feita havendo incorporação, quando o médium “dá passagem70” para o espírito sofredor em seu “aparelho” ou pode ser feita sem incorporação, quando o médium apenas sente a presença do espírito, buscando ajuda-lo através do diálogo mental, do canto de hinos e da irradiação de bons fluídos advindos da sintonização com sentimentos de amor, compaixão e perdão. Nesse

68 Corpo mediúnico seria o conjunto de médiuns com relativo grau de conhecimento e controle sobre os fenômenos de transe mediúnicos por eles vivenciados, capazes de exercer o trabalho mediúnico de contato com os espíritos durante um ritual, sendo também responsáveis por fornecer instruções que capacitem os médiuns neófitos.

69 Doutrinação de espíritos, segundo os kardecistas, é uma prática utilizada nas sessões espíritas de mesa. Essa doutrinação é feita quando um médium recebe um espírito sofredor e outro médium se encarrega de emanar luz e realizar uma preleção denominada “discurso fraterno” utilizando palavras para a elevação e encaminhamento do espírito.

70 Termo utilizado no meio daimista para se referir ao ato consciente do médium de autorizar a entidade a incorporar.

momento, não havia ênfase na prática de incorporação de entidades que realizassem passes, consultas ou transmissão de mensagens através do aparelho dos médiuns como ocorre na religião da Umbanda. O espaço ritual daimista, em seus primórdios, ainda não comportava este tipo de manifestação mediúnica.

Um distanciamento do Kardecismo foi efetuado a partir da introdução de preceitos mais flexíveis com relação à mediunidade de incorporação advindos da influência da Umbanda, cujo primeiro contato ocorreu no final dos anos 70 e posteriormente de forma mais incisiva no final dos anos 80 com o encontro de Padrinho Sebastião com a mãe de santo Baixinha. No entanto, antes disso, ocorreu um episódio na comunidade daimista da Colônia 5000 que iria ressaltar ainda mais a necessidade de trabalho voltado para o desenvolvimento mediúnico dos adeptos dentro da religião do Santo Daime.