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A análise da dimensão corpórea também assume um papel preponderante para a compreensão dos processos mediúnicos, pois, o fenômeno de incorporação possui uma materialidade consolidada na experiência corporal (GREGANICH, 2010). O corpo material, segundo o discurso daimista, é o suporte por meio do qual se torna possível a utilização da mediunidade e das experiências de incorporação como experiências espirituais genuínas, pois é através das sensações e percepções vivenciadas no corpo que o adepto acredita estar acessando a dimensão espiritual, fazendo com que a experiência religiosa adquira status de verdade absoluta (CEMIN, 2004). O corpo é a instancia que afirma a existência do fenômeno. Como vimos, o fenômeno de incorporação na igreja Flor da Montanha pode envolver diversos tipos de entidades, de panteões religiosos distintos. Nas Giras, geralmente ocorre a incorporação de pretos-velhos, caboclos, seres do vento e das águas ligadas às orixás femininas (Iemanjá, Iansã, Oxum, Nanã Boroquê), crianças e exus do panteão umbandista. No trabalho de Mensageiros da Cura pode ainda haver incorporação de médicos kardecistas e seres elementais da natureza ligados a animais, plantas, folhas e cristais. Segundo os entrevistados, a incorporação de cada entidade envolve a realização de gestos corporais diferentes e ocasiona sensações, sentimentos e reações fisiológicas distintas no corpo.

A questão corporal é bem acentuada nos fenômenos de incorporação, principalmente nas Giras, pois estes são marcados por meio de “manifestações corporais dramáticas” e

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Os Florais da Amazônia são um conjunto de tinturas medicinais de uso oral, feitas com essência de flores e plantas de origem amazônica, cujos princípios de fabricação, profilaxia e posologia são semelhantes aos Florais de Bach desenvolvidos pelo médico inglês Edward Bach nos anos 30. Os Florais da Amazônia se constituem em um sistema terapêutico que foi desenvolvido na comunidade do Céu do Mapiá pelas daimistas Isabel Barsé e Maria Alice Freire.

movimentos estereotipados, que são expressos pelas posturas e gestos realizados pelas entidades (ALVES-JUNIOR, 2007, P 155).

Geralmente nos ritos de Gira que ocorrem na Flor da Montanha, os gestos típicos são giros, movimentos com as mãos e braços, movimentos espasmódicos involuntários como tremores, suspiros, assobios, estalar de dedos, entre outros. Esse aparato gestual vem acompanhado de sensações corpóreas, que permitem aos médiuns identificarem e diferenciam as entidades.

De acordo com um apanhado feito das informações colhidas nas entrevistas, o transe de incorporação de cada linha de entidades ocasiona sensações fisiológicas e perceptivas diferentes no corpo do médium. Segundo os entrevistados, os caboclos trazem a sensação de força e vitalidade, coragem e destemor. Já durante a incorporação do povo de rua, os médiuns têm a sensação de peso no corpo e a vontade de dar gargalhadas sem motivo o que geralmente fazem. O transe de incorporação com pretos-velhos traz a sensação de calma, tranquilidade, paz, mas também traz sensações de dores no corpo, principalmente na coluna, o que faz com que muitos médiuns arqueiem as costas para frente assemelhando-se a postura de pessoas idosas. Segundo os médiuns, a incorporação de espíritos de crianças traz sensação de entusiasmo, leveza, inocência, alegria intensa e muita vontade de correr, pular e comer alimentos doces.

A incorporação de sofredores é considerada pelos médiuns como a mais difícil, pois traz uma gama de sensações desagradáveis para o corpo do médium, como: sensação de frio, desconforto, inquietação, sensação opressiva de medo e angústia. É comum também a sensação de dores generalizadas por todo o corpo ou dor específica em alguma área do corpo, que acredita-se ser a área onde ocorreu o ferimento fatal que ocasionou a morte desse ser. Na manifestação de sofredores, os médiuns eventualmente choram, gritam ou fazem lamentações, podendo ainda cair no chão e se contorcerem ou espernearem.

A incorporação de obsessores ou eguns como também são conhecidos no grupo também pode ser bem desagradável para o corpo físico, vindo acompanhada de sensações de frio ou calor extremos, opressão, sufocamento, escurecimento da visão, perda de controle dos movimentos corporais, bem como sentimentos de raiva, ódio, vingança, sendo comum também sua expressão por meio de gritos grosseiros, gargalhadas, linguajar com palavras pesadas e contorções faciais que expressam raiva ou escarnio.

A incorporação de espíritos da falange dos médicos kardecistas que podem ocorrer no Mensageiros da Cura, trazem para o corpo do médium a sensação de elevação, paz,

serenidade, visualização de luzes resplandecentes, sensação de clareza mental e de segurança absoluta no trabalho que está sendo feito. Também é comum a sensação de estar sendo envolvido por luz azul ou branca.

Com relação a incorporação de guias curadores da falange dos médicos, esta médium afirma que:

É uma força superior a sua vontade. Eu fico semiconsciente do espaço aonde eu estou. Porque o Daime ele expande a sua consciência, ele não fecha, ele amplia, então é possível você continuar com sua consciência num pano de fundo enquanto dá passagem pra uma outra consciência atuar no seu aparelho. Aí, eu sinto que no meu corpo tem uma força diferente, a percepção é aguçada. É como se ele trouxesse a visão dele, os olhos dele pros meus. Aí, eu vejo além... além da matéria do corpo, das coisas que tão ali. E eles sabem tudo que tem que fazer e eu fico ali só observando, e eles vão fazendo o que tem que ser feito. Quando chega o guia, você se sente confortável, envolvida. Ele muda a sua vibração e ele muda também a vibração ao redor. Ele ajuda a elevar (Entrevista realizada com Lúcia: Saquarema, 03 out. 2015).

O transe de incorporação assume características singulares envolvendo também uma “performance ritual” que varia conforme a entidade incorporada. Pela interpretação dos sinais emitidos pelo corpo durante a performance é possível distinguir qual a entidade está incorporada no médium. Portanto, é por meio do corpo, através da expressão performática do transe que a entidade afirma sua presença no rito (OLIVEIRA, 2011).

De acordo com a concepção do grupo, os movimentos corporais e gestos característicos de cada entidade teriam ainda uma função simbólica de influenciar nas energias do ambiente ou do corpo energético dos adeptos, alterando a ordem do mundo. A ordenação simbólica do “caos” de energias negativas presente no espaço do rito e nos corpos são manipuladas pelas entidades através do seu aparato de gestos e movimentos, colocando em cena um universo mítico de símbolos e de ações mágicas que visam a ordenação do mundo material através da manipulação de energias na esfera espiritual. A descarga de energias maléficas do corpo do consulente ou do ambiente do salão através da defumação do preto velho, a cura de alguma moléstia física através da intervenção dos médicos do astral, o encaminhamento de energias mais densas através dos gestos de contorções e gargalhadas do povo da rua, o equilíbrio do corpo energético através do passe do caboclo, todas estas intervenções são possíveis por meio de ações expressas através de linguagem simbólica que tem o corpo como suporte. Assim, o corpo é o veículo que possibilita a ação espiritual na realidade material, configurando-se

como ferramenta que garante a eficácia simbólica da performance e viabiliza a instauração da ordem no mundo (MONTERO, 1985).

A dimensão corporal fica também bem acentuada nas alterações fisiológicas que ocorrem no corpo dos médiuns durante o transe. Além das sensações diversas como tremores, alteração no ritmo respiratório ou nos batimentos cardíacos, movimentos espasmódicos, etc., outras correlações foram encontradas com relação as variáveis relacionadas à atividade corporal durante a experiência mediúnica de incorporação dos médiuns entrevistados, como:

1) exacerbação de funções perceptivas ligadas a audição, visão, tato, sendo comum fenômeno de clarividência e clariaudiência associados a incorporação;

2) experiência de ter o corpo tomado por uma energia que não é a sua própria;

3) experiência de estranhamento com relação a sua própria voz ou forma de falar, quando incorporado pela entidade, havendo alteração do tom de voz e da forma habitual de falar;

4) alterações na fisionomia, assumindo expressões faciais que se assemelham as características da entidade;

5) sensações, sentimentos, percepções e pensamentos reconhecidos como não sendo seus; 6) sensação de presença do guia no momento anterior a incorporação;

7) sensações particulares que variam conforme a entidade, como um sentimento de amor muito grande ou sensação de estar sendo inundado por um luz, podendo ser esta luz de determinada cor;

8) sensação de que sua própria personalidade fica em segundo plano, como um observador.

Com relação a estas sensações e percepções no momento do transe de incorporação vejamos estes depoimentos de três médiuns:

Eu sinto primeiro uma vibração muito forte. Eu procuro segurar ao máximo, porque quanto mais eu seguro, com mais força e clareza a entidade vem. Às vezes a proximidade da entidade traz essa vibração, então eu espero mesmo ela tomar conta. Essa vibração muitas vezes me dá uns tremores no meu corpo e aí chega a entidade. E quando chega eu sinto muita luz, muita satisfação, muito amor, aí começo a enxergar coisas que eu não tava enxergando, coisas que são a visão da entidade, sobre o que tá acontecendo com outra pessoa ou o que tá acontecendo no salão em termos de energias que estão circulando (Entrevista realizada com Marisa: Lumiar, 27 mar. 2015).

Meu transe é semiconsciente. Porque a gente fica com a consciência alterada ne?! Na primeira vez eu vi uma luz verde muito forte, meu corpo todo

começou a tremer e eu senti um grande amor. Um sentimento de amor muito grande pelo universo, por todo mundo (Entrevista realizada com Alice: Lumiar, 01 nov. 2014).

Minhas pernas começam a tremer, minha mão começa a suar. E eu sinto uma força muito grande ali naquele momento me tomando. Uma respiração muito forte. E sinto como se fosse a união de duas forças, uma que vem de fora e uma dentro de mim (Entrevista realizada com Eduardo: Lumiar, 04 jul. 2015).

Lembro que, todos os entrevistados descreveram seu transe de incorporação como sendo semiconsciente, ou seja, suas funções psíquicas não são completamente desalojadas, permanecendo a capacidade de discriminação e relativa vontade própria, havendo também a manutenção de certos aspectos de suas personalidades e o relativo controle da consciência e do corpo para interromper o transe se assim desejarem. Segundo o relato de um entrevistado, Mãe Baixinha costumava dizer que quando o transe é inconsciente, o médium não se desenvolve e não aprende com o guia, porque ficaria suspostamente ausente, como se a mente consciente ficasse desligada do corpo. Portanto percebi nas entrevistas que os médiuns se esforçam para que o transe seja efetivado de forma semiconsciente para que o médium também possa aprender com as entidades. De acordo com o imaginário do grupo o transe semiconsciente é o ideal a ser buscado.

Durante o transe semiconsciente, supostamente ocorreria uma sobreposição de características identitárias do espírito com aspectos da personalidade do médium, existindo a possibilidade do médium influenciar na manifestação da entidade.

Os médiuns desenvolvidos têm a capacidade de controlar os gestos, movimentos e fala das entidades, podendo por exemplo alterar certas palavras do discurso da entidade que julgar não apropriadas, ou restringir certos movimentos que não forem convenientes no contexto ritual, o que ocorre muito no Trabalho de Mensageiros da Cura, onde os médiuns incorporados devem permanecer sentados e sutilizar os movimentos das entidades. Isso pode ser bem expresso na fala desta entrevistada:

Hoje como eu desenvolvi mais controle, as vezes eu começo a escolher as coisas que a entidade fala, os gestos, aí as vezes a manifestação nem aparece muito. Você sente que você pode usar aquela força que tá ali presente da sua entidade, do seu caboclo e você usa, mas de uma forma mais controlada, mais sutil (Entrevista realizada com Alice: Lumiar, 29 mai. 2015).

Nota-se que a performance ritual da incorporação é um processo interativo entre as duas instancias envolvidas no transe: médium e entidade, sendo essa relação também

influenciada por um terceiro elemento: o ambiente ritual. Este terceiro elemento é que molda a forma do fenômeno. Dessa forma, percebi que os transes de incorporação dos caboclos nas Giras é diferente dos transes dos mesmos caboclos no Mensageiros da Curas. Neste rito, os caboclos da Umbanda devem se adequar as regras daimistas. No desenvolvimento mediúnico no contexto estudado, busca-se que a expressão corpórea fique cada vez mais sutil e menos caracterizada pelo mimetismo performático das entidades.

O médium quando ele vai atingindo um grau, ele começa a manifestar de outras formas, numa palavra, às vezes num atendimento que alguém tá precisando. Não é uma coisa que precise ficar tremendo, chacoalhando. Que é um outro nível de trabalho. Mas tem vários níveis. Pra quem tá chegando tem que passar por isso, de girar, de chacoalhar, mas tem que saber que o objetivo é ir cada vez mais pra esse plano sutil. O caboclo Tupinambá quando ele vinha, ele dava o axé, a saravada dele anunciando que ele chegou, mas ele não ficava o tempo todo girando. Depois que entrava a energia, ele ficava mais sutil e ia só dando as instruções. Mas cada lugar tem seu jeito. Tem entidade que assobia, assopra. Dentro do Santo Daime mesmo, já pensou se todo mundo levanta, e começar a girar, aí vira gira e perde a característica do trabalho de mesa sentado. Às vezes quando vem uns seres, a pessoa até cai da cadeira, aí a gente acolhe, dá um pouco de Daime pra doutrinar aquele ser. É um outro tipo de trabalho. O objetivo é sempre o autodesenvolvimento de cada um, o autoconhecimento, a caridade, a cura. Na verdade o objetivo de ambos os trabalhos é o mesmo, tanto a Gira como o Mensageiros, a forma que é diferente. Eu acho que quando você toma mais Daime, tem que aprimorar um pouco mais a questão do autoconhecimento do teu eu. Eu acho que ambos os trabalhos se complementam, para o desenvolvimento mediúnico (Entrevista realizada com Alice: Lumiar, 29 mai. 2015).

Como pôde-se perceber a dimensão corpórea é bem preponderante no desenvolvimento mediúnico no contexto daimista estudado. Nos dois tipos de trabalho mediúnico aqui descritos, a Gira e o Mensageiros da Cura, percebe-se a diferença na linguagem a qual o fenômeno de incorporação se expressa. No entanto, segundo os entrevistados, ambos os trabalhos se complementam, oferecendo ao adepto oportunidades de vivenciar nuances gradativas do transe; tanto a espontaneidade performática da Gira quanto a contrição disciplinar do Mensageiros da Cura, o que na visão deles enriquece o processo de desenvolvimento mediúnico e contribui para um maior entendimento do fenômeno de incorporação, que como já mostrado, exige do adepto muito discernimento.