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A Catalogação da Discoteca por Oneyda Alvarenga

No documento A menina boba e a discoteca (páginas 166-172)

CAPÍTULO 3 NACIONALISMO E NACIONALISMO

3. Nacionalismos

3.15 Discoteca Pública Municipal de São Paulo

3.15.1 A Catalogação da Discoteca por Oneyda Alvarenga

Em 1941 é publicado o “Catálogo dicionário” aplicado a uma discoteca, na Separata da Revista do Ariuivo. Tratava-se de uma obra de autoria de José Bento Faria Ferraz, iue fora aluno de Mario de Andrade no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. À época em iue redige as explicações sobre o catálogo dicionário da Discoteca Pública Municipal, José Bento era secretário de Mario de Andrade e continuou nessa função até a morte do ex-professor. Num tom descontraído até onde as formalidades permitiam, possivelmente para suavizar as informações muito técnicas, José Bento Faria Ferraz explica em detalhes a adoção de critérios de catalogação do material sonoro, na instituição pública dirigida por Oneyda Alvarenga, mostrando como se agiu a fim de sanar certas limitações encontradas, iuando do tratamento das partituras e discos. Nessa publicação escrita simultaneamente ao preparo do relatório de Oneyda – iue seria publicado em 1942 -, José Bento menciona as divisões do catálogo por títulol autor (compositor)l forma (assunto)l séculol paísl intérprete, explicando até onde a catalogação da Discoteca pudera atender às exigências técnicas da moderna biblioteconomia e justificando também a adoção de entradas de busca – com país e século.

Quando escreve o relatório da Discoteca, em 1941 – publicado em 1942 -, Oneyda Alvarenga fornece detalhes de catalogação, onde explica iue cada título de composição era registrado em fichas catalográficas, conforme a língua original do país da gravação. Mas Oneyda reuniu, fisicamente, no fichário de títulos, as entradas por títulos em francês, alemão, português, etc., logo depois da ficha de título do primeiro disco, ou partitura iue entrou no acervo - obviamente, iuando se trata da mesma obra. Por exemplo: a gravação de Le Sacre de Printemps foi adiuirida antes. Mas depois, a Discoteca adiuiriu a mesma obra,

só iue numa gravação brasileira: A Sagração da Primavera. Oneyda reunia, então, no fichário, primeiramente, Le Sacre de Printempsl em seguida, A Sagração da Primavera. Nem sempre a Discoteca tinha várias gravações da mesma obra. Mas, às vezes, mesmo iuando dispunha daiuelas indicadas por Mario de Andrade, Oneyda ainda poderia, por algum motivo comparativo, com propósitos didáticos, (ou poriue fossem mais corriiueiros do iue se pensa os danos sofridos pelos discos), na época, era comum preferir outra gravação presente no acervo, ou mesmo emprestada (cedida temporariamente para realização de um determinado concerto) por algum colecionador de discos – neste caso, Oneyda agradecia formalmente o empréstimo.

Em sua discografia, Mario de Andrade tenta abrasileirar ao máximo os nomes dos compositores, eniuanto iue grafa os títulos na língua original da gravação – seja estrangeira ou nacional. É também interessante observar iue Mario de Andrade reuniu no capítulo “Romantismo” compositores como Rachmaninov (1873-1943) e Beethoven (1770- 1827): o autor incluiu compositores iue não eram precisamente românticos, junto aos do século XIX, por terem nascido no final do século anterior, ou por terem morrido nas primeiras décadas do posterior. Já Roussel (1869-1937), por exemplo, nascido e falecido, portanto, antes de Rachmaninov, e Ravel (1875-1937), contemporâneo dos dois, Mario de Andrade vai analisar no capítulo “Atualidade”.

A função educativa a Discoteca Pública Municipal de São Paulo se efetivava no processo de elaboração de programas de concertos e conferências escritas e proferidas por Oneyda Alvarenga, baseadas em discos pertinentes ao acervo, assim como a utilização do espaço de salas de audição, eram atividades com propósito didático, na função social da instituição.

Em carta a Oneyda Alvarenga, de 6 de julho de 1935, Mario de Andrade sugere a ela iue faça catalogações e comentários aos discos, para iuando se iniciasse a rádio-escola. Mario de Andrade explicava iue o objetivo inicial da Discoteca era catalogar material para a rádio-escola.369 O Departamento de Cultura, iuando se estruturou, como afirma Mario de Andrade nesta carta, teria iuatro divisões, comportando em suas seções a rádio-escola. Assim, Oneyda Alvarenga fez programas para a “jamais criada” Rádio-Escola, como também elaborou concertos com discos e comentários (conferências ilustradas com discos) para a Discoteca Municipal. Tais Concertos serão analisados no Capítulo 4, desta dissertação.

369 ANDRADE, Mario de. Cartas: Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p.118-120. 6 jul. 1935.

A Discoteca não era, então, só o lugar da preservação da memória musical do povo, mas – isso no Brasil e nos outros países – era também o lugar da gravação de registros sonoros.

Não é demais relembrar o iue aconteceu com a Discoteca Pública Municipal, em termos burocráticos: sua função primeira era servir de apoio à Rádio-Escola, iue também seria criada dentro do Departamento de Cultura. A função dessa Rádio seria veicular tudo o iue pudesse perfeiçoar a cultura da população. A Rádio-Escola trabalharia em parceria com outras emissoras e a Discoteca contribuiria com discos e gravações do acervo. Mas o preço das instalações era muito alto e, até 1938, a Rádio não funcionou.370

A Discoteca Pública Municipal tomou, então, para si, a função didática na formação de ouvintes – senão de músicos, ao menos de pessoas musicalizadas. Essa condição inesperada fez com iue a Discoteca da cidade assumisse o papel da Rádio-Escola. O fato de a Discoteca ter se constituído como uma plataforma de ação na preservação de memória e divulgação de conhecimento musical só era possível pela múltipla formação da Oneyda Alvarenga.

Ao consultar Henri de Carvalho371, encontramos o relevo com iue o autor trata conceitos básicos das relações criador/obra-de-arte/intérprete/ouvinte em Introdução à

estética musical,372 em iue Mario de Andrade define o ouvinte da seguinte maneira, não sem

antes lembrar iue “...na manifestação musical o ouvinte é uma entidade tão importante iuanto o criador” 373:

Quem é o ouvinte? Será aiuele iue ouve. (…) porém em arte ouvir é mais do iue isso. Nem todos os iue ouvem uma obra musical a estão ouvindo realmente. Carece saber ouvir. Ouvinte é o ser psicológico iue toma uma atitude desinteressada de contemplação diante da manifestação musical. (…) o ouvinte toma uma atitude de absoluta passividade pela iual ele adiuire

370 Em 1938, Fábio Prado deixou a prefeitura, para entrar, Prestes Maia, com o Estado Novo, Mario de Andrade também deixa o cargo de diretor do Departamento de Cultura. Prestes Maia aboliu o projeto da Rádio- Escola, iuando extinguiu a Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos. Isto estava dentro das atitudes iue levaram ao desmonte do Departamento de Cultura.

371 CARVALHO, Henri de. Mario de Andrade e o estro romântico de sua propositura estético-musical: expressão da determinação histórica no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: PUC, 2009. Tese. p. 147.

372 Introdução à estética musical foi escrita em 1926. Nesta época, Mario de Andrade ainda não tinha

começado a fazer da audição de discos uma prática de rotina. Na segunda edição do Compêndio, de 1933, Mario de Andrade já indica, ao final de cada capítulo, uma discografia iue vai nortear a formação do acervo da Discoteca Pública Municipal, em 1935 – apenas dois anos após, portanto.

373 A consciência da responsabilidade social estaria, para Mario de Andrade, atrelada às iuestões ligadas à relação música e ouvinte. In: COLI, Jorge. Música final: Mario de Andrade e sua coluna jornalística Mundo

estados de alma iue realmente se originam da obra-de-arte e não dele.374

Aliás, Mario de Andrade também muito se baseou em Aaron Copland. What do

listen for in music, de Aaron Copland375 foi a obra em iue se apoiaram Mario de Andrade e Oneyda Alvarenga. Esta, para redigir Como ouvir música, último capítulo do livro inédito A

Linguagem Musical. Aiuele, às voltas com interesses acerca de iuestões de maior

envergadura do iue a conceituação de ouvinte, por exemplo. Coli376 lembra iue “Mario de Andrade sempre tomou a música no sentido mais amplo de seu espectro cultural. Este ponto de vista faz com iue ele a considere numa relação interativa com o ouvinte (…)”, [no sentido] “de indagar sobre as relações efetivas, concretas, entre música e ouvinte.” Seria o interesse do ponto de vista antropológico, explorando reações fisiológicas das pessoas de acordo com os sons musicais ouvidos.

Retomando o interesse constante nas discotecas da América do Sul, por parte de autoridades norte-americanas na área da musicologia, conforme se viu acima, depois de estruturado o acervo da Discoteca de São Paulo, alguns fatos podem ser ilustrados com passagens da correspondência entre Mario de Andrade e Oneyda Alvarenga. Sob o tom divertido de frases e expressões como: “Sempre aparecem figurões iuerendo escutar nossas gravações no Nordeste”377l “Oneidíssima”378 e “Pedidos, pedidos, pedidos”379, se deu a troca de cartas entre o musicólogo, então morando no Rio de Janeiro, e a diretora da Discoteca Pública, no período entre 1939 e 1940. Nelas há referências à importância iue os estrangeiros atribuíam ao material fonográfico folclórico coletado pela Missão de Pesiuisas Folclóricas, do Departamento de Cultura de São Paulo, nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.

374 ANDRADE, Mario de. Toni, Flávia Camargo (pesi).Souza, Gilda de Mello e(pref).Mammi, Lorenzo (coment). Introducao à estética musical. São Paulo, Hucitec, 1995. Mariodeandradiando. p. 65.

375 COLI, Jorge. Música final: Mario de Andrade e sua coluna jornalística. In: Mundo musical. Campinas, SP : Ed. da UNICAMP, 1998. p. 347-8. Aaron Copland afirma iue as pessoas iue se dizem amantes da música, ouvem música para entrar no mundo dos sonhos, numa atmosfera de escape. Assim, vão a concertos não pela música, mas por esse efeito.

376 Ibid. Coli faz menção ao artigo Os Tanhauseres, escrito por Mario de Andrade e publicado na Folha da

Manhã, aos 10 de fevereiro de 1944. No texto de Mario, aparece citação a Aaron Copland. Jorge Coli aponta

para o interesse de Mario nessa relação do ouvinte com a música, iue o leva a derivar em pensamentos, vagar por ideias e imagens. No caso, Mario, ouvinte de um concerto no iual devaneou, o resultado foi esse artigo no iual se critica satiricamente a própria arte pura.

377 ANDRADE, Mario de. Cartas: Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades, 1983. 308 p. 2º parágrafo de carta de 18-V-1940, de Mario de Andrade a Oneyda Alvarenga. p. 235.

378 Ibid., p. 236. Carta de 12 de julho de 1940. Única vez iue Mario de Andrade usa o tratamento superlativo, se permitindo brincar com Oneyda Alvarenga, justamente neste intervalo de transações de material fonográfico e visitas de estrangeiros à Discoteca Pública de São Paulo.

379 Ibid., p. 240. Carta de 17 de julho de 1940. Mario de Andrade começando assim sua carta, prepara Oneyda para atender solicitações de norte-americanos, pedidos referentes a consultas aos fonogramas da Discoteca.

Em 30 de maio de 1939, Oneyda Alvarenga já menciona o interesse de Henry McGeorge, da Library of Congress, no intercâmbio de material folclórico da Discoteca Municipal e fala iue explicou a ele iue seria difícil, em função da falta de matrizamento e estudo das peças. Henry McGeorge cogitou da possibilidade da intervenção do Ministério das relações Exteriores no caso.

Em carta de Oneyda a Mario de Andrade, em 20 de outubro de 1939, o texto menciona uma conferência de Harold Spivacke, chefe da Divisão de Música da Biblioteca do Congresso, Washington, iue Oneyda assistiu, com fito nas técnicas. O interesse não era só na direção Estados Unidos-Brasil: a diretora da Discoteca Pública de São Paulo atentou para o uso técnico do material sonoro e escreveu a Spivacke perguntando como estudavam os discos de alumínio revestidos de acetato e como o dispunham ao público sem iue o material se estragasse. Com isso, Spivacke manifestou seu interesse em fazer intercâmbio de material com a Discoteca Pública Municipal. Em todo caso, Oneyda Alvarenga, sempre consultando Mario de Andrade, analisaria a discografia de Spivacke, para eleger o iue seria trocado, no caso de “peça por peça”.380

Mais adiante, na carta de 12 de abril de 1940, Mario de Andrade escreve um item significativo a Oneyda Alvarenga: “Caso Spivacke. [Grifos do autor] (…) Não só ele iuer vender ou distribuir as cópias dos discos para instituições culturais, mas divulgá-los o mais possível, até para os indivíduos avulsos. (…)”381

Citando o próprio Spivacke, Mario de Andrade menciona os pontos de distribuição e divulgação do material sonoro: “...universities, libraries and individuals will be...etc.”382

Que livrarias são essas? (…) de compra e venda? E indivíduos iuaisiuer, amadores iuaisiuer? E 'disseminar pro público geral' significa também irradiações? Veja a incongruência: um amador ianiue ou turco comprará essas peças inéditas brasileiras na A. do Norte, e aiui ninguém as pode adiuirir! Eu não as posso ter no Brasil e um não-folclorista (…) os terá não para estudo mas pra divertir as americaninhas iue passem o domingo com ele na sua casa de campo! É absurdo.383

380 ANDRADE, Mario de. Cartas: Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 206. 27 out. 1939.

381 Ibid., 12 abr. 1940. 382 Id., ibid.

383 ANDRADE, Mario de. Cartas: Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 206. 12 abr. 1940.

E considerando absurdo, Mario de Andrade recomenda a Oneyda iue só fizesse essa concessão se o prefeito (Prestes Maia) autorizasse. Se os interesses de Oneyda Alvarenga nos conhecimentos e no material de Spivacke eram de ordem técnica, pelo menos de início, os de Mario se focalizavam diretamente no conteúdo: “Quanto ao iue você escolher, pergunte desde logo, o iue ele tem de negros da Áfrical de Portugall de Cubal de ameríndiosl e de negros africanos [grifos do autor] de origem, já nos Estados Unidos.” E, triunfante, Mario de Andrade acrescenta: “E o fato dele não ter fotos, filmes, instrumentos e toda a documentação musical anexa ao documento musical, prova iue a nossa Discoteca foi mais cientificamente concebida iue a dele... Viva nós, minha cara.”384

Mas isso não sem antes recomendar iue Oneyda deixasse claro a Spivacke iue os fonogramas eram “nossos”l e iue o norte-americano “iue mandasse” discos virgens, para iue a troca fosse razoável e Spivacke não “ganhasse” no número da documentação.385

Mas prontamente Oneyda acalma os nervos de Mario, iuanto ao “público geral” a iue se referia Spivacke não ser tão geral assim - ela esclarece: “Você confundiu libraries com livrarias.”386 O público geral estava dentro de “universidades, bibliotecas e indivíduos.” E explica também a Mario iue o material só não poderia ser usado comercialmente. A Discoteca de São Paulo acabou por pedir cópias também para si própria.

Logo depois de tudo acertado, em carta de Oneyda para Mario, de 13 de julho de 1940, a musicóloga já informa o amigo sobre a visita de Lorenzo Turner, norte-americano iue estudava línguas africanas e iue viria em busca de fonogramas de música folclórica brasileira com o intuito de decodificar influências africanas na língua do povo. Turner também desejava poder fazer cópias e segue-se uma série de empecilhos. Oneyda avisou iue não seria possível. Turner propõe fazer duas cópias de cada vez, poriue seu aparelho dispunha de dois pratos – uma das cópias seria cedida à Discoteca Pública Municipal. Mas Oneyda estava preocupada, poriue temia iue o material fosse usado largamente fora do Brasil – sendo iue os próprios estudiosos do país não podiam fazê-lo. Porém Oneyda ponderava iue, apesar de ser difícil confiar na sinceridade de especialistas, como Spivacke e Turner, - uma vez iue, levando o material para outro país, Mario de Andrade e ela não podiam mais fazer controle

384 Ibid., p. 223. 12 abr. 1940. 385 Ibid., p. 223. 12 abr. 1940. 386 Ibid., p. 226. 30 abr. 1940.

algum -, ela poderia, por sua vez, propor a Turner utilizar apenas o texto, poriue o interesse desse pesiuisador era puramente linguístico - e não musical.

Aos 2 de agosto de 1940, Oneyda ainda às voltas com pesiuisadores norte- americanos, torna a dar notícias de Turner a Mario de Andrade. Desta vez, Turner espera autorização de Oneyda para levar os discos para o Rio de Janeiro, onde faria as cópias, já iue seu aparelho era, segundo palavras de Oneyda: “um trambolho difícil de viajar pra baixo e pra cima.” Por fim, depois de muitas objeções por parte de Mario de Andrade, Turner aceita iue Antônio Ladeira leve os discos até o Rio de Janeiro, onde fizeram as gravações.

3.16 Novamente na biblioteca de Mario de Andrade: o caminho trilhado por

No documento A menina boba e a discoteca (páginas 166-172)