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CATARSE E ESTRANHAMENTO: CONSCIÊNCIA EMOCIONADA PROCEDIMENTOS CÊNICOS QUE GERAM APRENDIZAGEM

2.5 A catarse e o estranhamento como procedimentos colaborativos.

Como conclusão, podemos acrescentar que, se bem os mecanismos do teatro aristotélico se diferenciem dos empregados pelo teatro brechtiano, tanto a catarse (em sua identificação emocional mobilizando a piedade e o medo), como o estranhamento (estimulando a perspectiva racional induzida pelo distanciamento) tentam levar o espectador a uma experiência de compreensão significativa e, de todo modo, não opostas. A crença na qual emoção e razão funcionam separadas é hoje obsoleta, levando-nos a concordar com Leon Golden (Golden: 1962), quando ele afirma que a catarse, em seu aspecto mais valioso, geraria uma iluminação intelectual que coincidiria com o aspecto político de induzir a mudança privilegiada por Bertolt Brecht. Por outro lado, é possível que o emprego do distanciamento tenha se convencionalizado e já não cause a mesma estranheza que em seus inícios. Podemos, então, afirmar que o estímulo provocado pela tragédia no espectador é tão racional como afetivo e que estes não se anulam quando um opera com mais força que o outro.

Proponho, como ideia central desta tese, a premissa de considerar a catarse

aristotélica e o estranhamento brechtiano, apesar de serem duas aproximações técnicas e divisas teatrais que aparentemente diferem quanto à sua estética e seus preceitos, como não contraditórias na experiência do espectador. Podem

ocorrer ao mesmo tempo e de forma simultânea frente à vivência da tragédia shakesperiana, experimentada no mundo contemporâneo.

A ideia aristotélica da catarse e o estranhamento brechtiano podem se dar juntos, coexistindo e funcionando de forma complementar, particularmente no caso do teatro elizabetano, já que este incluía, em sua construção, certos dispositivos incipientes de estranhamento como são os apartes, quando o personagem dialoga dirigindo-se diretamente ao espectador. O texto dramático, quando é encenado e é encarnado por atores, recupera sua dimensão verdadeira. O fósforo é mais fósforo quando se inflama, e o teatro é mais teatro quando se inflama na cena. É a encenação que o torna presente e vivo frente à plateia, gerando um convívio 120 concreto, em que a experiência

119 O termo „convívio‟ foi desenvolvido por Jorge Dubatti, historiador e crítico argentino. Escritor de

inúmeras publicações como,Filosofía del Teatro I. Convivio, experiencia, subjetividad. Buenos Aires: Atuel, 2007 e El convivio teatral: Teoría y práctica del teatro comparado. Buenos Aires: Atuel, 2003.

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compartilhada é o que define verdadeiramente o teatro. É o texto encenado, encarnado e exibido ante o público que converte o texto dramático em verdadeira performance, capaz de estranhar e identificar, gerando emoções que iluminam ao mesmo tempo em que se enraízam como aprendizagem no corpo dos espectadores. É a experiência da presença que possibilita a tomada de consciência e modifica as condutas dos seres humanos. É a experiência compartilhada com o público e o encontro disso com tudo que implica a arte teatral em exercício, em presença, o que converte o teatro em uma experiência concreta de realidade. Foi criado para viver e morrer na mesma noite, consumindo-se na medida em que dura a experiência. Graças a este ato sacrificial é que o espectador pode comover-se, sentindo compaixão, piedade ou terror. É durante o

convívio que o espectador se sente mobilizado porque lhe são apresentadas energias

que o impulsionam a sair de sua inércia para atuar e modificar sua realidade. Frente à experiência do teatro em presença é que a verdadeira natureza do texto dramático recobra vida. A tragédia é vivenciada como pena compartilhada pela comunidade, muito diferente (quanto à potência energética convocada) de quando é lida e, portanto, experimentada como texto e na solidão requerida pela leitura. O texto dramático encenado recobra uma vida breve mas intensa e se torna imensamente poderoso e penetrante. A tragédia vital ocorre frente aos olhos do espectador, é em comunidade que se assiste a seu nascimento, maturidade e morte.

Apesar de sua origem clássica, uma obra proveniente do contexto elizabetano pode ser rearticulada, a partir de sua montagem ou encenação, para provocar o olhar crítico e racional do espectador desejado por Brecht. É improvável que o debate acadêmico logre elucidar, de forma definitiva, a discussão sobre a catarse versus o distanciamento e, não havendo acordo final acerca da capacidade perene que possui a tragédia para estimular no homem a capacidade reflexiva, é possível continuar redescobrindo diversas conexões.

Uma dessas conexões é a que propomos aqui e se refere à possibilidade de admitir que a cena possui a faculdade de produzir no espectador a combinação da catarse e do estranhamento, ocorrendo de forma simultânea ou sucessiva. Esta

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coexistência entre a catarse aristotélica e o estranhamento brechtniano é o que chamamos de consciência emocionada. Este é um conceito criado à luz deste trabalho, cuja finalidade é possibilitar a fusão daquilo que identifica e comove ao mesmo tempo em que aquilo que distancia e despersonaliza, mobilizando a ação. Consciência emocionada é um termo que busca dar conta daquilo que acreditamos que possa acontecer na experiência e no corpo do espectador contemporâneo, quando presencia uma tragédia shakespeariana (como as analisadas aqui), realizando uma ponte de sentidos e significados entre acontecimentos exibidos pela história representada e o próprio contexto, histórico social.

Seja que o espectador se torne comovido e mobilizado pela piedade e o terror, ou se torne ideologizado ao pensar que, se organizado, pode modificar as estruturas sociais que o oprimem, em ambos os casos o receptor é modificado em sua noção de realidade. Se lhe foi apresentada uma realidade específica que difere da própria, permitindo-lhe realizar reflexões tanto sobre o que está fora (circunstâncias sociais), como sobre o que tem a ver com seu mundo interior (circunstâncias individuais), produz-se um diálogo entre o biográfico e o historizado.121 Tanto o desejo de gerar catarse como a intenção de gerar distanciamento são formas de indução cujos fins são similares: ambas pretendem convidar à reflexão, à aprendizagem e ao contato social; portanto, ambas buscam produzir efeitos em termos políticos e, como veremos mais adiante, podem nos ajudar para construir noções solidárias de humanidade.

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O teatro épico será a dramaturgia que parte da noção de História para, aprofundando os conceitos e fatos históricos, auxiliar e transformar a História. O efeito de distanciamento será uma técnica apoiada basicamente na noção de historização. Fernando Peixoto, Brecht: uma Introdução ao Teatro Dialético(.Rio de Janeiro.Lluvia, 1989)32.

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“Os direitos humanos constituem aquela parte da moral que não só se deve respeitar no trato pessoal, mas também converter-se em realidade política”.122

Jurgen Habermas

CAPÍTULO 3