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CATARSE E ESTRANHAMENTO: CONSCIÊNCIA EMOCIONADA PROCEDIMENTOS CÊNICOS QUE GERAM APRENDIZAGEM

2.2 A ideia de cura na catarse Aristotélica.

Uma das frases de A Poética de Aristóteles, motivo de grande controvérsia, análise e discussão entre acadêmicos e intelectuais, é a que se refere ao efeito catártico da tragédia “di' eleou kai phobou perainousa ten ton toiouton pathematon

katharsin”.76 O conceito de catarse é, por isto, oscilante e impreciso, com diferentes significados e alcances no decorrer da história. Teddy Brunius classificou 1425 interpretações diferentes até 193177. A grande maioria se inscreve em três linhas principais: termo médico, moral ou cognitivo. Noreen Krusse agrupa-as em três categorias diferentes, segundo seu efeito sobre o espectador: esclarecimento, purificação e limpeza. A interpretação de catarse como purificação física está relacionada à eliminação do indesejado, provocando sensação de alívio e bem-estar. Jacob Bernays (1824-1881), filólogo alemão, colaborou para o sentido fisiológico da catarse, comparando-a a uma cura homeopática, resultando em purificação do ânimo: ao receber o medo e o horror vindos do argumento trágico, estes seriam eliminados do corpo do observador. Outros a entendem como um processo estético derivado do efeito trágico, que, graças à mimese (praticada e desfrutada por todo gênero humano), produz aprendizado, provocando prazer em quem a experimenta. Até finais do século dezoito, era compreendida como uma purificação que eliminava temores e proporcionava uma cura emocional e terapêutica para o espectador. Alguns teóricos têm discutido sobre qual é o lugar onde ocorre a catarse. Euben e outros pensam que ela acontece no interior da própria tragédia, no texto e na ação dramática. Golden e Grassner tendem a situá-la dentro do próprio corpo do espectador, o que nos parece mais adequado, pois é

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A tragédia produz, por meio da (dia) piedade e do medo (eleou kai phobou) trazidos pela mimese (perainousa), a catarse destas (toiouton) emoções ou sofrimentos (pathematon). Donald Keesey, “On Some Recent Interpretations of Catharsis,” The Classical World 72, no. 4 (1979): 179.

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KRUSE, Noreen W. The process of Aristotelian Catharsis: A reidentification. Theatre Journal, v. 31, n. 2, p. 162-171, 1979.

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o sujeito-espectador o que efetivamente se abala diante do estímulo provocado pelo drama.

O analista Donald Kessey78 escreve um exaustivo estudo recorrendo às mais recentes interpretações de catarse realizadas por diferentes críticos, entre os quais podemos destacar os seguintes: León Golden, que a associou a uma noção de certeza e clareza cujo efeito mais valioso seria a iluminação intelectual, afirma que:

dado que a catarse pode significar tanto esclarecimento como purgação e purificação, havemos de convir que, a adoção de uma interpretação intelectual para este termo, geraria unidade no argumento da Poética, de forma que não é possível nenhuma outra interpretação existente. Só quando traduzimos catarse por esclarecimento somos capazes de atribuir à mimese trágica o telos que Aristóteles atribui à mimese em geral. 79

Esta acepção é defendida pelo professor Golden, porque o presenciar de situações dolorosas apresentadas nas tragédias, com a encenação de atos horríveis e, às vezes, até macabros, proporciona também uma sensação de prazer. Não pela morbidez em si, mas pela retribuição oferecida pelo aprendizado com o qual nos defrontamos, graças ao processo desencadeado pela compreensão dos acontecimentos encenados que imitam os fatos da vida. Neste sentido, podemos acrescentar que o ato de presenciar uma tragédia, no mundo grego, pode também ser considerado como um ato epiméleia heautou ou de cuidado de si, analisado por Foucault no final de sua vida, nas aulas de 1982.

Frederick Pottle possui uma interpretação mais pessoal, desligando-se até mesmo do próprio Aristóteles, como ele mesmo reconhece:

O maior mal do homem é, repito, o medo que o assombra de que ele seja forçado a admitir que o universo não tem sentido. A piedade e terror com os quais lida a tragédia são ambos reflexos desse medo. A tragédia deve usar o material de piedade e terror incansavelmente, pois só assim poderá encarnar o nosso problema central, mas ao impor forma a piedade e ao terror, dando-lhes sentido, faz-nos sentir, pelo menos temporariamente, que há propósito em nossas próprias aflições e

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KEESEY, Donald. On some recent interpretations of catharsis. The Classical World, p. 193-205, 1978.

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O professor Golden foi um especialista importante em estudos clássicos e escreveu vários textos relacionados aos estudos da tragédia grega e da catarse. Nossa tradução.

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distrações. Outorgando um modelo para a piedade e o terror, podemos purgar, por um momento, nosso terror e piedade do acaso ou sorte do dia a dia.80

A partir desta perspectiva, a arte teatral tenta explicar os mistérios existenciais que têm perturbado o homem desde sempre e sua criatividade estaria buscando estrutura para contê-lo.

Outra teoria interessante é a do professor James Highland, baseada nas obras de botânica de Teofrasto, aluno de Aristóteles. Fornece uma interpretação particular de catarse, relacionando seus significados ao amadurecimento, crescimento e à transformação, acrescentando novas leituras ao mundo dramático. O conceito de eliminação é entendido como corte, poda, adelgaçamento, sendo o excesso extraído, fortalecendo e dando direção desejada às emoções negativas, para que a cura seja efetiva. Segundo ele, a catarse libera de um apego excessivo à vida de trabalho (ascholes) e leva a um viver diferente, a do tempo livre (schole) e da felicidade (eudaimonia), que é a meta e finalidade última da vida:

É um processo pelo qual as emoções de uma pessoa são moderadas e canalizadas para longe dos extremos prejudiciais. É também uma terapia que nos ajuda a viver de acordo com a nossa natureza. Ao contrário das interpretações purgativas da catarse, que têm sido chamadas de terapêuticas, a catarse transformadora afirma um processo de amadurecimento para a pessoa, com resultados profundos e duradouros, em vez de uma liberação temporária de emoções reprimidas que precisará ser reaplicada periodicamente. É uma terapia que pode nos ajudar a afastar-nos das maneiras inúteis de direcionar nossas emoções e nos conduzir às formas que são mais úteis para aperfeiçoar nosso caráter e percebendo o nosso potencial para a felicidade.81

A importância e validez da catarse residem, portanto, em sua capacidade de transformar e mudar as estruturas internas dos espectadores. A associação e o resgate do "verde", realizado por Highland, acrescenta um novo aspecto, contribuindo no sentido de transformação e crescimento pessoal. John Gassner valida a experiência

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KEESEY, Donald. On some recent interpretations of catharsis. The Classical World, p. 195-196, 1978.

81

HIGHLAND, James. Transformative katharsis: The significance of Theophrastus's botanical

works for interpretations of dramatic catharsis. The Journal of aesthetics and art criticism, v. 63, n. 2,

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catártica pela sua capacidade de provocar iluminação intelectual, revalorizando a tragédia como contribuição social e educativa, relacionada ao prazer da aprendizagem:

O prazer essencial da tragédia é uma função do prazer envolvido na mimese e no prazer mimético. Aristóteles tem algumas coisas muito claras e explícitas para dizer na Poética. Como veremos em detalhes mais tarde, mimese para Aristóteles é um processo intelectual que envolve aprendizagem e dedução, pelo qual passamos de uma percepção do particular para o conhecimento dos universais. Neste processo de aprendizagem descrito por Aristóteles na Poética não são definidas condições morais de qualquer espécie. Nós, portanto, devemos rejeitar a interpretação moral da catarse.82

Gassner afirma que a elucidação ou esclarecimento é o elemento mais significativo da catarse e que a sensação de alívio vem do descanso que acontece quando o dramaturgo consegue levar a ação dramática a uma solução, quando as partes em conflito, depois de uma árdua luta, encontram repouso. Conclui que a iluminação intelectual resulta da clara compreensão da luta que isto implica. Um entendimento de causa e efeito que ajuda a formar juízo do que foi visto no papel de testemunha, alcançando um estado de equilíbrio acima das paixões e seus enredos.

Por outro lado, há aqueles que negam, como o professor Gerald Else, que a catarse esteja destinada a agir sobre o espectador. Para este acadêmico, o lugar da catarse está no interior da peça, na própria estrutura do material dramático, em relação com o desenrolar dos acontecimentos: a verdadeira catarse acontece no momento do reconhecimento. As circunstâncias reais da obra dramática são reconhecidas e expostas diante da inteligência do público:

catarse não é uma mudança ou produto final na alma do espectador, ou no medo e na piedade (ou seja, as disposições a eles) em sua alma, mas um processo levado adiante no material emocional da peça por seus elementos estruturais, sobretudo pelo reconhecimento. O reconhecimento é a rentabilidade, para usar modernismo vulgar mas expressivo; ou, na figura mais convencional, isto é, o eixo sobre o qual a estrutura emocional da peça gira.83

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GOLDEN, Leon. The Clarification Theory of" Katharsis. Hermes, p. 445, 1976.

83

ELSE F. Gerald., Aristotle's Poetics: The Argument. Cambridge: Harvard University Press, p. 439, 1963.

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Esta visão não parece adequada à concepção de catarse que nos interessa defender aqui, já que Aristóteles coloca o reconhecimento como um dos principais elementos da tragédia, expondo que este ocorre após os acontecimentos revelarem verdades subjacentes à ação: “Porém o reconhecimento mais brilhante de todos é aquele que resulta dos próprios acontecimentos, causando admiração os incidentes verossímeis…” 84

Como consequência tem-se a anagnorisis, marcando a passagem do oculto ao revelado, do obscuro ao luminoso, do encoberto ao exposto, em que coisas, situações e personagens recuperam o lugar que lhes correspondem ou sua verdadeira situação.

Em todas estas descrições, está em evidência a necessidade do outro, do encontro entre a obra e o espectador. Else, por outro lado, defende que a piedade sentida pelos espectadores é consequência da experiência vivida pelo herói trágico, cuja atuação não resulta de uma contaminação moral, mas da ignorância, desencadeando um processo analítico, cognitivo sobre as circunstâncias que propiciaram tal ato. A catarse, neste caso, relaciona-se com sua demonstração no interior da peça. Parece estar sobrevoando a ideia de que é justamente a identificação do espectador com a situação vivida pelo herói, que proporciona esta espécie de insight, na qual se adquire um conhecimento através de uma intersecção emocional e intelectual. São vários os fatores agindo ao mesmo tempo, ainda que em diferentes planos cognitivos, fazendo com que se produza um momento de purificação catártica ou iluminadora:

Freud, retomando Aristóteles, observa que através da identificação com o herói, o espectador efetua seus sonhos de transgredir seus limites sem ter que pagar pelas consequências. Afirma também que o espectador, através do drama, realiza alguns de seus desejos reprimidos que não pode satisfazer na vida cotidiana devido ás normas sociais, religiosas, ou políticas (Freud, 1978a, 177 e ss). É o herói que leva a cabo a burla destas normas que o espectador não se atreve a romper, e é também o herói quem paga a culpa por estes atos (Freud, 1978b, 156 y ss.), sendo assim, o reprimido no espectador pode ser liberado inofensivamente pela representação em cena.85

84

ARISTÓTELES. La Poética. Madrid: Espasa-Calpe, p. 57, 1970.

85

MODZELEWSKI, Helena. La dialéctica del amo y el esclavo en el teatro de la resistencia. Revista ACTIO nº, p. 30, 2008.

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León Goldman, próximo do ponto de vista de Gassner, não compartilha com os princípios de Else, baseando seu argumento na ideia de que o relevante é o que acontece com o espectador depois de presenciar a tragédia. Alega que este pode não somente apreender do argumento o que for relativo à história em particular, mas, também, projetar estes conhecimentos em situações universais:

O ato de apreender que Aristóteles se refere pode ser mais claramente entendido como o ato de inferir, a partir do ato particular testemunhado na apresentação artística, a classe universal a qual o ato pertence. O artista então organiza o seu trabalho no qual o espectador é capaz de inferir, a partir das circunstâncias individuais retratados diante dele, a lei universal que os subsume. Este movimento do particular para o universal envolve um processo de aprendizagem que torna mais clara e mais distinta a importância dos eventos apresentados na obra de arte.86

Golden, em vários trabalhos, promove a ideia de que a catarse é a melhor forma de gerar clareza intelectual no público, é a que melhor integra vários mecanismos aristotélicos e, acima de tudo, a finalidade última da tragédia. Helena Modzelewski sintetiza e resume ambas as ideias:

Em seus escritos de História Natural, Aristóteles utilizou o termo em seu significado médico de purificação e purga. Mas também o ampliou e o aplicou a um fenômeno estético, ou seja, uma espécie de liberação ou sossego que o homem sente através da arte. Essa depuração se dá por meio da alienação dos próprios impulsos do espectador que, pela observação dos atos desmesurados do herói da tragédia, alcança uma liberação de seus próprios desejos de atuar desta maneira e obtém, inocuamente protegido por seu próprio papel de espectador, uma evidência das possíveis consequências; dai a outra concepção de catarse como “esclarecimento”. Portanto pode-se dizer que para Aristóteles, a catarse envolve certa classe de aprendizagem intelectual e/o emocional.87

Destacando algumas das principais posturas acadêmicas no que concerne ao fenômeno catártico, esclarecemos que, para os fins desta tese, interessa privilegiar uma visão ampla e integradora de este fenômeno. Amparados nestes argumentos teóricos, as finalidades da tragédia grega são válidas para a tragédia elisabetana. A capacidade

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GOLDEN, Leon. Catharsis. In: Transactions and Proceedings of the American Philological Association. American Philological Association, 1962. p. 53-54.

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de purificação, limpeza e clareza intelectual explicadas neste capítulo podem ser reconhecidas na obra de Shakespeare.

A catarse pode, portanto, aparecer na experiência de um espectador contemporâneo, pois este enfrentamento sensível com uma tragédia bem construída vem tanto do mundo clássico como do elisabetano, atuando sobre emoções, ideias e pensamentos de homens e mulheres, modificando suas condutas e gerando transformações. Desenvolveremos este ponto adiante, deixando instalada a ideia de catarse como operação que se transforma em instrumento de uso contemporâneo, valioso e efetivo. Ainda hoje os princípios que se relacionam à arte e, particularmente, à tragédia, estabelecidos em A Poética, oferecem base sólida para explorar e desenvolver reflexões estéticas pessoais, estabelecendo relações com outras áreas do conhecimento e da investigação social.