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Shakespeare além do espaco tempo : uma conversa sobre direitos humanos nas tragedias Titus Andronicus, Ricardo III e Macbeth

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Academic year: 2021

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CLAUDIA CARLA ECHENIQUE SAAVEDRA

SHAKESPEARE ALÉM DO ESPAÇO-TEMPO

UMA CONVERSA SOBRE DIREITOS HUMANOS, NAS TRAGÉDIAS

TITO ANDRÔNICO, RICARDO III E MACBETH

CAMPINAS

2014

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CLAUDIA CARLA ECHENIQUE SAAVEDRA

SHAKESPEARE ALÉM DO ESPAÇO-TEMPO

UMA CONVERSA SOBRE DIREITOS HUMANOS, NAS TRAGÉDIAS

TITO ANDRÔNICO, RICARDO III E MACBETH

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Doutora em Artes: área de concentração Artes Cênicas, sob a orientação da Profa. Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida.

Este exemplar corresponde a versão final da Tese defendida pela aluna Claudia Carla Echenique Saavedra e orientada pela Profa. Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida.

Campinas

2014

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ESTA TESE SE DESENVOLVEU GRAÇAS AO FINANCIAMENTO DO CONSELHO NACIONAL DA CULTURA E DAS ARTES DO GOVERNO DO CHILE - FONDART

ESTA TESE CONTOU COM O PATROCÍNIO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO CHILE

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para TOMAS mi amor amor amor.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Mignonette e Sérgio, pela vida que me deram, e à vida, que me deu tanto. Deu-me a amizade de Verônica Fabrini, quem não só me incentivou a empreender este processo, mas também me acolheu em todo o sentido, ensinando-me que uma vida no caminho da arte é possível e quem, além do mais, orientou esta tese com o amor, a gentileza e a paixão que ela põe em cada um dos atos que realiza, tanto nos cotidianos como nos extraordinários que, em geral, são os mais. Obrigada, querida Vê.

Agradeço aos meus filhos, Julián e Emiliano, porque são homens bons e porque é para eles que se quer um mundo melhor. Vocês fazem toda a diferença. À Cata, Tomás e Martín, porque são flores do jardim. À Meche, que cuida da família com paciência e carinho.

Agradeço aos queridos Melissa Lopes e a Montagna e novamente à Verônica, por serem dos violentos que, sabemos nós, um mundo sem violência, sim, é possível.

Agradecimentos especiais à Érika Cunha, por sua solidariedade, um anjo no caminho, sem cujo aparecimento teria sido impossível chegar a um final feliz.

Agradeço à Lúcia e Bel, porque a poesia com que vivem a vida é uma inspiração que me ajudou muito neste processo, são minha família brasileira e querida.

Agradeço a Silas, por seu enorme coração e que não só espalha beleza pelo mundo, mas também, além disso, coloca-lhe música.

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Agradeço à Dóris por seu amável acolhimento, suas ideias inovadoras e sua inteligente orientação neste trabalho.

Agradeço a Marcelo, por sua paixão com o ofício e porque sua visão de Shakespeare deu um impulso vital a este trabalho.

Agradeço às professoras e professores da banca, pela generosa participação.

Agradeço, especialmente, a revisão do texto de Paula Guerreiro, mas sobretudo sua gentileza e solidariedade com o trabalho.

A Rodolfo Rojo, que foi meu professor de inglês no colégio, por quem soube da existência de Shakespeare – obrigada, mestre.

Agradeço a Paz Irrarrazabal, Maria de la Luz Hurtado, Consuelo Morel, mulheres tão importantes na minha formação acadêmica.

A Claudia Berger e Tito Noguera, pela qualidade humana com que ensinaram o ofício.

A Ramón Nuñez, um mestre apaixonado por Shakespeare, por cuja generosidade, pude viajar para Londres, onde, de alguma maneira, teve início esta historia.

A Ramón Lopez, Milena Grass, Magdalena Amenabar, Vero García Huidobro, Mario Costa, Pamela López, Edith Velásquez, Lucho Coloma, Humberto Minay e a tantos outros colegas, professores e funcionários da PUC, obrigada.

À minha mamita Meche, porque nunca a esqueço de e porque encheu meus dias de profundo carinho.

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A Juan Ormeño, amigo e professor, cujas ideias deram grande contribuição a esta tese.

Às minhas queridas companheiras do Cariño Malo, com quem compartilhei tantos bons momentos e que estão sempre presentes em meu coração.

Agradeço a todos meus alunos e amigos-atores shakesperianos que participaram das obras que dirigi. Em especial a Willy Semler, com quem aprendi e desfrutei muito sobre os palcos.

Agradeço a cada um dos meus ajudantes, os quais colaboraram, a partir das muitas perspectivas, com minha aprendizagem e desenvolvimento: Gabriel, Nacho, Pancho, Esteban, Guille, Jaña, Nico, Vicho.

Agradecimentos especiais aos COPS, Coletivo Obras Públicas, porque aprendi com eles tudo o que uma companhia significa e por serem talentosos e amáveis: Sofie, Xime, Javi, Steve, Gabo, Checo, Cucho, Benji.

Aos Rústicos de Estopa, os jovens que trazem alegria para trabalho.

A todos que colaboraram com o projeto Shakespeare e companhia, porque o gênio do bardo volta à vida cada vez que suas palavras são pronunciadas nos palcos.

Agradecimentos especiais aos colaboradores de Ricardo III, Macbeth, Titus e Sonho de uma noite de verão, porque foram espetáculos especialmente queridos.

Agradecimentos sinceros a todos da Boa Companhia, lindos – Momo, Alexandre, Daves, Zozó, Cassiane, Érico, Isabela – e do Matula Teatro – Melissa, Alice, Ana, Bruno e Quesia –, porque são minha família teatral no Brasil.

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A Andreas Simma, pela boa companhia as conversas de teatro, e seu gran Ricardo III.

Às minhas queridas fiéis e insubstituíveis colegas do SC., Lonca e Titi, por sua amizade de tantos anos.

À Flaquita e ao Tatan, pela beleza do lar e sua companhia amorosa, e aos queridos Rudolf e Hermine, pela amizade luminosa.

Ao meu primo Ricardo, pelas excelentes conversas sobre arte e por me lembrar do meu pai.

À minha querida amiga Pura, pelo apoio, seu tarô e carinho

Aos meus fiéis companheiros Max, Sara, Beny, Marat e especialmente a minha querida Niña.

Agradeço à Universidade Estadual de Campinas, pela formação acadêmica.

Agradeço à Universidade Católica do Chile, pelo apoio a este doutorado.

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Que Mundo Maravilhoso

LUIS ARMSTRONG

Eu vejo as árvores verdes, rosas vermelhas também Eu as vejo florescer para mim e você

E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

Eu vejo os céus tão azuis e as nuvens tão brancas O brilho abençoado do dia, e a escuridão sagrada da noite

E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

As cores do arco-íris, tão bonitas no céu Estão também nos rostos das pessoas que se vão Vejo amigos apertando as mãos, dizendo: "como você vai?"

Eles realmente dizem: "eu te amo!"

Eu ouço bebês chorando, eu os vejo crescer Eles aprenderão muito mais que eu jamais saberei

E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

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RESUMO

Esta tese investiga a construção e defesa do ideário dos direitos humanos a partir da análise e encenação de três tragédias de William Shakespeare: Tito Andrônico, Ricardo III e Macbeth, no contexto latino americano contemporâneo. Partimos do pressuposto que tanto as narrativas como o discurso das realidades apresentadas nessas tragédias elisabetanas oferecem um material que, mediado pelo

corpo total dos atores expostos diante da assembleia por meio da atualização teatral,

contribuem para a compreensão de como operam os mecanismos de poder, o círculo trágico da vingança e a violência. Postulamos que, elaboradas em comunidade, tendo o teatro como veículo, essas obras educam e fornecem um terreno fértil para a elaboração da memória coletiva e, assim, para o alcance de uma compreensão compartilhada dos fenômenos que afetam nossas convivências latino-americanas.

Palavras-chave: Direitos Humanos, Shakespeare, tragédia, consciência emocionada, catarse, estranhamento, vingança, memória, compaixão, piedade, terror, violência, montagem, corpo total, comunidade, poder, ditadura, transgressão.

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RESUMEN

Esta tesis investiga la construcción y defensa del ideario de los derechos humanos a partir del análisis de tres tragedias de William Shakespeare, Tito Andrónico, Ricardo III y Macbeth en el contexto contemporáneo latino americano. Establecemos que tanto las narrativas, como el discurso y las realidades presentadas en estas tragédias isabelinas, ofrecen un material que mediado por los cuerpos totales, de los actores y que expuestas ante la asamblea por medio de su actualización teatral contribuyen a la comprensión de como operan, tanto los mecanismos de poder, como el circulo trágico de la venganza y la violencia. Postulamos que elaborados en comunidad estas obras educan y proveen de un territorio fértil, para la elaboración de la memoria colectiva y así, alcanzar una comprensión compartida de los fenómenos que afectan nuestras convivencias, latino americanas. Establecemos que la catarsis aristotélica y el extrañamiento brechtiano y pueden darse al mismo tiempo a partir de la experiencia trágica, en forma de experiencia emocionada.

Palabras-claves: Derechos Humanos, Shakespeare, tragedia, catarsis, venganza, memoria, compasión, piedad, terror, violencia, asamblea, cuerpo total, comunidad, poder, dictadura, transgresión, consciencia emocionada.

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ABSTRACT

This thesis researches the construction and defense of human rights, trough the study and analysis of William Shakespeare´s three tragedies: Titus Andronicus, Richard III and Macbeth, in the Latin-American contemporary context. We establish that both narrative and discourse and the realities presented in these Elizabethan tragedies offer a dense material that mediated trough the total bodies of the actors and exposed, to the assembly through their performance, allow a deep comprehension of how power mechanisms operate, and how violence and revenge circulate in society. We think that these plays develop in the community a sense of pity for the pain of others and provide fertile ground to develop collective memory and there for, help us reach a shared understanding of important issues that affect societies in Latin American. We believe that Aristotelic catharsis and Brechtian estrangement may be experienced as emotive conscience.

Key words: Human Rights, Shakespeare, tragedy, catharsis, revenge, memory, compassion, pity, terror, violence, assembly, total body, community, power, dictatorship, transgression, emotive conscience.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Retrato de Shakespeare I...xxix O fungo atômico...34 Aristóteles e Platão – Escola de Atenas, por Rafael...39 Bertolt Brecht...,73 Manchete no jornal The Plain Dealer sobre My Lai...………..107 Corpo de Salvador Allende………....………..117 Retrato de Shakespeare por Dante Gabriel Rosetti, de 1865………....123 O Globo Sketch...125 Complô da Pólvora, por Crispijin van de Passe...135 Londres de 1560...142 Bankside de Londres...143 Teatro O Globo...145 Apresentação no Inn Yard...155 Palco do O Globo...159 The Sam Wanamaker Play House...161 Desenho do Teatro Cisne de 1596……….... 163 The rack...165 Panfleto de John Staubb...167 Titus de Shakespeare &Co...169,200,202,204,212,327 Peachums Drawing...175 Menina Amputada...196 Esqueleto de Ricardo III...217 Ricardo III,Primer Folio ...219 Retrato “Os principitos”, de Millais (1878)...223

Ricardo III de Shakespeare& Co... 245,257

Macbeth 1860...261 Cuadernillo Pedagógico de Teatro da PUC-Chile...266 Simon Forman e „The Book of Plays‟………....,267 The Growrie Conspirancy………..………..271 O Fantasma de Banquo………...………285 Macbeth de Shakespeare & Co...287,301 Cartazes de Santiago Nattino...304 Jovens Combatentes...307 Parada, Nattino e Guerrero...309 Família Parada...311 The Dartmouth House Shakespeare‟s Portrait...313

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SUMÁRIO

Dedicatória...ix Agradecimentos...xi Epígrafe...xv Resumo...xvii Resumen...xix Abstract...xxi Lista de ilustrações...xxiii PARTE I Introdução...1 Capitulo 1: Violência, terror e dominação...15 Capítulo 2: Catarse e estranhamento: Consciência emocionada.

Procedimentos cênicos que geram aprendizagem...41 Capítulo 3: A discussão contemporânea sobre os Direitos Humanos...75

PARTE II

Capítulo 4: Shakespeare e seu contexto político e social...127 Capítulo 5: A exposição cênica do terror em Tito Andrônico ...171 Capítulo 6: Políticas e perversões do poder em Ricardo III...215 Capítulo 7: A peça escocesa...263

Conclusões...315

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ANEXOS

Discurso de Harold Pinter...337 Discurso de Salvador Allende...347 Gerações e categorias para os Direitos humanos...349 Primeiro Folio. Dedicatórias...353 Quadros Organizacionais...359

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INTRODUÇÃO

Por que estabelecer uma relação entre três das obras mais violentas de William Shakespeare (como são Tito Andrônico, Macbeth e Ricardo III) e a educação sobre Direitos Humanos na América Latina? Por que a violência contida nestas obras escritas entre 1593 e 1606 pode falar aos latino-americanos do século 21 sobre o respeito e a proteção à vida? Estas são algumas das perguntas que tentaremos responder no transcurso de minha pesquisa. Antes, porém, gostaria de começar, esclarecendo que o grande interesse que tenho por estes temas nasce de um lado de vivências pessoais (diretas ou indiretas) e, por outro, da enorme fascinação que me causa observar como o ser humano possui a capacidade de produzir beleza e, ao mesmo tempo, de gerar barbárie. A oposição entre estas duas forças contém grande quantidade de energia. Energia que é capaz de mobilizar, por uma parte, o pensamento intelectual abstrato e analítico e, por outra, impulsionar ações concretas, necessárias para a criação artística. Sendo assim, tentarei dialogar com elas no decorrer deste trabalho, estruturado a partir de três eixos principais, que tiveram uma base fundamental tanto em minha biografia como no meu fazer artístico. Estes três pilares são a arte teatral (e sua capacidade política), a dramaturgia shakespeariana e as violações dos Direitos Humanos na América Latina.

Em primeiro lugar, devido à história política chilena, vivi com a certeza da importância de difundir a defesa dos Direitos Humanos, aprofundar-me em seus estudos e promover sua divulgação, em termos de políticas públicas e educativas. As

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atrocidades cometidas sob as ditaduras de muitos países da região e, particularmente, as cometidas pelo regime de Pinochet no Chile entre 1973 e 1990, causaram um impacto no tecido social que ainda não podemos avaliar de maneira adequada.

A arte da memória, chamada pelos gregos mnemotécnica, era uma preocupação que envolvia tanto o exercício de lembrar, como a construção de lugares públicos para congregar comunidades em torno de fatos significativos, em espaços especialmente construídos para isto: passou primeiro aos romanos e logo ao resto dos europeus. Os sistemas para lembrar variaram desde a antiguidade até nossos dias, sendo seu registro captado de diversas maneiras ao longo da história. Primeiro, por meio da transmissão oral, depois pela escrita e pela imprensa, para entrar hoje no grande armazém virtual da internet. A mãe de todas as musas, Mnemosine, tem a capacidade de implicar-nos em sua arte para o bem e para o mal e o vem fazendo desde que os seres humanos passaram a ter linguagem e consciência.

Aos doze anos, vivendo no estrangeiro, tive acesso às primeiras publicações em que se denunciavam as torturas e os métodos ilegítimos que empregava a DINA em seus numerosos centros de torturas, no Chile1. Estas declarações testemunhais das vítimas produziram-me um rompimento definitivo, marcando uma clara separação entre o mundo infantil e a crua realidade do mundo adulto. Realidade que obriga a querer estar de um lado ou de outro e define uma passagem. A ela associei a perda da inocência. Sem dúvida, devido a este impacto com a realidade vivenciada pelos perseguidos políticos e ao ambiente de consternação e de preocupação solidária que todos experimentavam ao meu redor, adquiri um compromisso tácito com a necessidade de uma sociedade de se proteger diante dos fatos como a tortura, o sequestro, o assassinato e o desaparecimento de pessoas pelas mãos do Estado e de velar para evitar que fatos de natureza semelhante se repitam.

A elaboração de nosso passado e das nossas resoluções para certos fios, cristalizações e sucessos determinantes nela, segundo os múltiplos estudos realizados

1

Direção de Inteligência Nacional. Polícia secreta do regime de Pinochet que funcionou entre 1973 e 1977. Os agentes foram formados pela CIA na Escola das Américas.

http://www.nybooks.com/articles/archives/1974/may/30/terror-in-chile-ii-the-amnesty-report/?pagination=false

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a partir de diversas áreas (sociológicos, antropológicos, psicológicos etc.), determina o modo como nos relacionamos no presente e de como viveremos no futuro.

Nossa memória social e sua elaboração envolvem, entre outras, atividades de comemoração, a prática de rituais e a observação de aspectos tradicionais que geram identidade e que também chegam à estrutura cognitiva da sociedade2. Passado, presente e construção do futuro estão ligados na narrativa que temos de nossas experiências e na forma como a integramos em nossa história. Apesar disto, a memória é um construto descentralizado e transdisciplinar, subjetivo fragmentário, que não tem um único modelo e cuja observação se faz da melhor forma a partir de sua diversidade: “memórias compartilhadas podem ser marcas efetivas de diferenciação social” 3

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A memória coletiva, como termo, foi utilizada pela primeira vez por Hugo von Hofmannsthel em 1902, sendo Maurice Halbwacks quem definitivamente a liga a estrutura de identidade social, definindo a memória coletiva como:

a memória dos membros de um grupo, que reconstroem o passado a partir de seus interesses e do marco de referências presentes. Esta memória coletiva assegura a identidade, a natureza e o valor de um grupo. Por último, esta memória é normativa, é como uma lição a transmitir os comportamentos prescritivos do grupo.4

Halbwacks ressalta a importância do marco referencial, pois a memória está ligada tanto ao contexto social e suas operações, como à identidade individual daqueles que compõem o coletivo. As sociedades que vivenciaram os horrores e as violências da guerra – massacres, genocídio e outros tipos de aberrações – tendem a não poder assimilar os espantosos acontecimentos ocorridos e buscam seguir adiante, reprimindo, em parte, a memória dos fatos traumáticos que as afetam, a fim de continuarem com a convivência entre grupos antagônicos. Realizam-se pactos e se selam negociações que incluem anistias ou, como bem assinala Sofsky, os crimes contra a humanidade tendem a sobreviver na memória como atrocidades realizadas por outros. É só a partir da

2

SOFSKY, Wolfgang. Tiempos de horror. Tradução de Isabel Garcia Adánez, Madrid: Siglo XXI, 2004. Nossa tradução para o português.

3

OLICK, Jeffrey K.; ROBBINS, Joyce. Social memory studies: From" collective memory" to the

historical sociology of mnemonic practices. Annual Review of sociology, p. 105-140, 1998. As memórias compartilhadas podem ser traços importantes de diferenciação social.

4

PÁEZ, D. Trauma político y clima emocional: Una investigación transcultural. Psicología Política, v. 12, p. 50, 1996.

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Shoah5, que se começa a cultivar a memória e a trabalhar com a necessidade de integrar os fatos e as circunstâncias do que realmente ocorreu e, assim, tentar buscar modos para assimilação dos acontecimentos.

Freud nos lembra de que o reprimido torna a emergir. Geralmente as sociedades enfrentam os fatos traumáticos mediante a repressão do fato em si e o deslocamento de seu significado. Há uma tendência em crer que o esquecimento é reparador. De fato, esquecer é parte importante da memória, senão seria impossível a reconstrução, mas é melhor que o trauma, por sua vez, sobrevenha elaborado e não produto de uma falta de ferramentas para trabalhar os processos violentos, determinar a verdade acerca dos eventos e as responsabilidades sobre eles. O trabalho de assimilação cognitiva é requisito indispensável para que os episódios violentos sejam incorporados e elaborados socialmente.

Uma sociedade que vivenciou uma experiência traumática, como a violação dos direitos humanos (tortura, desaparecimentos, etc.), sofre uma ferida que afeta todo tecido que a compõe, e nunca serão demais os esforços para trabalhar a fissura produzida:

Os fatos traumáticos causados por ações humanas que afetam o coletivo e que têm sua origem na vida sociopolítica, como repressões e guerras civis, além de perdas humanas emateriais, provocam um trauma moral e ideológico, através de desacordos, conflitos e censuras. 6

Em termos lineares, é necessário lembrar para elaborar e logo superar, de maneira que se construa uma narrativa que, em primeiro lugar, reconheça a verdade dos fatos, para logo integrá-los à experiência da comunidade em questão. Na medida em que isto ocorre, a memória social passará de uma memória fragmentada a uma memória social integrada, que possui uma consciência na qual os objetos de referência são compartilhados:

Não há futuro no Chile se não há uma reelaboração coletiva de seu passado, porque os países são sua história e o modo como a assumem diante das novas circunstâncias, que essa mesma história e outras

5

Shoah é o termo da língua iídiche usado para definir o holocausto judeu.

6

PÁEZ, D. Trauma político y clima emocional: Una investigación transcultural. Psicología Política, v. 12, p. 47, 1996. Nossa tradução.

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histórias vão criando. Por isso, nunca serão „demasiados‟ os debates, as memórias, as investigações, as lembranças, a presença destes trinta anos. 7

Os processos de construção da memória coletiva são mutáveis e se encontram em permanente movimento, pois interagem dialogando com as novas gerações. É por essa razão que as diferentes comunidades continuam apresentando novas leituras sobre seu passado e os fatos traumáticos que as constituem (Shoá, Vietnam, Kosovo).

Elaborar a memória sobre feitos relevantes é uma forma de criar identidades futuras e é, sobretudo, necessário e saudável fazê-lo, em particular com aquelas situações que são de difícil reconhecimento por sua atrocidade quanto ao emprego da violência. Susan Sontag (2003), em seu estudo sobre a dor e o registro que a fotografia faz dele, adverte-nos que lembrar é um ato ético, já que a insensibilidade e a amnésia vão juntas e que o documento fotográfico é um testemunho que perpetua a existência do horror que significa a violência da guerra8. Cada vez mais, a memória está associada às imagens que estão ligadas ao seu próprio relato e que são prova de que o que é captado realmente teve lugar, apesar da barbárie que registra. Wolfgang Sofsky, por sua vez, esclarece que a perpetuação da violência não se detém com a promulgação de leis e normas e que é seu hábito e institucionalização o que ajuda a facilitar sua recorrência: “as selvagerias humanas não excluem de modo algum a planificação e a racionalidade. É um erro acreditar que a crueldade é sempre fruto repentino de um estalo de paixão sem freio”.9

Na medida em que estejamos permanentemente reelaborando nossas histórias de violência, estaremos pondo em prática um controle sobre seu uso. A memória é, então, uma forma de controle sobre a violência e a crueldade, que, em alguns casos, repara e, em outros, previne. Lembra-nos de que a tragédia e a dor podem voltar a se repetir e Lembra-nos adverte sobre a fragilidade do ser humano. Oferece-nos a possibilidade de buscar novos caminhos, que não tenham sido percorridos, convidando-nos a buscar alternativas criativas. A memória nos afasta do esquecimento.

7

GARRETÓN, Manuel Antonio. Memoria y proyecto de país. Revista de ciencia política (Santiago), v. 23, n. 2, p. 228, 2003. Nossa tradução.

8

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Editora Companhia das Letras, 2003.

9

SOFSKY, Wolfgang. Tiempos de horror. Tradução de Isabel Garcia Adánez, Madrid: Siglo XXI, 2004. Nossa tradução para o português.

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6

Para construir uma cultura respeitosa dos direitos humanos, foram realizadas, no Chile, diferentes iniciativas, como a construção de espaços públicos destinados à lembrança (memoriais ou, mais recentemente, o Museu da Memória) e a elaboração de documentos, registros, leis e institutos destinados a promover e divulgar sua importância. A criação do Instituto de Direitos Humanos, que entrou em vigência em dezembro de 2009, estabelece, em seu artigo 9, que, entre seus objetivos, está:

difundir o conhecimento dos Direitos Humanos, favorecer seu ensinamento em todos os níveis do sistema educacional, incluindo a formação repartida no interior das Forças Armadas, da Ordem e Segurança Públicas, e promover a realização de investigações, estudos e publicações, outorgar prêmios, patrocinar atos e eventos relativos a essas matérias, e realizar tudo aquilo que tenda a consolidar uma cultura de respeito aos Direitos Humanos no país. 10

Todas essas iniciativas são, sem dúvida, importantes, mas não terminam nem terminarão jamais por fechar e sanar a profunda ferida produzida pela quebra ética, que significaram as violências do Estado e, segundo Manuel Garretón, não descansarão senão encontrando verdades profundas e sendo aplicadas sanções que deem conta da aplicaçãoda justiça:

As sequelas de crimes e violações marcam definitivamente uma sociedade e sobre isso não há como „se fazer de tonto„: nenhuma proposta de Direitos Humanos que não seja a verdade radical, a justiça absoluta e a mais ampla reparação, poderá „fechar‟ o passado ou curar feridas. Esta não é uma cisão política. É ética e fundadora de um modo de vida de um país. Nenhuma lei de anistia, nenhum principio pró-reu, de retroatividade ou coisa julgada, podem ser esgrimidos para assegurar impunidade nessa matéria. E esta foi uma divida que por ter sido saldada a conta-gotas e não enfrentada em sua raiz, nos persegue permanentemente e o seguirá fazendo, enquanto não a enfrentarmos na raiz. 11

Se antes tivemos alguma expectativa de que se fizera justiça com as vítimas de abusos dos direitos humanos, hoje sabemos que essa justiça não chegará, já que, entre outros fatores, a passagem do tempo é determinante e a dificuldade é cada vez

10

Lei No. 20.405, Nov. 24, 2009, [Art. 3] M.S.G.P. 3. Nossa tradução.

11

GARRETÓN, Manuel Antonio. Memoria y proyecto de país. Revista de ciencia política (Santiago), v. 23, n. 2, p. 226, 2003. Nossa tradução.

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maior. Por isso, talvez nossa única contribuição, como atores culturais, seja a de trazer momentos parciais de construção simbólica e de conseguir, ao menos, reconhecer os grandes vazios que permaneceram sem elaboração, transmitindo às gerações futuras a preocupação por feitos relevantes da nossa própria história, encarregando-nos de manter essa memória. Continuar construindo diferentes espaços de reconhecimento onde estejamos abertos às experiências que nos conectem com a dor alheia. Por meio delas, quis realizar atos de luto compartilhados, como a encenação das tragédias de Shakespeare, que representa uma pequena abordagem no sentido de comemorar a dor alheia. Segundo Pablo Salvat, uma das preocupações que devemos levar em conta, no Chile, em âmbito de Estado, é a divulgação e sociabilização daqueles acontecimentos que levaram à ruptura institucional e aqueles fatos que se produziram a partir dela:

a partir de um ponto discursivo a temática dos Direitos Humanos, salvo em algumas ONG´s e/ou universidades, permanece enredada com o mote de assunto político, entendendo por tal, algo contingente, conflitivo, enviesado. Tanto as limitações internas da transição, como as limitações no modo de tratá-lo e debatê-lo em espaço público, contribuíram para uma significação restrita do lugar que podem ocupar nos andaimes de nossa cultura política, assim como também, no desenho e contextura da democracia. Por tudo isso, é importante abrir e continuar o debate e a discussão a respeito de sua validade e significado.12

A arte teatral é um espaço que se presta para utilizá-lo colaborativamente, tanto com a finalidade de construção da memória, como de elaboração de experiências traumáticas vivenciadas durante o governo militar. Primeiro porque a memória é parte de seu acervo constitutivo enquanto é construção simbólica, depois porque a forma de colocá-lo em uso é vivencial, ocorre em presença, acontece na coletividade, responde a uma estrutura ritual e, segundo nossa perspectiva, permite tanto a catarse como o estranhamento.

O teatro parece ser o lugar a partir do qual podemos não só construir a memória coletiva, mas também divulgá-la no mesmo momento em que se constrói, já que tem a qualidade dupla da imediatez e a permeabilidade, com o que cumpriria com a condição

12 SALVAT, Pablo. “De los Derechos Humanos como modus vivendi”, Centro Teológico Manuel

Larraín, no. Octubre (2005), http://www.centromanuellarrain.cl/ (consultada em Agosto 10, 2010). Nossa tradução.

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de oferecer um espelho para a criação de resilição diante de fatos traumáticos que ainda precisam de compreensão.

Shakespeare nos provê de um relato que, ritualizado por meio da performance, permite-nos aceder a qualquer uma de nossas experiências cívicas e trágicas. Por intermédio do exercício presencial, os espectadores, testemunhas da tragédia, acedem a elementos narrativos que abrem e permitem novas elaborações sobre as violências políticas e crimes de lesa humanidade, promovidos e organizados a partir do Estado e que formam parte de nossa história. É essa história obscura, que nos pertence a todos – chilenos , brasileiros, argentinos –, que queremos contribuir para iluminar.

Os Direitos Humanos não são conglomerados de valores abstratos desligados do viver diário das pessoas e devem ser difundidos e construídos, tanto pelos agentes culturais, como encarnados pelo corpo político moral de qualquer nação. Na medida em que exista maior difusão deste cânone de valores, melhor podemos elaborar a lembrança daqueles elementos nocivos, os quais confluíram para a corrupção do Estado transgressor que sistematicamente incorreu em suas violações. O fato das violações dos direitos humanos afetarem os homens e mulheres em vários planos (jurídico, familiar, psicológico, etc.) nos faz também observar que o primeiro a ser afetado é o próprio corpo do transgredido. É o corpo que é golpeado, mutilado ou exilado, feito desaparecer, etc. Isto nos leva a perceber que, sendo o teatro uma arte que se esculpe sobre o corpo, as conexões entre representação, observação e conteúdo formam um entrelaçado que se dá tanto no corpo do espectador como no do ator, facilitando a imediatez da percepção. A continuidade nas diferentes práticas de elaboração e memória está orientada tanto ao passado como ao futuro e, por isso, está destinada a resguardar a manutenção daquelas condições estipuladas como mínimas aceitáveis, que deveriam ser garantidas a todo ser humano para que levemos todos vidas mais dignas. A noção de que essas transgressões não só afetam a quem as recebe, mas também a toda trama social, é fundamental. Formar opinião crítica ativa e induzir a experiência de corpos sensíveis à dor alheia é substancial ao mundo globalizado de hoje. E esta tarefa cabe no teatro.

A indiferença é nossa maior transgressão. Resulta primordial formular instâncias de participação em que possamos ter a oportunidade de nos expressarmos, tanto

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9

intelectual como emocionalmente, frente à dificuldade que representa estar no mundo, quando o mundo, às vezes, é um lugar tão inóspito, injusto e cruel de habitar. Devemos reconhecer, no teatro, sua capacidade de ser uma ferramenta a mais a serviço da construção de espaços de encontro encarnado, onde tanto ontem como hoje ele continua seu caminho, inicialmente traçado pelas tragédias gregas, de perseverar, proporcionando vinculação verdadeira entre corpos cívicos, convidando-os a entender e a sentir pelos demais, pelos que são outros. Como assinala Tzvetan Todorov, o fato de existirem circunstâncias e situações nas quais os homens reajam de maneira violenta “não quer dizer que a espécie humana é horrorosa e que só deveria suscitar lástima e sim que o bem e o mal formam igualmente parte de nossas potencialidades”13

.

É evidente que as guerras e os atos de violência não desapareceram, mas também é substancial que coloquemos o problema dentro e não fora de nós mesmos. Devemos tentar compreender que não estamos livres de sermos eventualmente nós mesmos os produtores de violência. O mal não está do outro lado de um muro imaginário e, sim, parte de nossa natureza e pode aparecer sob determinadas circunstâncias. É isto que demonstra, magistralmente, Shakespeare em sua obra: é possível ver, no verdugo, a vítima ou vice-versa, é possível observar como um menino sequestrado pelo exército invasor se transforma em assassino. É possível ver como um homem, por sua própria ambição, transforma-se em criminoso, verdugo de seu próprio irmão e assassino de crianças.

O que move esta investigação, o que é verdadeiramente relevante e que pode resultar de maior utilidade para todos é esclarecer quais são os mecanismos que desatam o mal, como operam os círculos trágicos, como se forjam as circunstâncias e quais são as lições que, finalmente, podemos tirar quando sobrevém o horror. Tal como assinala o arcebispo anglicano Desmond Tutu (2000), depois de presidir a Comissão de Verdade e Reconciliação sul africana: “Deveríamos diferenciar entre o ato e quem o comete, entre o pecado e o pecador, odiar e condenar o pecado sentindo ao mesmo tempo compaixão pelo pecador”14

. Viver em sociedade constitui uma reflexão da qual o teatro se encarregou a partir das grandes tragédias gregas. Herdamos esta tradição e a

13

TODOROV, Tzvetan. La Memoria ¿ un remedio contra el mal?. Arcadia, p. 20, 2009. Nossa tradução.

14

(40)

10

mantemos viva por meio da ritualização que implica encenar os textos clássicos. Estes textos, vez por outra, voltam a nos estimular, convidando-nos a usar nossa imaginação e criatividade. Esses textos logram sobreviver ao tempo, porque contêm bolsões carregados de enorme potência que emerge provocando em nós desestabilidade e inquietude, obrigando-nos a pensar de forma crítica. Quando a letra é encarnada por atores, a atualização do texto dá vida nova a estas tramas. As conexões internas que eles realizam para interpretar as ficções produzem uma liberação dos impulsos encerrados nos textos e fazem brotar as energias encerradas nos argumentos que escreveram e re-escreveram os poetas dramáticos. O teatro possui uma força única e misteriosa que existe só ali, durante o encontro da atualização. É esta zona enigmática, este mistério poderoso e sumamente atrativo, e que não alcançamos penetrar totalmente, o que nos mobiliza e nos impulsiona a buscar respostas e a querer buscar mudanças. A função da arte, segundo Schklovsky, Brecht, Bogart e talvez outros, é justamente nos fazer despertar e nos convidar a querer transformar e nos transformar:

Acredito que a função do teatro seja nos lembrar das questões humanas, nos lembrar de nosso terror e nossa humanidade. Em nossa vida cotidiana, vivemos em uma repetição contínua de padrões habituais. Muitos de nós passam a vida dormindo. A arte deve oferecer experiências que alterem esses padrões, despertem o que está adormecido e nos lembrem de nosso terror universal. 15

A arte mobiliza porque a arte também está em movimento: esta constante transformação é ativa na medida em que é ativada por quem a percebe e recebe. Não é estática. Não está imóvel.

Neste caso, a abordagem que Shakespeare realiza com suas obras Titus

Andrônicus, Macbeth e Ricardo III implica a construção contemporânea dos

Direitos Humanos de modo transversal e ocorre em vários planos. Fundamentamos

esta hipótese, basicamente, em três premissas: em primeiro lugar pelo conteúdo mesmo das obras – nelas, temas éticos são tratados de maneira evidente ficando claro o questionamento do exercício do poder, do vencedor sobre o vencido, bem como todos os problemas éticos que derivam desta equação; em segundo lugar, porque a experiência teatral se desenvolve em comunidade; e, finalmente, porque o efeito gerado

15

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11

pela compaixão catártica e o distanciamento reflexivo podem dar-se de forma simultânea nos espectadores.

A obra opera no nível individual e social, simbólico e concreto, levando-nos a trabalhar tanto na elaboração de nossa memória individual como de nossa memória coletiva. A necessidade das sociedades contemporâneas em continuar construindo a memória e a lembrança em relação às transgressões dos direitos humanos são fundamentais. A elaboração da ficção criada por Shakespeare em suas três tragédias,

Titus Andrônico, Ricardo III e Macbeth, possuem a capacidade de enunciar questões

que nos pertencem também hoje. Possuem a capacidade de nos abrir a uma pena compartilhada (koinon achos16), para que esta seja elaborada e sanada em um espaço

aberto à comunidade e não a portas fechadas. Em outras palavras, o que Shakespeare faz por meio da sua dramaturgia trágica é nos proporcionar um mundo cheio de ferramentas que nos ajudam a construir uma narrativa de nossa própria história sobre as terríveis transgressões aos direitos humanos, na América Latina ou em qualquer outra parte do mundo.

Shakespeare nos oferece um material sumamente valioso, tanto por seu conteúdo quanto por sua forma dramática, cuja poética evidentemente nos entrega elementos de reflexão sobre a violência ligada à política. Neste sentido, é uma abordagem que deveríamos considerar com a maior atenção, pois, como assinala Hannah Arendt:

Ninguém que se consagra a pensar a História e a Política pode permanecer ignorante do enorme papel que a violência sempre desempenhou nos assuntos humanos, e à primeira vista resulta mais que surpreendente que a violência tenha sido singularizada, tão escassas vezes em sua especial consideração. 17

A tragédia grega, pela sua imperiosa necessidade de dar respostas às grandes interrogações humanas e de nos oferecer uma direção que nos provesse de formas com que pudéssemos expiar nossas paixões nocivas, desde suas origens, tentou formular contextos de purgação e remédio para prevenir rebentos de excessos destrutivos, cujas forças nos devolvem a uma natureza primitiva e desnuda, desprovida

16

A dor que é compartilhada com outros.

17

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12

de elaboração social. As representações trágicas, com o objetivo de buscar maior virtude, ofereceram ao gênero humano um espelho para revisar seus perigosos e indesejados excessos emocionais, no qual fosse possível purgar suas cargas negativas e observar aquelas ações nocivas ao espírito.

O teatro é um sistema artístico, social e político que pode e deve ter um papel mais ativo na formação dos espectadores como cidadãos participativos e construtores da memória, com o fim de elaboração, registro e prevenção. Funciona como ferramenta de diversão, ao mesmo tempo em que educa e forma, convidando-nos a ser mais compassivos e conscientes da dor que afeta a outros, propiciando o contato entre os cidadãos, sem o qual se perde a noção de comunidade. Na medida em que presenciemos atividades artísticas de qualidade como a tragédia shakespeareiana, em que a dor alheia fica exposta e simbolizada, podemos criar redes de significados ligadas à experiência de compaixão e ao exercício ativo da piedade. Estaremos, assim, provavelmente, mais preparados para enfrentar situações da vida concreta, em que se produzam quebras éticas que nos obriguem a atuar de maneira mais empática com aquele que sofre.

A violência com a qual têm convivido historicamente os seres humanos nos levou a tentar compreender sua produção a partir de diferentes campos de estudo, como a política, a filosofia, a psicologia e a arte, entre outros. Nossos grandes esforços “civilizatórios“ por buscar controlar as manifestações de crueldade para com nossos congêneres implicaram a criação de diferentes sistemas de repressão regulados por leis e diversas formas de castigo e disciplina com êxito relativo. Apesar de havermos logrado avanços grandiosos nos níveis tecnológicos, ainda não temos podido conquistar uma convivência pacífica sobre o globo nem superar a “barbárie” que significam certas violências e seus usos.

Para compreender um fenômeno, é necessário observá-lo a partir de muitos ângulos e levar em conta diferentes aspectos do mesmo. É por isso que acreditamos que o olhar a nós oferecido por Shakespeare sobre a violência, sua gestação e seus efeitos, ainda que tendo escrito suas obras por volta de 450 anos atrás, é um olhar urgente e necessário para o mundo contemporâneo, que reclama uma orientação humanista e acessível. Ali, sobre a cena que ensina, é que podemos

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13

compartilhar em comunidade e aprender algo acerca de nossa vida juntos. Alguns destes temas que nos afetam diariamente, e que são processados pelas subjetividades dos criadores, recobram novos brios. O valor destas tragédias encenadas se enraíza tanto na visibilidade como na complexidade com que Shakespeare aborda o universo da natureza humana. Isto gera aprendizagem e, portanto, prazer a quem as recebe. Na medida em que a experiência é compartilhada, enriquecemo-nos formando laços e estabelecendo alianças tácitas. Participamos de cumplicidades que implicam as geografias de todos os sentidos, postos em jogo. Essas aprendizagens integrais e sistêmicas provam ser, hoje, tremendamente valiosas, colocadas as infinitas capas de relações e conhecimentos articulados.

Sempre me senti cativada por muitos dos personagens criados por Shakespeare e pela variedade de suas tramas, desde que o conheci na escola, graças aos meus professores de inglês que souberam transmitir com entusiasmo sua própria paixão pelo Bardo. Segui bebendo dessa fonte inesgotável de imaginação, porque me gerava perguntas, mas também porque me ofereciam respostas, mas sobretudo porque me estimulava a dialogar com o mistério da vida e as paixões que nos afetam a todos os seres humanos imperfeitos que somos. Shakespeare provou ser um excelente companheiro não só para os artistas. Homens e mulheres de ciência, política, inclusive do mundo da biologia e da física quântica, encontraram, em seus textos, inspiração para suas próprias investigações. Para aqueles que, como nós, andamos pelo caminho das artes, resulta ser uma cachoeira de energia fresca e vital e sempre em movimento, uma fonte de inspiração que nos conecta com motivações essenciais e nos nutre desta sensação altruísta que nos faz pensar que, se nos conhecermos mais e melhor, talvez possamos ajudar transformando o mundo em um lugar melhor.Tendo já percorrido uma parte substancial deste caminho, continuo com a convicção de que conhecer Shakespeare nos permite aceder a profundos mistérios que nos rodeiam e envolvem nossa experiência como seres humanos. A vida de um ser humano é, em si mesma, um

mundo cheio de possibilidades e de paixões. Os mais afortunados, digamos,

ingenuamente, acreditamos que vivemos enfrentados pela possibilidade de escolha na tomada de decisões que nos mostram o melhor, mas também o pior de nós mesmos. Nisto consiste nossa liberdade e é o que nos define como espécie. Sabemos também

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14

que as boas intenções não são suficientes para erradicar os problemas do mundo. Mas também acreditamos que tentar uma busca persistente e ir construindo, por meio da arte, uma consciência emocionada 18 e compartilhada pode ser enormemente gratificante.

18 O termo “consciência emocionada“ e do prof. Dr. Marcelo Lazzaratto, cunhado em seu maestrado em

2003.Foi revisto e publicado em LAZZARATTO, M.R Campo de Visão: Exercício e Linguagem cênica. São Paulo:Escola Superior de Artes Célia Helena.2011.pg. 45.

A utilização que eu faço aqui e diferente da dele, e surgiu a partir da necessidade de potencializar a fusão entre catarse e o estranhamento, que será discutido mais adiante.

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15

CAPÍTULO 1

VIOLÊNCIA, TERROR E DOMINAÇÃO

Para entender por que a obra de Shakespeare e, particularmente, por que as três tragédias selecionadas nesta tese (Titus Andrônico, Ricardo III e Macbeth) constituem contribuições significativas para compreensão e educação acerca do respeito à vida, dignidade humana e do resguardo dos direitos humanos, consideramos essencial discutir, com profundidade, as complexidades e os alcances do fenômeno da violência a partir de três pontos de vista inter-relacionados.

Em primeiro lugar, revisar algumas das principais teorias e categorias de violência. Em segundo lugar, indagar a origem antropológica e a discussão teórica sobre o fenômeno da guerra e, por último, discutir alguns dados em relação aos movimentos cidadãos de mobilização que vêm ocorrendo no contexto contemporâneo dos últimos anos. Através da violência encenada nas tragédias mencionadas e de sua corporificação cênica (pois são encarnadas no corpo dos atores), será possível, mais adiante, como espectadores, observarmos a violência e seus efeitos e fazermos sua análise e interpretação. Antes, porém, é preciso revisar os diferentes aspectos contidos no conceito de violência, já que este fenômeno é extremamente complexo e abarca muitos sentidos. Além disto, logicamente, configura-se de forma diferenciada de acordo com as disciplinas que o interpretam. Portanto, iremos recorrer a algumas das principais teorias que analisam o fenômeno da violência e expor como esta tem sido conceitualizada. Revisaremos algumas das discussões geradas pelo pensamento crítico e filosófico e tentaremos estreitar as margens deste fenômeno tão vasto, pois o termo violência tem vários significados e a linguagem tem contribuído tanto para torná-lo complexo quanto para simplificá-torná-lo, realizando uma função paradoxal.

Interessa-nos explorar a violência a partir de diferentes ângulos, considerando que as tragédias shakespearianas a contêm em grande quantidade explícita e entrelaçam diferentes aspectos do ser humano e de suas organizações práticas. Acreditamos que é justamente a violência encarnada e encenada nas tragédias Titus,

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16

Ricardo III e Macbeth, que instiga e convida a uma reflexão posterior à experiência

presencial, como espectadores, podendo ser capitalizada a nosso favor, em relação à proteção dos direitos humanos.

Shakespeare oferece uma materialidade cênica que se expressa através do

corpo total 19 em um cenário concreto, complexo e repleto de potencial poético, um terreno fértil que pode gerar valiosa aprendizagem. A magistral exposição realizada por Shakespeare permite adentrar nestas complexidades, pois sua particular elaboração da violência e de seu funcionamento leva à visualização de como esta se envolve com o poder, com a força e com o controle através de coerção, do engano e da traição.

No desenvolvimento da articulação da trama, podemos ver, com clareza, como foram tecidas situações que derivam de assassinatos que, posteriormente, incidem indireta ou mesmo diretamente, em diferentes realidades violentas, até mesmo chegando a desencadear guerras. Certas ações empreendidas pelas personagens shakespearianas são terrivelmente impiedosas, até os criminosos mais perversos se arrependem de consumá-la, como acontece, por exemplo, em relação a assassinar crianças.

Em Ricardo III, existem espaços conhecidos de reflexão nos quais os próprios criminosos discutem sobre a legitimidade de seguir ordens superiores, se estas entram em conflito com sua própria consciência. Isto será analisado com profundidade na segunda parte desta pesquisa, estabelecendo uma relação entre o fato cênico de

Ricardo III e A Lei da Devida Obediência promulgada na Argentina depois da ditadura

militar, em 1987, durante o governo de Raúl Alfonsín. Esta lei reconhece o iuris et de

iure20 e ampara a imputabilidade dos subordinados militares que seguiram as ordens de

seus superiores quando incidiam nas violações dos direitos humanos.

Também não é difícil estabelecer conexões e pontes necessárias entre muitas das ações violentas empreendidas pelas personagens shakespearianas e suas abertas motivações políticas. Em muitas ocasiões, os delitos empreendidos violentamente buscam claramente eliminar obstáculos entre eles e o poder, como um tirano que busca

19

Meu conceito de corpo total refere-se à utilização da totalidade da humanidade física, psíquica e emocional que as Artes Cênicas requerem para realizar o ato de performance, de interpretar ou jogar.

20

Um julgamento iuris et de iure é aquele que se estabelece por lei e que não admite prova do contrário, ou seja, não permite provar que o fato ou situação que se supõe é falso.

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17

extinguir os obstáculos entre ele e o trono, eliminando os herdeiros legítimos que se intrometem no seu caminho. Se fossem enquadradas hoje, as ações empregadas por um tirano shakespeariano seriam qualificadas como violências políticas, penalizadas na atualidade como crimes de lesa humanidade, ou seja, que atentam, caluniam ou ofendem a humanidade21.

Como o que nos interessa é provar que, a partir da obra de Shakespeare, podemos enfrentar nossa própria e conhecida violenta realidade latino-americana e, mais especificamente, que, por sua mediação, também podemos aprender sobre a estrutura e o funcionamento da violência, sua gestação e repercussões (assim como estabelecer paralelos entre as violações da atualidade e as apresentadas pela ficção), é relevante dedicar este capítulo ao tema em questão. Com isto, aproveitamos para restringir, estreitar e especificar de qual violência estamos falando quando nos referimos à obra de William Shakespeare. Seguindo o bom conselho do psicólogo, historiador e politólogo francês Jacques Sémelin, com várias publicações sobre o tema da violência22 e suas diversas manifestações, concordamos que não existe somente uma teoria capaz de explicar todas as formas de violência, tornando-se necessário buscar definições específicas e perguntar sempre, a quem fala de violência, o que entende por isto23.

A seguir, com a finalidade de oferecer um enquadramento teórico ao tema, tentaremos estreitar as margens e restringir significados, explicitando algumas das principais teorias sobre a violência, quem as elaborou e seus principais pensadores.

21 Consideram-se crimes de lesa humanidade: “os atos inumanos, tais como o assassinato, o extermínio,

a escravidão, a deportação ou as perseguições contra qualquer população civil por motivos sociais, políticos, raciais, religiosos ou culturais, praticados pelas autoridades de um Estado ou por particulares que atuem induzidos por tais autoridades ou com sua tolerância.” Documentos oficiais da Assembleia Geral, nono período de sessões. Suplemente No. 9 (A/2693 e Corr. 1) Pág. 10-11.

22

Alguns dos livros escritos pelo destacado professor Jaques Sémelin: La no Violencia Explicada a mis Hijos, Purify and Destroy, Anarmed against Hitler, Resisting Genocide, Pour Sortir de la Violence.

23

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18 1.1. Algumas teorias sobre violência

Existem muitas formas de violências, são inumeráveis os exemplos e infinitas as manifestações. Hoje existe uma ampla variedade de estudiosos que se dedicam ao problema: de antropólogos a politólogos, passando por biólogos, etnólogos, filósofos e até mesmo matemáticos24. Existem muitos estudos analíticos que traçam suas origens e explicam sua aparição, mas poucos conseguem esclarecer seu funcionamento e, menos ainda, impedir seu surgimento. Quando Georges Sorel, no final do século XIX, interessou-se por dar coerência ao estudo da violência e se dedicou a refletir sobre o fenômeno, a realidade era muito diferente, não existindo sistematização teórica a respeito. Foi um dos primeiros a abordar este singular fenômeno, como ele mesmo o chamou.

Sorel consegue articular seu pensamento de orientação marxista e, a partir de seu ponto de vista filosófico, legitima a luta de classes. Seu livro Reflexões sobre a

violência, publicado em 1908, apresenta um olhar crítico sobre, pelo menos, três

aspectos fundamentais e diferenciadores que organizam a discussão a respeito. Em primeiro lugar, observa a questão sob a perspectiva psicológica: define a violência como explosão de força que assume caráter irracional e que, muitas vezes, torna-se criminal. Em segundo lugar, sua perspectiva é moral, o que coloca a violência exercida como um atentado aos bens e à liberdade do outro; e, em terceiro lugar, considera o aspecto político, estabelecendo também como violência o uso da força para apoderar-se do poder ou desviá-lo para fins ilícitos. Influenciado pelo pensamento marxista, Sorel, filósofo autodidata (engenheiro de profissão), acaba argumentando que a violência pode ser o único meio possível tanto para se livrar da subjugação proletária como excelente possibilidade para sair do embrutecimento burguês: “A violência proletária não somente pode afirmar a revolução como também parece ser o único meio que as nações europeias, embrutecidas pelo humanitarismo, dispõem para recuperar sua energia” (Sorel, 1976). 25

A corrente de pensamento originada por Georges Sorel

24

Johan Galtung, Franco Caviglia, Humberto Maturana, Thomas Platt, Jean Claude Chaisnais, entre muitos outros.

25

(49)

19

volta a aparecer no livro Los condenados de la tierra, obra póstuma do martiniquês Frantz Fanon26, publicada em 1961, com prefácio de Jean-Paul Sartre, que nos diz:

Faria bem ler Fanon, porque mostra, claramente, que esta violência irreprimível não é uma absurda tempestade, nem a ressurreição de instintos selvagens, nem mesmo um efeito do ressentimento: é o homem reintegrando-se a si mesmo [...] não há ato de ternura que possa apagar as marcas da violência, só a própria violência pode destruí-las.27

Muitos veem, nestas palavras, um chamado aberto à tomada de partido e de posição ativa diante do abuso francês na Argélia. Fanon influenciou, significativamente, as posturas nacionalistas e a radicalização argelina diante da França, que conseguiu sua independência no ano de 1962, depois de oito anos de resistência e um ano depois da publicação do hoje famoso livro de Fanon. Esta obra foi, também, relevante para a reflexão que a América Latina e a África realizaram sobre a colonização e é pedra fundamental na teorização e conceituação da violência, realizada nos estudos pós-coloniais sobre o pensamento colonial.

Fanon argumenta a respeito da liberdade que um colonizado tem em usar legitimamente a violência em sua luta contra o opressor, pela conquista de sua independência. Fala da subjugação humana e seus efeitos sobre a totalidade do indivíduo, mostrando que as próprias forças colonizadoras recorreram à luta armada para conquistar e manter o controle de suas colônias, estabelecendo uma linguagem da violência ensinada aos colonizados e que, somente quando o colonizado aprender a linguagem da força, será possível uma saída.

Foi o colonizador quem ensinou e aplicou a linguagem da violência e somente quando o colonizado aprender a lição é que conseguirá, finalmente, libertar-se:

Entre a violência colonial e a violência pacífica, na qual está imerso o mundo contemporâneo, há uma espécie de correspondência cúmplice,

26

Frantz Fanon, nascido em Martinica, colônia francesa. Psiquiatra e filósofo, escreve Los Condenados de la Tierra, obra póstuma, 1961. Durante sua infância, as tropas francesas ficaram bloqueadas na Martinica e foram brutalmente racistas e opressivas com os martinicos, o que despertou em Fanon a consciência do colonial. O interessante de seu ponto de vista consiste em que estar colonizado é uma condição de opressão existencial e determinante, que aniquila o homem no seu plano mais íntimo e essencial.

27

Jean-Paul Sartre no Prólogo de Los Condenados de la Tierra de Frantz Fanon, publicado en 1961, em francês. Primeira edição liberada para internet, pg.16. Junho 2006. http://www.elortiba.org/

(50)

20

uma homogeneidade. A violência do regime colonial e a contra-violência do colonizado se equilibram e se correspondem mutuamente com uma homogeneidade recíproca extraordinária. Quanto maior seja ela sobre população metropolitana, mais terrível será esse reino da violência. O desenvolvimento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial impugnado. O povo, a quem foi dito incessantemente que não poderia entender outra linguagem que não fosse a da força, decide se expressar através da força. Na verdade, ao colono foi mostrado, desde sempre, o caminho que haveria de ser o seu, se quisesse se libertar. 28

Para aprofundar o tema, acreditamos ser esclarecedor o artigo Perderse en lo

absoluto, subjetividad revolucionaria entre Fanon y Sorel29, no qual George Ciccarielo

discute e compara as teorias sobre violências desenvolvidas nos escritos de Sorel e Fanon, afirmando que o pensamento fundamental que as sustenta, o motivo pelo qual se assemelham, é que ambos colocam o oprimido, seja proletário ou colonizado, como seres cuja identidade total se configura como receptores de violência.

A violência se torna um absoluto que não distingue planos na existência humana e que permeia toda a existência do individuo, transformando tudo o que toca e tudo o que está ao seu alcance, até mesmo sua própria subjetividade. Daí, podemos justificar teoricamente que a noção de violência gera violência está baseada em uma verdade irrefutável e não em um lugar-comum. Tudo que o colonizado aprendeu está contaminado da violência imposta pela opressão do colonizador. Sua única possibilidade de construir uma vida digna é lutar para se libertar. Uma vez que isto é compreendido, não há outros caminhos disponíveis ao colonizado. Pode somente lutar por sair de sua opressão, para ser um homem livre.

Etimologicamente, a palavra violência vem do latin vehemencia e é uma combinação de vis (força) e latus, particípio passado do verbo ferus (transportar ou levar) que vem do verbo trasladar, ou seja, usar a força. Em termos mais gerais, aplicando o conceito ao seu uso, a violência implicaria a utilização de uma força dirigida contra um ser humano, atacando sua integridade, objetivando causar dano (ainda que

28

FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. Txalaparta, p. 68, 1999. http://www.elortiba.org/

29 CICCARIELLO-MAHER, George “To Lose One Self in the Absolute: Revolutionary Subjectivity in

Sorel and Fanon”. Arquitechture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge: Vol.5: Iss.3, (2007)

Article12.http://scholarworks.umb.edu/humanarchitecture/vol5/iss3/12?utm_source=scholarworks.umb.edu %2Fhumanarchitecture%2Fvol5%2Fiss3%2F12&utm_medium=PDF&utm_campaign=PDFCoverPages

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21

seja invisível ou não possa ser constatado de forma material e física, como é o caso da violência psicológica). Jacques Sémelin, já mencionado, estabelece claramente que:

A violência, em sentido estrito, a violência física, isto é, o ataque direto, corporal, contra as pessoas, é a única mensurável e incontestável. Ela reveste um caráter triplo: brutal, exterior e doloroso. O que a define é o uso material da força, a rudez voluntariamente cometida em prejuízo de alguém. 30

As categorias que Jacques Sémelin sugere para diferenciá-la são três: a. A violência contida nos fatos com sangue, que envolve claramente o corpo e a lesão do estrutural, definida por Galtung e a do institucional, definida por Garver.

b. A violência cotidiana, aquela com a qual se convive na vida doméstica diária. c. A violência espetacular. É a violência presenciada por espectadores, pois atrai olhares e é tão fascinante como repulsiva.31

Newton Garver, que escreveu em 1968 “What violance is”32, foi o primeiro a estreitar as margens da violência em relação à condição humana. A natureza não seria violenta em si mesma: uma tempestade ou um terremoto, ainda que resultem violentos sobre os humanos, carecem de intencionalidade, não sendo estes episódios violentos, somente no sentido metafórico, já que não são dirigidos intencionalmente contra alguém, são acidentes fortuitos e imprevistos. Garver considera que a violência tem relação com a violação da dignidade da pessoa, de seu corpo e de seus direitos. Sua ligação com a força é parcial, pois o emprego da força pode existir sem que haja a necessidade de ser considerada violência (a força empregada para salvar uma pessoa que se afoga ou a força que utiliza um dentista ao extrair um dente etc.). Segundo suas definições a forma mais clara e evidente de violência é aquela na qual a força é aplicada contra alguém, causando algum tipo de lesão, podendo ser pessoal ou institucionalizada, física ou psicológica, aberta ou encoberta. Acrescentando: “Qualquer

30

Ibid pg. 12

31

BLAIR TRUJILLO, Elsa. Aproximación teórica al concepto de violencia: avatares de una

definición. Política y cultura, n. 32, p. 9-33, 2009.

32

GARVER, Newton: What Violence Is. pg. 420. Today's Moral Problems, ed. R. Wasserstrom. N. Y. Macmillan, 1975.

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22

instituição que viola sistematicamente os direitos das pessoas, roubando sua legítima opção de eleger, estando esta disponível para outros, exerce violência contra essas pessoas.” 33

Isto se refere, por exemplo, à violência exercida pelas estruturas sociais e institucionais sobre os indivíduos que não têm acesso à justiça. Esta situação de arbitrariedade é a força que vem do sistema social estrutural e tem efeito na submissão do indivíduo, causando-lhe dano. É indireta e anônima, segundo a classificação de Galtung.

O matemático e sociólogo norueguês Johan Galtung, fundador do Instituto Transcend,34 vem trabalhando, constantemente, sobre o assunto por mais de 60 anos. Não contribuiu apenas no conhecimento sobre violência, mas também desenvolveu, a partir deste fenômeno, uma investigação ampla. Com sua equipe multidisciplinar, criou e implementou estratégias e técnicas específicas, para serem aplicadas como instrumentos de mediação, no sentido da resolução de conflitos. Estas técnicas estão claramente dirigidas e orientadas tanto para a prevenção do surgimento da violência, como para a continuidade da paz, quando houver cessada a violência.

Sua contribuição consiste na implementação de instrumentos para a paz e no estabelecimento de novas categorias sobre a violência. Estas classificações têm relação com a estrutura de funcionamento da violência e podem ser agrupadas observando sua direção, sua estrutura e visibilidade. Sendo assim, segundo tal organização, existe a violência que é anônima, estrutural e indireta e de autor, quando direta e visível. Galtung também inclui, em seus estudos, a violência cultural e a violência simbólica, contribuindo amplamente na criação de espaços de inclusão para todos os fenômenos relacionados a ela.

A classificação do fenômeno violento e o estabelecimento de diferentes tipologias da Violência, realizada de forma descritiva, com uma nomenclatura vasta e ao mesmo tempo particular, ajuda na correta acepção e descrição do fenômeno e, por sua utilidade, constitui uma das contribuições mais consistentes. O conhecimento de Galtung, que escreveu mais de cento e cinquenta livros a respeito, levou-o a percorrer

33

Ibid.pg.162

34

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