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CATARSE E ESTRANHAMENTO: CONSCIÊNCIA EMOCIONADA PROCEDIMENTOS CÊNICOS QUE GERAM APRENDIZAGEM

2.3 A catarse e sua vigência como instrumento de aprendizagem.

O que nos interessa aqui, para este trabalho, é estabelecer a vigência da catarse como um procedimento de aprendizagem válida, no qual o resultado da comoção, protegido pelos limites e pelas convenções cênicas da representação, faz com que o ser humano possa conectar-se, profundamente, com sua emotividade, racionalizando alguns tipos de conhecimentos relativos a uma questão em particular. Quando acontece uma descarga emocional, esta se complementa com a iluminação, conduzindo o sujeito a experimentar uma espécie de emoção prazerosa, relacionada à experiência satisfatória decorrente da aquisição de determinado conhecimento. Este surge a partir de um vínculo emocional com a dor do outro, ao identificar-se com as personagens que sofrem a tragédia. É necessário reconhecer a dificuldade que homens e mulheres contemporâneos têm em entrar socialmente em contato com a dor. Esta é uma das razões pelas quais a tragédia, com seu efeito catártico, apresenta-se como contribuição valiosa para as relações sociais vigentes, pois estabelece pontes de contato a partir das emoções de compaixão e terror. A dor, segundo estabelece Elaine Scarry88, é o que

88 Particularmente a parte que se refere a “The inexpressibility of physical pain”, em que Scarry se dá

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existe de mais pessoal, pois somente é verdadeira para quem a sofre. É impossível ter acesso à dor do outro sem que se faça necessário um ato de fé ou de credibilidade. Não há significado se não existe interpretação e a dor permanece ilhada, não comunicada, para que somente o outro a entenda, ficando fechada e se tornando insignificante e órfã de sentido. A dor física carece de linguagem e, por isto, é o mais parecido a um uivo, um grito ou um pranto: “A dor física não apenas se limita em resistir à linguagem, mas a destrói ativamente, provocando uma regressão imediata a um

estado anterior à linguagem.”89

A compaixão é a chave criada pelo espírito para se abrir à dor dos demais e poder experimentar empatia pelo outro. Historicamente a tragédia tem se ocupado de gerar impacto e comoção naqueles que a presenciam, estimulando a compaixão através da catarse. Deve-se considerar que, na atualidade, a noção de outro está em perigo. O conceito de comunidade se encontra ameaçado e, apesar de existirem iniciativas planetárias que buscam criar consciência em relação a isto, a cada dia nos aproximamos mais de uma vida em que o isolamento é valorizado. Zygmunt Bauman, em En busca de la política90, esclarece como a problemática em que vive o homem

contemporâneo pode ser expressada com maior clareza a partir do termo alemão

unsicherheit, que funde os conceitos de incerteza, insegurança e vulnerabilidade, os

quais, evidentemente, afetam no retraimento social. As possibilidades de escolha, que aparentemente estão disponíveis, produzem a sensação de que a liberdade é infinita quando, na verdade, é limitada. Norbert Lechner diz que se podem conhecer os efeitos da modernidade e de seus excessos na convivência e que, tendo em vista que a globalização tem gerado culturas multiétnicas, perdem-se os limites entre nação e mundo, tirando o contorno das fronteiras, misturando interno com externo. A crescente individualização é parte do preço que se paga por tanta oferta mercantilista, incidindo de forma impiedosa tanto sobre ricos como sobre pobres, gerando a ilusão de todos os

mediação e significações. O questionário Mc Gill, implementado por Ronald Melzag, Patrick Wall y W.S Toregson, tem criado sistemas relacionais para a descrição da dor através de diversas associações ligadas à intensidade, à continuidade à profundidade, entre outras. Elaine Scarry, The Body in Pain. The making and unmaking of the World (Oxford: Oxford University Press, 1985), 4.

89

Ibid.

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tipos de necessidade, provocando grande quantidade de confusão e angústia. Canalizadas de diversas formas, geram múltiplas enfermidades psicológicas e sociais.

O crescimento da liberdade individual, segundo Bauman, tende a coincidir com o aumento da impotência coletiva. A liberdade de escolha, a partir desta perspectiva, pode ser vista como tirania e o modo como nos relacionamos uns com os outros é um reflexo da crescente individualidade com a qual o mundo contemporâneo está nos exigindo que atuemos. Afirma Bauman:

O medo e o riso abandonaram as ruas e se instalaram na privacidade dos lares. Os medos privados raras vezes entram em contato com outros medos privados, e quando o fazem não se reconhecem uns aos outros facilmente. Esta dificuldade de coincidir e convergir, de misturar-se e combinar-se, de se unir e ser unido, foi chamada de liberdade individual.91

A insegurança e a frustração diante da falta de certezas se traduzem em temor. A sociedade se torna cada vez mais ameaçadora e desvinculada. O ser humano se fecha em si mesmo. Recolhemo-nos às únicas seguranças que conhecemos: a família e o lar. Como sociedade, a tendência é não assumir responsabilidades cidadãs, vivendo resguardada diante de tantas coisas apresentadas como oferta ilimitada de expansão e de conhecimento, que ampliam nossa rede e conexões, mas que, sem dúvida, afastam-nos de experiências compartilhadas e do verdadeiro contato, palavra que introduz a noção de corpo e do sentido do corpo.

Shigeisa Kuriyama92 fala de como a história do corpo é também a história de como estivemos habitando o mundo, de como os corpos são testemunhos da história: a narrativa que realiza o corpo humano informa como ocorreu o diálogo em encontro com o mundo e suas cidades. A história do corpo tem a particularidade de não estar subjugada à linguagem puramente discursiva. O corpo não pode mentir. Hoje nossas sociedades contemporâneas, diz Richard Sennett, são vivenciadas por civis desvinculados, sem contatos, resguardados, que não experimentam o corpo nem a dor do outro. A impotência do homem contemporâneo, diante dos acontecimentos mundiais

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Ibid., 72.

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KURIYAMA, Shigehisa (Ed.). The imagination of the body and the history of bodily experience. International Research Center for Japanese Studies, 2001.

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e dos diversos conflitos do globo, leva-o a um isolamento progressivo e, de alguma maneira, o excesso de informação, disponibilizado ininterruptamente pelos diversos meios, satura sua capacidade emocional, provocando, como resposta, espécie de bloqueio afetivo e emocional que o obriga a deixar de sentir e a ser imune à dor dos outros.

Susan Sontag93 (2003) analisa como o fenômeno da saturação, frente à exposição contínua de imagens, banaliza, em parte, os conteúdos do horror, considerando que isto não refute o valor ético das imagens apresentadas e que as imagens busquem dar testemunho, convidem a tomar consciência e aumentem a indignação provocada pelas realidades fotografadas.

Ano após ano, as notícias da Anistia Internacional mostram como são violados os tratados humanitários internacionais – situação diante da qual, cada vez mais, o cidadão comum, em sua grande maioria, vai se tornando indiferente, desconfiado das estruturas políticas e dos organismos internacionais para resolver conflitos que ameaçam a segurança do planeta. As perguntas que surgem, portanto, são: como devemos organizar nossas mitologias e nossas ritualizações para dar coerência à nossa realidade? E como podemos purgar nossas paixões obscuras, para evitar a violência que habita em nossas paisagens?

O drama trágico, apesar de ter perdido a dimensão de sua escala original, continua vigente em relação aos seus conteúdos e pode auxiliar na formação de uma consciência mais humanitária, contribuindo em criar linguagem, iluminando relações e reestabelecendo o contato comunitário. A experiência catártica pode colaborar com nosso vínculo entre seres humanos e com o reconhecimento empático com a dor do outro. O homem contemporâneo é susceptível a ser tomado pela catarse, podendo esta ser disparada pela experiência do encontro com a tragédia clássica. Shakespeare, em 1593, quando se debruça, pela primeira vez, sobre o gênero trágico e escreve A

Lamentável Tragédia de Tito Andrônico, já o intuía. Em uma região como a América

Latina, que sofreu a queda de seus governos democráticos, experimentou a violência das ditaduras militares e as transgressões sistematicamente exercidas contra os

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direitos humanos, existe a necessidade de compartilhar vivências que criem vínculos e que sejam reparadoras a partir de muitos pontos de vista. A memória e sua construção são chaves para o diálogo, a reparação e inclusão de povos:

“Isto nos convida a escutar, a não esquecer, a não apagar mentirosamente de nossa memória tudo aquilo que, no fundo, lesa a condição humana, diante daqueles que querem esquecer e ignorar e, sobrepondo com argúcias retóricas, justificam o ocorrido. O que não quer dizer ficarmos ancorados em ódios e frustrações, mas, sim, exige-se a verdade, a reparação dos que ficaram vivos e não dos mortos, pois estes não voltam.”94

O sociólogo T.J Scheff, ao rever a vigência da catarse em nosso mundo contemporâneo, considera que a obra clássica shakespeariana ativa emoções reprimidas e estabelece que ela está claramente orientada à catarse. Não havendo correspondência histórica equivalente à vivência do público, a teoria da catarse considera que isto pode ser ainda mais útil para produzir descarga de emoções reprimidas e compartilhadas pela maioria, do que a presença de situações dramáticas próximas à experiência do espectador:

Segundo a teoria, a obra deve criar condições que conduzam à reestimulação da emoção reprimida no público, de acordo com um equilíbrio de atenção, permitindo-lhe ser ao mesmo tempo participante e observador das cenas dramáticas.95

2.3 A mudança de olhar proposta por Brecht,no teatro épico.

Bertolt Brecht e as inovações que introduz no campo teatral constituem, para o mundo das artes cênicas, uma das mais significativas renovações do século vinte. Segundo Hans-Ties Lehmann, é o próprio Brecht quem elege o termo teatro dramático para denominar a tradição com a qual seu teatro, o teatro épico, teatro da era científica,

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GIL, Mario. Entre la inclusión y la exclusión vivir al límite. BioPolítica,

http://www.biopolitica.C.l/docs/publi_bio/germangil_introduccion.pdf (consultada Agosto 5, 2010).

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SCHEFF, Thomas J. La catarsis en la curación, el rito y el drama. Fondo de Cultura Economica USA, p. 139, 1986.

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pretendia acabar. Segundo Andrzej Wirth, Brecht se autodenominava o Einstein da nova fórmula dramática e diz que isso não era nenhum exagero caso se compreenda a mudança paradigmática que introduziu, já que o teatro épico demonstrou ser uma invenção operativa extremamente efetiva:

Esta teoria impulsionou a dissolução do diálogo tradicional do palco na forma de discurso ou solilóquio. A teoria de Brecht indica implícitamente que, no teatro, a frase é articulada através de igual participação dos elementos verbais e cinéticos (Gestus) e não é simplesmente de natureza literária.

Com antecedentes no teatro político de Erwin Piscator (1893-1966) e nas teorias da desfamiliarização96 utilizadas pelo formalista russo Victor Shlovsky97 (1893-1984) na literatura, é Brecht quem introduz uma das mais importantes mudanças, tanto estéticas como teóricas, no discurso e na cena teatral, que já não é, como assinala Wirth, um evento puramente literário mas também gestual, cinético e de natureza mista.

Poeta, dramaturgo, músico e diretor de cena, Bertolt Brecht é um artista de vasta e variada produção, cujas colocações teóricas e estéticas produziram uma ruptura definitiva na continuidade predominante que havia exercido o teatro aristotélico realista até o final do séculodezenove e começo do século vinte.

As teorias de estranhamento, distanciamento e alienação foram se formando a partir da primeira década do século vinte, com a irrupção de ideias e concepções proclamadas pelos artistas vanguardistas, convidando a participação na construção criativa do novo século, agora visto a partir de um olhar revolucionário. Victor Shlovsky98 descreve as dinâmicas dos progressos em relação à história da literatura, colocando que o avanço nas teorias tem sido irregular, tal como o movimento do cavalo

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WIRTH, Andrzej. Vom Dialog zum Diskurs: Versuch einer Synthese der nachbrechtschen

Theaterkonzepte. Theater heute, v. 1, p. 16-19, 1980.

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Em 1917 Shlovsky introduz o termo ostranenie, em russo, para designar a técnica artística que busca fazer do familiar algo alheio ou estranho. JESTROVIC, Silvija. Theatre of estrangement: theory,

practice, ideology. University of Toronto Press, 2006.

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Crítico literário, escritor e fundador da Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética, desenvolveu as principais teorias do formalismo russo. “A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; os proc edimentos da arte são os da singularização dos objetos, e o que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção é, na arte, um fim em si e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir do objeto: o que está “realizado” não interessa à arte”. Em: Tzvetan Todorov, ed., Teoria de la Literatura de los Formalistas Russos ( México D.F.: Siglo XXI, 1991), 60.

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no tabuleiro do xadrez (the knights move), pois o traspasso se faz a partir do tio ao sobrinho e não do pai ao filho. As influências conceituais, das quais se nutriram essas teorias de estranhamento, provêm de uma complexa trama de relações e interconexões que são permeadas por diversas fontes da arte e da literatura até o teatro. De fato, é possível observar isso em alguns antecedentes e emergências de seu desenvolvimento em formas cênicas tradicionais enraizadas na cultura, como o teatro medieval, o teatro clássico elisabetano, a commedia dell'arte, o teatro simbolista e expressionista, por exemplo, cujos princípios permitiam introduzir quebras e rupturas na ilusão99 . Lembremos que, desde os gregos, um dos requerimentos centrais das peças trágicas era envolver o espectador de tal maneira que este se via enleado na trama criada pelos diversos acontecimentos e, deste modo, produzia-se uma identificação com o herói protagonista da ação. Assim, o espectador, apesar de sua distância concreta com a situação do herói, poderia vivenciar a experiência do drama e sofrer uma experiência catártica a partir dessa identificação. A esta sorte de identificação, Brecht oferecerá novas alternativas, sendo a ilusão e a identificação os elementos que seu teatro se esforçará para quebrar: “fazer de conta é a essência do teatro e seu grande paradoxo, enquanto o interjogo entre a ilusão e a quebra da ilusão é a grande operação do teatro”100

.

A busca principal dos formalistas, acerca do desenvolvimento das teorias de estranhamento nos princípios do século vinte (fato que Brecht recolheu notavelmente), era produzir uma mudança de hábito no olhar, por meio do qual o homem se distanciaria de seu entorno para voltar a vê-lo a partir de uma perspectiva desconhecida,

tornando estranho o familiar, daí a capacidade de assombro e a estranheza diante de si

mesmo, o que lhe outorgará novos sentidos à realidade conhecida, tal como assinala Shlovsky:

A vida desaparece transformando-se em nada. A automatização devora os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo da guerra. Se a vida complexa de tanta gente se desenvolve inconscientemente, é como se essa vida não tivesse existido. Para dar sensação de vida, para sentir os objetos, para perceber que a

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JESTROVIC, Silvija. Theatre of estrangement: theory, practice, ideology. University of Toronto Press, 2006.

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pedra é pedra, existe isto que se chama arte. A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; os procedimentos da arte são os da singularização dos objetos o que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção é, na arte, um fim em si e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir do objeto: o que está “realizado” não interessa à arte.101

Bertolt Brecht assume vigorosamente esta drástica mudança de perspectiva, preocupado com o presente do homem comum, como ser humano e de acordo com sua inserção no contexto social e político. Seu compromisso artístico ligado a uma concepção marxista e materialista foi radical. Possuía uma mente lúcida capaz de captar, antecipadamente, as intenções do movimento nacionalista alemão e suas incompatibilidades ideológicas e, por isso, criticava o perigo do poder centralizado, a absurda lógica da guerra e seus devastadores efeitos sobre o ser humano. Suas várias contribuições estéticas vão desde o campo da criação artística como dramaturgo, até a formulação de novas estruturas teóricas que marcarão o início de uma perspectiva revitalizadora para o teatro e sua prática.

A crítica realizada por Bertolt Brecht ao teatro de estrutura aristotélica, recolhida pelo teatro realista, é explícita. Sobretudo questiona as definições estéticas defendidas por Aristóteles na Poética102. Sua oposição manifesta à catarse sintetiza uma nova

maneira de compreender o teatro e seu funcionamento, entendendo-o agora como um dispositivo social a serviço de uma preocupação nitidamente política. Para ele, a arte nunca é um fim; é um portal a partir do qual se deve experimentar e conjugar ideias para estimular a consciência, promover a ação e gerar mudanças. Brecht concebe a arte teatral como um corpo de conhecimento concreto, um campo sistêmico, a partir do qual é possível educar abordando aqueles aspectos da vida sobre os quais é necessário provocar um olhar crítico, em que nada é eterno, tudo muda e, por isso tudo, pode ser modificado. Brecht, em Escritos sobre el teatro, estabelece que:

101

TODOROV, Tzvetan. La Memoria,¿ un remedio contra el mal?. Arcadia, p. 20, 2009.

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As modificações são de diversa índole, por exemplo, interessa-lhe o quadro unitário e não a fábula que tem um começo, meio e fim. Para produzir distanciamento, incorpora a introdução de cartazes e elementos cênicos que evidenciam sua função, como, por exemplo, os focos de iluminação. Toma da tragédia grega, isto sim, a utilização dos coros.

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a ilusão do teatro deve ser parcial, de modo que sempre possa ser reconhecido como ilusão. Apesar de toda sua plenitude, a realidade deve estar sempre modificada pela arte, para que se reconheça e se trate como algo que pode ser mudado.103

O que ele busca é produzir no espectador uma relação que se afaste da identificação, induzindo uma atitude “completamente livre, crítica, centrada em soluções dos problemas puramente terrenos”, e isto não constitui uma base para catarse, que busca a identificação entre ator e espectador. Nosso interesse por Brecht, para efetivar esta tese, enraíza-se na sua veemente objeção à catarse baseada na identificação como estratégia para instigar o espectador, bem como observar sua contribuição quanto à conceituação, criação de dispositivos e mecanismos para a colocação em prática de novos meios que buscam gerar o “despertar” racional e a comoção intelectual do espectador:

Já na magnífica Poética de Aristóteles descreve-se como a catarse, isto é, a purificação psicológica do espectador, é provocada pela mimese. O ator imita o herói (Édipo ou Prometeu) e o faz com tal sugestão e capacidade de transformação que o espectador o segue nesta imitação, e deste modo se apropria das vivências do herói. Hegel, que segundo nossa opinião, escreveu a última grande Estética, assinala a faculdade do ser humano de sentir as mesmas emoções diante de uma realidade imitada que ante à realidade mesma. O que eu queria lhes contar é que uma série de experimentos para criar, por meio do teatro, uma imagem praticável do mundo, conduziu à surpreendente pergunta se não será necessário renunciar mais ou menos à identificação para conseguir esse objetivo. 104

A seguir vamos expor os dispositivos revolucionários e estéticos e as inovações metodológicas do dramaturgo alemão, para logo confrontá-las com as premissas aristotélicas, estabelecendo suas diferenças e determinando suas críticas mais relevantes.

103

BRECHT, Bertolt. Escritos sobre Teatro. Barcelona: Alba, p. 31, 2004.

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64 2.4 Brecht e sua teoria sobre o estranhamento.

Bertolt Brecht foi o criador de uma nova concepção teatral chamada por ele mesmo teatro épico105, no qual descarta muitas das categorias defendidas por Aristóteles, como a mimese, a ação, as polaridades de valores dos personagens e a reprodução por imitação, entre outras. As modificações que introduz em seus dramas e encenações intervêm rompendo com a linearidade, a continuidade e a lógica da ação. Privilegia, assim, os conceitos de demonstração, o uso do gestus e a quebra, para provocar distanciamento ou estranhamento. Quer ensinar ao espectador os truques com os quais é realizada a operação de interpretação e romper com a ideia de ilusão106 que o teatro dramático aristotélico tenta gerar. Para isto, utiliza certos mecanismos, como variar a estrutura da montagem com cenas unitárias e independentes entre si, introduz canções para fazer uma interpelação direta ao público, elimina por completo a quarta parede107(mais além do aparte), ou utiliza cartazes para localizar as cenas. Brecht cria procedimentos para gerar o que se conhece como o famoso e amplamente discutido termo alemão Verfremdungseffect 108 , traduzido em português como „distanciamento‟ ou efeito de „estranhamento‟, mas traduzido em inglês como alienation, o que produziu grande confusão, posto que „alienação‟, em alemão, é entfrendung. De acordo com Brecht

O distanciamento de um incidente ou de um personagem simplesmente significa tirar desse incidente ou personagem aquilo que é evidente em