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A DISCUSSÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS

3.1. O que são os direitos humanos?

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, 26 países da comunidade internacional subescreveram uma declaração conjunta chamada A Declaração das

Nações Unidas. Sob este preceito de unidade, os países assinantes se comprometiam

a seguir lutando contra as potências do Eixo (Itália, Alemanha e Japão). Esta foi a primeira vez em que se utilizou o nome Nações Unidas, cunhado pelo presidente norte- americano Franklin D. Roosevelt. Logo em 1945, depois da rendição alemã, esta organização tomaria forma e se converteria em um agrupamento internacional de cinquenta países, cujo compromisso seria o de velar pela paz mundial. A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945 e entrou em vigência em 24 de outubro do mesmo ano, data que marca o início de seu funcionamento como instituição internacional. Não podemos deixar de nos perguntar (ainda que não seja de estranhar) como foi possível que, depois de ter assinado esses acordos para potencializar a paz mundial, o presidente americano Harry Truman127 tenha lançado as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagazaki, em seis de agosto, causando 220.000 perdas civis aos japoneses, que terminaram assinando sua rendição incondicional. Com o fim de evitar o surgimento de novos horrores, como os produzidos nos campos de extermínio na Alemanha nazista e com a ideia de preservar

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a paz internacional, de velar pela segurança e integridade das nações membros, estas decidiram, além do mais, assinar um acordo chamado Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Terminada a guerra, foi tal o impacto das atrocidades que havia cometido a

Alemanha nazista, que a ignorância alegada como desculpa do próprio povo alemão,

frente à solução final do Shoah, 128 tornava necessário estabelecer um acordo em relação a uma moral comum, na qual compartilhassem todas as nações e que, assim mesmo, vinculasse a humanidade em torno de uma ética de consenso em relação à vida humana, a sua proteção e resguardo. Frente à montanha de cadáveres expostos diante da opinião pública e ao mundo da modernidade, a evidência empírica demonstrava a existência de uma cadeia de produção, cujo objetivo tinha sido o da implementação do genocídio judeu.

A partir de uma vontade racional, foi idealizado, criado e implementado um sistema operativo, totalmente funcional que, posto em marcha, buscava, como único objetivo final, o extermínio de todos os membros de um povo, isto é, um genocídio. Um procedimento perverso que se sistematizou em um funcionamento eficiente e, como temos visto, não só implicava os hierarcas nazistas, mas também grande parte da população alemã 129. Depois do horror, vem o reconhecimento e, como este foi registrado de diversas maneiras, não foi possível ocultar.O horror ficou exposto e saiu à luz, junto com a montanha de cadáveres exibidos em praça pública e frente aos quais as autoridades norte-americanas fizeram desfilarem centenas de civis alemães, com a

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A solução final, Endlsösung em alemão, tinha como intenção exterminar todos os judeus na Europa. Como consequência, morreram seis milhões de homens, mulheres, velhos e crianças, em câmaras de gás, de inanição em campos de concentração e de execuções diversas. Todas as mortes igualmente horrorosas e perversas. Shoa significa “a catástrofe” e é o termo que os judeus preferem que seja usado para se referir a este atroz capítulo de sua história, pois o termo holocausto, usualmente, implica a concepção de sacrifício que, ligado a este termo, inclui a noção de vontade, o que não é pertinente. Produto de uma investigação realizada na universidade de Yale, Soshana Feldan e Dori Laub elaboraram a noção de shoá como “acontecimento sem testemunhas” e em duplo sentido, já que sobre isto é impossível testemunhar, desde o interior – porque não se pode testemunhar desde o interior da morte, não há voz para a extinção da voz – como desde o exterior, porque o outsider permanece excluído por definição do acontecimento. (Agamben, Lo que queda de Auschwitz, Pretextos, 2000.p.19).

129 Angela Merkel, chanceler alemã, na inauguração da exposição ”Topografia do terror”, sobre a chegada

de Hitler ao poder, disse que “a ascensão do nacional socialismo só foi possível porque contou com o apoio das elites da Alemanha e de grande parte da sociedade” e que uma maioria comportou “com indiferença no melhor dos casos”. Acrescentou que “os direitos humanos não se impõem por si mesmos, mas que fazem falta pessoas valentes que os defendam” http://www.dw.de/merkel-abre-muestra-sobre- llegada-de-hitler-al-poder/a-16560595.

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finalidade de que vissem com seus olhos o que haviam sido capazes de permitir. No entanto, nenhum norte-americano desfilou frente aos civis mortos em Hiroshima e Nagazaki. Como uma consequência lógica, houve uma grande crise de sentido no mundo intelectual, político e artístico em nível planetário. Todos buscavam explicações como essa indústria mortífera pudera se concretizar. Uma indústria de terror que contava com sistemas de produção 130 oferecidos pela modernidade e pelos procedimentos ordenados da ação em cadeia. A parte contribui com o todo, mas a parte pode se desculpar aduzindo ignorância por não ter compreensão do fim último de sua ação. A pergunta que se instalou em decorrência dessa realidade permitiu que surgissem importantes movimentos filosóficos, como o existencialismo, o surrealismo e o absurdo, entre outras tendências, na tentativa de dar resposta a esses acontecimentos a partir de diferentes elaborações intelectuais e artísticas.

Para o governo das diversas nações, foi necessário acordar uma carta fundamental que fixasse as bases para toda a humanidade, sobre o resguardo comum para proteção do ser humano e de sua dignidade. Assim, em 1945, os representantes de 51 países (a Polônia assinaria depois, já que seu representante estava ausente) reuniram-se na Conferência das Nações Unidas, em São Francisco, para redigir a Carta das Nações Unidas. Os delegados deliberaram sobre a base de propostas previamente elaboradas e preparadas pelos representantes da China, da União Soviética, o Reino Unido e os Estados Unidos, em Dumbarton Oaks, em Washington, EEUU, entre agosto e outubro de 1944.131 Os países do mundo estabeleciam, pela

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O livro de Giorgio Agamben Lo que Queda de Auschwitz, El archivo y el Testigo, Homo Sacer III, Ed. Pretextos 2000, reúne uma série de perguntas sobre o que realmente aconteceu ali, no campo de extermínio, e discute a importância da testemunha como fonte de verdade. Analisa os escritos de Primo Levi, testemunhas dos próprios Sonderkomando (“Esquadra especial – as SS se referiam aos grupos de deportados aos quais se confiava a gestão das câmaras de gás e dos crematórios. Eram os que tinham que conduzir os prisioneiros nus à morte em câmaras de gás e manter a ordem entre eles; depois tirar os cadáveres, com suas manchas rosas e verdes pelo efeito do ácido cianídrico, e lavá-los com jatos de água; comprovar que não havia objetos preciosos escondidos nos orifícios corporais; arrancar os dentes de ouro das mandíbulas; cortar o cabelo das mulheres e lavá-los com cloreto de amoníaco; transportar os cadáveres aos crematórios, assegurar-se de sua combustão e, por último, limpar os fornos dos restos de cinza”) e dá conta de que, apesar dos esforços realizados para compreender o acontecido nos campos de extermínio, existe uma zona em que a linguagem não pode penetrar, denominado como lacuna. Agamben estabelece que esta lacuna é impenetrável e permanecerá, sem ser jamais dita nem compreendida.

131 O nome de “Nações Unidas”, cunhado pelo Presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt,

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primeira vez, de comum acordo, certas normas e preceitos, que haviam sido respeitados pelos países assinantes e buscavam garantir o resguardo de todas as pessoas, sem exclusão e em qualquer parte do mundo.132 Este foi o antecedente direto do que depois seria a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que foi elaborada por uma comissão de 18 pessoas provenientes de oito nações e presidida pela Primeira Dama Eleanor Roosevelt. 133

René Cassin 134 foi o principal redator da versão definitiva que seria assinada por 51 países, em meio a longas deliberações e 1400 rodadas de votações sobre cada um de seus artigos. Hernán Santa Cruz, representante do Chile e membro da Subcomissão de redação, descreveu o que sentiu durante a cerimônia em 10 de dezembro de 1948, quando foi assinado o documento em Paris:

“Percebi claramente que participava de um evento histórico verdadeiramente significativo, em que se havia alcançado um consenso a respeito do valor supremo da pessoa humana, um valor que não se originou na decisão de um poder temporal, mas no fato

representantes de 26 nações aprovaram a “Declaração das Nações Unidas, em virtude da qual seus respectivos governos se comprometiam a seguir lutando juntos contra as Potências do Eixo (Roma Tóquio e Berlim). http://www.un.org/es/aboutun/history/index.shtml

http://www.un.org/es/aboutun/history/index.shtml

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É importante afirmar que existem antecedentes históricos, prévios à declaração dos Direitos Humanos, em que se limitou o poder dos governos e se estendeu o trato aos inimigos. São documentos que tentaram estabelecer normas de conduta apropriadas entre os seres humanos. O antecedente mais remoto é o Cilindro de Ciro, em que o rei da Pérsia, Ciro, o Grande, após invadir a Babilônia em 539 a.C., descreve seu comportamento. Descoberto em 1879 e traduzido pela ONU em 1971, este cilindro é considerado como um antecedente necessário aos DDHH, a partir do discurso de Shirin Ebadi, ao receber o Prêmio Nobel em 2003.

http://antepasadosnuestros.blogspot.com/2012/02/el-cilindro-de-ciro-textocompleto.html. Outros antecedentes são:

a) “A carta de Manden”, de 1222, do império Mali, foi promulgada pelo Rei Sundjata Keita. http://blogs.elpais.com/africa-no-es-un-pais/2012/03/la-primera-carta-de-derechos-humanos-nacio-en- mali.html.

b) A “Bill of Rights” que é o documento redigido pelos ingleses após a guerra civil em 1689. https://www.princeton.edu/~achaney/tmve/wiki100k/docs/Bill_of_Rights_1689.html

c) Em 1789, após a Revolução Francesa, redigiu-se a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”.

http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derhum/cont/30/pr/pr23.pdf

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Política, ativista e feminista norte-americana, além de escritora e primeira dama casada com o presidente Roosevelt. Foi influenciada por feministas inglesas naquele tempo em que se educou. Teve uma vida pública importante, advogando pelos direitos humanos das minorias.

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Rene Cassin (1887- 1976) Jurista, Doutor em Direito e Ciências Políticas, Prêmio Nobel 1868, de origem judaica, combateu o antissemitismo na França e fundou a “Ligue des Droits de l´Homme”, exilando-se logo na Inglaterra. Depois do fim da guerra e tendo participado dos julgamentos de Nuremberg, notou o quanto era importante estabelecer acordos de direito internacional, para proteger a humanidade de si mesma.

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mesmo de existir, o que deu origem ao direito inalienável de viver sem provações nem opressão e de desenvolver completamente a própria personalidade. No Grande Salão havia uma atmosfera de solidariedade e irmandade genuínas entre homens e mulheres de todas as latitudes, a qual não voltei a ver em nenhum cenário internacional”.135

Os artigos da Declaração dos Direitos Humanos têm um valor de legislação internacional, são irrenunciáveis e universais. Na teoria, os direitos humanos compreendem trinta artigos principais e são comuns a todos os seres humanos só pelo fato de existirem, isto é, em virtude da humanidade que possuem. Não importa onde nasça, qual seja o sexo nem de que etnia provenham, os direitos humanos não discriminam as pessoas. Estes direitos se inter-relacionam, são independentes e indivisíveis. Em geral, são contemplados pelas leis das nações e garantidos pelas constituições, mas o direito internacional estabelece obrigações que todos, sem exceção, devem cumprir para proteger e resguardar as liberdades fundamentais dos indivíduos. Os direitos humanos são divididos em dois grupos, de acordo com as obrigações que os envolve. Existem os direitos humanos chamados negativos (DHN), porque, para que estes sejam cumpridos, somente se requerem atitudes de abstenção ou de não interferência, isto é, os que impedem uma ação e, portanto, são restritivos. Sua principal função é limitar as ações do depositário do direito. Argumentam o que não se pode fazer a alguém, como, por exemplo, uma pessoa detida não pode ser torturada ou, também, uma pessoa não pode ser discriminada por sua orientação sexual. Estabelecem que ninguém pode ser privado de certas questões, como liberdade de escolha e associação. Também são os direitos humanos positivos (DHP) que estabelecem o direito de justiça. Afirmam questões que devem ser respeitadas para o desenvolvimento de ser humano, implicando ações a serem realizadas pelo Estado ou pelo resto dos indivíduos, como, por exemplo, o direito da educação básica ou seu ingresso justo.

Que os direitos humanos sejam universais e inalienáveis implica que são universais e que não dependem do sistema político em exercício. Todos os governos

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Na tarefa de redação do documento, as colocações de Rene Cassin (França), Charles Malik (Líbano), Peng Chun Chang (China), Hernán Santa Cruz (Chile), Alexandre Bogomolov/Alexei Pavlov (União Soviética) Lord Duckeston/ Geoffrey Wilson (Reino Unido) William Hodgson (Austrália) e John Humphrey (Canadá) foram decisivas.http://www.un.org/es/documents/udhr/history.shtml

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devem respeitá-los e sempre promovê-los. São obrigatórios e uma pessoa natural não pode renunciar a eles e não devem ser suprimidos, salvo em casos pontuais e segundo garantias processuais determinadas. Por exemplo, uma pessoa que tenha cometido um delito e que seja julgada e condenada de acordo com a lei perde seu direito de liberdade, por ser culpada de uma infração que leva a uma sanção. Que os Direitos Humanos, em seu conjunto, sejam interdependentes, inter-relacionados e indivisíveis implica que uns se nutrem e se alimentam dos outros e que devem ser respeitados na totalidade de seu conjunto. Não se pode respeitar uns e os outros não, arbitrariamente. Devem ser respeitados todos, a todo tempo, ao mesmo tempo. Se um é vulnerado, isto terá um efeito negativo sobre todos os outros. Que os direitos humanos sejam igualitários e não discriminatórios, quer dizer que estes se atêm ao principio da transversalidade do direito internacional e que não são aplicados de forma seletiva a uns seres humanos e a outros não. Isto é, são aplicáveis para todos os seres humanos por igual, de forma indiscriminada. Isto fica sintetizado com clareza no primeiro artigo da declaração universal dos direitos humanos e que estabelece que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. 136

Os direitos humanos incluem tanto direitos como obrigações. Os Estados assumem as obrigações e os deveres, em virtude do direito internacional, de respeitar, proteger e fazer cumprir esses direitos. A obrigação de respeitá-los significa que os Estados devem abster-se de interferir no desfrute dos direitos humanos ou de limitá-los em qualquer sentido. A obrigação de protegê-los implica que os Estados impeçam os abusos dos direitos humanos contra indivíduos e grupos. A obrigação de realizá-los significa que todo Estado deve adotar medidas positivas para facilitar o desfrute dos direitos humanos básicos. No plano individual, assim como devemos fazer respeitarem nossos direitos humanos, também devemos respeitar os direitos humanos dos demais.

Em seguida, transcrevemos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, para logo analisar algumas de suas críticas e dos problemas e tensões que apresentam como estrutura hegemônica.

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