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A CENA PRIMÁRIA DE INSTRUÇÃO

2. A cena primária de instrução

Se – como diz Dahlhaus – os conceitos estéticos são necessariamente carregados de pressupostos históricos – sobretudo porque eles ajudam a explicar tudo o que há de contextual na arte –, por outro lado, a estética oferece os necessários critérios de seleção à história da arte – isto é, sem critérios estéticos a história não tem como separar a arte da não arte, e corre o risco de ser uma história da arte sem arte.56 A pretensão de Harold Bloom é menos filosófica: diante da experiência pragmática e simultaneamente dialética da leitura, ele não precisa perguntar o que a poesia é. E sua trajetória evita, igualmente, a ênfase historicista – para ele sempre propensa a idealizações. Freqüentemente de forma provocativa – como por exemplo no capítulo-manifesto “A Necessidade da Desleitura” –57 ele chama a atenção para uma certa incomensurabilidade entre a arte e a sua história: não há nenhum caminho linear capaz de conduzir da história da arte para a arte, uma vez que a história tende a mascarar a desleitura da tradição como mecanismo fundamental da arte. Comenta Bloom:

54 Ibid. Publicado no Daily Telegraph em 27 de novembro de 1951. 55

Ibid. Publicado no The Times em 3 de dezembro de 1951, p. 2. Vale a pena salientar a importância do periódico.

56

DAHLHAUS, Carl. Estética Musical. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 104-5.

57

Em BLOOM, Harold. Cabala e Crítica. Tradução de Monique Balbuena: Rio de Janeiro, Imago, 1991, pp. 105- 137.

Emerson negava que a história existisse: havia apenas a biografia, afirmava ele. Parafraseio-o, dizendo que não existe história literária, mas já que existe a biografia, e somente a biografia, uma biografia verdadeiramente literária é, em grande parte, uma história das defensivas desleituras de um poeta realizadas por outro poeta. Uma biografia não se torna uma biografia literária senão quando é produzido algum significado literário, e este só pode resultar da interpretação da literatura.58

Ressaltemos a ênfase na biografia verdadeiramente literária, isto é – ao contrário do que poderia tentar apontar uma leitura superficial de Bloom –, não se trata também de substituir o viés historicista por alguma sorte de análise psicológica (ou mesmo psicanalítica) dos autores: a leitura forte bloomiana não pode ser explicada apenas a partir de motivações pessoais, e – infelizmente – a saúde psíquica não é um fator facilitador para o processo de desleitura artística:59

Uma teoria da influência poética se torna uma teoria da desleitura, porque somente a desleitura permite ao poema continuar com as suas próprias contradições filosóficas. A esquizofrenia é um desastre na vida, e um sucesso na poesia. Um poema forte começa forte ao saber e ao mostrar que ele deve ser des-lido, que ele deve forçar o

leitor a adotar uma postura que ele (o leitor) sabe não ser verdadeira. Um poema é uma mentira sobre si mesmo, mas que só chega a ser ele mesmo mentindo contra o tempo, e

o seu único modo de mentir contra o tempo é mentir sobre poemas precedentes, e ele só pode mentir sobre eles des-lendo-os, o que completa nossa revisão

desconcertadoramente perversa de um círculo hermenêutico, e nos traz de volta à problemática questão do leitor.60

Ao recusar um uso dos princípios científicos manifestos – para ele sempre redutores – de Freud na crítica, Bloom aceita, no entanto, a influência poética de seus princípios latentes: para o crítico norte-americano, tropos e defesas são figuras de “falsificação intencional” mais do que figuras de “involuntário conhecimento”.61 Dessa forma, ao nomear a vontade poética como

58 Ibid., pp. 116-7.

59

Ver também MOLINA, Sidney. Mahler em Schoenberg: angústia da influência na Sinfonia de Câmara n. 1. São Paulo: Rondó, 2003, pp. 9-10.

60

BLOOM, Harold, ibid., p. 122.

61

“liberdade reprimida” (e não como “compulsão sublimada”), Bloom explicita seu afastamento em relação a Freud:62

Escrever em louvor à repressão é apenas dizer que a crítica antitética deve traçar uma linha divisória entre a sublimação e o significado poético, e assim se afastar de Freud. O argumento central deste livro [Um Mapa da desleitura], bem como de A Angústia da Influência, é que a sublimação é uma defesa de limitação, assim como a

metáfora é um autocontraditório tropo de limitação. O que os românticos chamavam de Imaginação criativa é análogo, não à sublimação e à metáfora, mas à repressão e à hipérbole, que representam no lugar de limitar. A repressão, ou Verdrängung para

Freud, é um processo defensivo pelo qual tentamos manter representações instintuais (memórias e desejos) inconscientes. Mas esta tentativa de manter representações num nível inconsciente na verdade é o que cria o inconsciente (embora tal afirmação nos

afaste de novo de Freud). Ninguém que estuda poesia a sério concordaria que “a essência da repressão reside simplesmente em afastar algo, mantê-lo à distância, do consciente”. A hipérbole, o tropo do excesso ou da derrocada, como a repressão, tira suas imagens da altura e profundidade, do Sublime e do Grotesco. Aprofundar-se no inconsciente é o mesmo processo de carregar o inconsciente, pois este, como a Imaginação romântica, não possui aspecto referencial. Tal como a Imaginação, não

pode ser definido porque é um tropo sublime ou uma hipérbole, uma projeção do espírito. Quando o poema passou por um tal esvaziamento que sua continuidade ameaça se romper, ele reprime sua força de representação até atingir o Sublime ou cai em grotescos desvios – mas, em ambos os casos, produz significado. A glória da repressão, poeticamente falando, é que a memória e o desejo, submergidos, não têm aonde ir na linguagem a não ser para as alturas do sublime, a exultação do ego em suas

próprias operações.63

E esse afastamento em relação a Freud – a desleitura de Freud por Bloom –, na busca de uma teoria da poesia, aprofunda a relação entre arte e história, dirigindo-se àquilo que Bloom denominará a “Cena Primária de Instrução”.64 Sua reflexão remonta a Kierkegaard:

62

Ver ibid., p. 36.

63

BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 109.

64

Recorro a Kierkegaard como o grande teórico da Cena de Instrução, especialmente em seu brilhante e polêmico texto, Fragmentos Filosóficos (1844). A

página de título deste livrinho levanta a esplêndida pergunta tripla: “Seria um ponto de partida histórico possível para uma consciência eterna; como tal ponto de partida poderia ter algum interesse que não fosse meramente histórico; seria possível basear uma felicidade eterna sobre o conhecimento histórico?” A intenção de Kierkegaard é refutar Hegel ao separar drasticamente o cristianismo da filosofia idealista, mas sua pergunta tripla é perfeitamente aplicável ao secular paradoxo da encarnação poética e influência poética. Pois a angústia da influência brota da asserção do efebo de uma consciência eterna e divinatória que, entretanto, tomou seu ponto de partida histórico em um encontro intratextual, e, o que é mais crucial, no momento interpretativo ou ato de desapropriação contido em tal encontro. De fato, como, deve se perguntar o efebo, poderia tal ponto de partida ter mais do que um interesse meramente histórico em vez de poético? E o que é mais angustiante: como pode a pretensão do poeta forte à imortalidade poética (a única felicidade eterna relevante) ser fundada sobre um encontro atado tardiamente no tempo?65

Assim, Bloom enfrenta Freud em seu próprio terreno, aceitando fazer parte de uma discussão que começa nas duas Cenas Primárias de Freud – a fantasia edipiana e o assassinato do pai por seus filhos rivais – e passa pela Cena da Escritura formulada por Jacques Derrida:

O que torna uma cena Primária? Uma cena é um cenário visto por um espectador, um lugar onde a ação, real ou fictícia, ocorre ou é encenada. Toda Cena Primária é necessariamente uma performance de palco ou uma ficção fantástica, e,

quando descrita, é necessariamente um tropo. As duas Cenas Primárias de Freud, da fantasia edipiana e do assassinato do pai por seus filhos rivais, são ambas sinédoques

[…] Quando chama uma cena de Primária, Freud depende retoricamente, como afirma

Rieff, da sinédoque ou substituição da parte pelo todo como um protótipo causal, a priori e prefigurativo, para posteriores desenvolvimentos psíquicos. Já que as Cenas

Primárias são traumas fantasiosos, elas atestam o poder da imaginação sobre o fato, e com efeito dão uma espantosa preferência à imaginação no lugar da observação. Rieff, seguindo Freud, é compelido a falar das “verdadeiras ficções da vida interior”. Talvez este seja o paradoxo mais estranho da visão freudiana, já que uma realidade

65

psicológica verdadeiramente superior, a Cena Primária, é confirmada apenas pela imaginação.66

E é nesse ponto que Bloom chega a Derrida, para quem Freud havia recorrido indiretamente a modelos retóricos não fornecidos pela tradição oral: é como se Freud seguisse um “roteiro”, a performance de uma “Cena da Escritura”, que “ao mesmo tempo nos salva do vazio e, mais agressivamente (como contra a expressão oral), nos dá uma diferença salvadora por prevenir aquela coincidência do falante com o assunto”.67 Para explicar o sentido desse roteiro seguido por Freud, Derrida cunhou a palavra différance, que combina “diferir” com “deferir”, e que joga com as duas acepções, relacionando lacanianamente signos apenas com outros signos. Na afirmação de que “não existe psique sem texto”, Derrida – segundo Bloom – ultrapassa a sentença de Lacan sobre a estrutura lingüística do inconsciente e inspira a associação entre hipérbole e repressão:

Derrida, em seu deslumbrante ensaio sobre “Freud e a Cena da Escritura”, postula uma terceira cena, mais Primária do que as duas sinédoques freudianas [...] O insight mais perspicaz de Derrida, na minha avaliação, é que “a escritura é impensável

sem a repressão”, o que significa identificar a escrita como tal com o tropo daimonizante da hipérbole. Como Derrida eloqüentemente insiste, “somos escritos apenas pela escritura”, uma hipérbole que destrói a falsa distinção entre leitura e escrita, que faz de toda literatura “a guerra e ardis entre o autor que lê e o primeiro leitor que dita”.68

Dessa forma, a vida psíquica já não deve ser representada “como uma transparência de significado, nem como uma opacidade de significação, mas como uma diferença intratextual que opera no conflito de significados e no exercício das significações”.69

Bloom, entretanto, considera que a própria Cena da Escritura de Derrida depende de um tropo mais ousado, um esquema de transunção ou metalepse – isto é, um tropo inversor de

66 Ibid., p. 58. 67 Ibid., p. 54. 68 Ibid., p. 59. 69 Ibid., p. 59.

tropos – que ele denomina Cena Primária de Instrução.70 Angústias da influência, para Bloom, inibem a escrita, mas afetam bem menos a tradição oral e logocêntrica:

Toda Cena Primária tem, necessariamente, a estrutura de uma fantasia, mas Freud tropeçou de forma grave ao postular uma herança transmitida filogeneticamente para explicar a universalidade de tais fantasias [...] Contrariando Freud, a idéia de que

a cena mais Primária seja uma cena de Instrução retorna às raízes do princípio canônico e insiste que: “No começo era a Interpretação” [...] O local psíquico da

consciência elevada, de uma demanda instensificada, onde é encenada a Cena de Instrução, é necessariamente um local que o recém-chegado abre dentro de si mesmo, por uma contração ou retirada inicial que torna possível todas as autolimitações ulteriores, e todos os modos de auto-representação restitutivos.71

Nesse contexto, por trás de toda fantasia Primária está a repressão ainda mais primária, que – segundo Bloom – Freud considerou hipoteticamente e evitou. Bloom cita o Freud do ensaio “Repressão” (1915):

Temos motivo para supor que haja uma repressão primária, uma primeira fase de repressão, que consiste no representante psíquico (ideacional) do instinto a que foi negada a entrada na consciência. Com isto estabelece-se uma fixação; o representante em questão persiste inalterado daí por diante e o instinto permanece ligado a ele.72

A percepção inicial dessa Cena – que será assimilada ao contexto secular da influência poética – parece provir da milenar Tradição Oral judaica de ensino:

70

“A transunção ou metalepse é, para Bloom, o único tropo-que-reverte-outro-tropo, pois através dele uma palavra substitui outra em representações simbólicas anteriores. Angus Fletcher, seguindo Quintiliano, descreve a metalepse ou transunção como um processo ‘em que o poeta vai de uma palavra à outra que soa semelhante, e depois a ainda mais outra, desenvolvendo uma cadeia de associações auditivas, levando o poema de uma imagem para outra ainda mais remota’. Bloom considera a transunção como o ato final e definitivo de assumir uma postura poética em relação à anterioridade”. Ver MOLINA, Sidney. Op. cit., p. 7.

71

BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura, p. 66.

72

O Zohar, o mais influente dos textos cabalistas (particularmente para Luria),

ensinava que as Tábuas dos Mandamentos, como foram trazidas por Moisés, eram uma segunda Torá, a primeira e “não-criada Torá”, que foi oculta de nós exceto como a

versão esotérica ou cabalista da Tradição Oral. Esta tradição ou “recepção” (que é o significado da palavra “Cabala”) é tratada como “um martelo triturando uma pedra”, sendo que a pedra é a Torá Escrita.73

Essa Instrução Primária manifesta-se como um amor de Eleição que sela o pacto poético entre o precursor e o efebo, sustentando a angústia que garante o processo de desleitura em suas várias etapas:

O primeiro elemento a observar, portanto, a respeito da Cena de Instrução é sua absoluta primeiridade; ela define a prioridade. Wheeler Robinson, em seu estudo sobre a inspiração do Antigo Testamento, aproxima-se do tropo de uma Cena de Instrução quando percebe que, enquanto a tradição oral surgiu para interpretar a Torá escrita, a própria Torá escrita como autoridade substituiu os atos cúlticos. O ato cúltico por excelência é aquele em que o adorador recebe a condescendência de Deus, a obsequiosa dádiva de seu Amor de Eleição. O amor de Eleição, o amor de Deus por Israel, é o início Primário de uma Cena Primária de Instrução, uma Cena cedo deslocada de contextos judaicos ou cristãos para contextos seculares. O amor de Eleição, o ahabah hebraico, é remetido por Norman Snaith a uma raiz que em uma forma significa “queimar ou atiçar” e em outra se refere a todos os tipos de amor exceto o familiar, seja entre marido e mulher ou entre filho e pai. Ahabah é assim amor incondicional em sua dádiva, mas totalmente condicionado à passividade em seu recebimento. Por trás de qualquer Cena de Escritura, no princípio de qualquer encontro intertextual, existe esse amor inicial desigual, onde necessariamente a dádiva desperta a fome daquele que a recebe. Quem recebe é incendiado, e contudo o fogo pertence apenas àquele que doa.74

73

Ibid., p. 55.

74