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A CENA PRIMÁRIA DE INSTRUÇÃO

3. As origens poéticas de Julian Bream

Nesse ponto fica claro como a angústia da influência entre artistas não pode – necessariamente – ser explicada através das relações familiares. Assim, o abandono da mãe, a morte do pai, o desprezo de Segovia e, também, a ajuda incansável do pai, a competição entre Appleby e Perott, o bom senso de Sir George e a generosidade de Thomas Goff podem até mostrar a gênese da carreira, mas nada explicam sobre a força do pacto entretecido entre Julian Bream e o “som do violão”. Em algum momento de sua formação, Bream foi tomado inexoravelmente por uma sonoridade, e essa Eleição, como primeira Instrução, determinou o seu porvir musical-sonoro. Ousamos sugerir que essa coincidência – sempre tão rara e improvável quanto necessária – entre história e eternidade poética tenha sido potencializada, no caso de Julian Bream, através da escuta de uma gravação de Andrés Segovia.

Assim, a não datada escuta silenciosa de um certo disco talvez possa ter determinado de forma indelével o futuro de Bream, mais ainda do que os futuros encontros com Segovia; e seria normal que esse momento jamais se tornasse evento histórico passível de documentação. Há, no entanto, uma pista. E – tendo deixado apenas uma ou outra nota incompleta sobre o tema em entrevistas realizadas enquanto estava em plena atividade – não deixa de ser digno de menção que o único depoimento completo sobre esse momento tenha sido dado por Bream exatamente na mesma entrevista em que – com pesar – anunciou formalmente para o grande público a decisão de retirar-se definitivamente do cenário musical de concertos e gravações. Nesse depoimento – gravado no ano em que completou setenta anos de idade e lançado comercialmente como parte integrante do DVD My Life in Music no ano seguinte – é como se Bream tivesse finalmente liberado para ser expresso em palavras algo que havia ficado contido durante a carreira que estava se encerrando, apenas no momento em que o violão já se havia calado. Segundo Nietzsche – citado por Bloom – “aquilo para que encontramos palavras é o que já perdeu o uso em nossos corações; há sempre um tipo de desprezo no ato de falar”, mas a fala de Bream revela de forma inspirada a luminosidade do som de Segovia em seu ponto de partida, e é em si uma síntese do ahabah, do amor de Eleição tal como descrito por Harold Bloom:

My father brought home a record one afternoon [provavelmente durante a Segunda Guerra Mundial]. And he put it on the tone table: it was Recuerdos de la Alhambra played by the great Segovia. I heard that, and I had no doubt in my mind that

is what I wanted to do: to play like that. You know, it’s very difficult to describe the

magic of that record, because it was an old 12 inch 78 record, and it was a combination of this old recording and the old ribbon microphones – that they would have been used in those days – that created a sound that was so mellifluous; it was just magic, and still I can hear that recording, but it’s the sound that is the magic. The piece is very beautiful

too, but it was the sound, and it was that that grabbed me. And I never looked back, from

hearing that recording to the present day.75

Parece que Bream sempre esteve pronto para tocar Recuerdos de la Alhambra: foi, mesmo, encorajado por Appleby a incluir a peça de Tárrega em seu recital de estréia aos treze anos, mas seu pai preferiu manter no programa o Estudo de concerto de Napoléon Coste:

On 12 February [de 1947, cinco dias antes do recital na Cheltenham Art Gallery] Henry dispatched Julian’s completed programme, but naturally Appleby raised

some objections. He wanted to substitute Napoléon Coste’s Concert Study for Tárrega’s Recuerdos de la Alhambra. Henry argued that, although a captivating piece, the

Tárrega did not furnish Julian an opportunity to demonstrate his technical command. But Henry and Julian did, in deference to Applelby’s exhortations, change Scarlatti’s

Sonata for one by Paganini.76

Entretanto, uma coisa é estar pronto para apresentar em público a peça de Tárrega; outra, bem diferente, é gravá-la – como Segovia havia feito naquele disco de 78 rotações [CD3 faixa 13].77 Ao longo de sua trajetória, Julian Bream gravou duas vezes Recuerdos de la Alhambra, sendo a primeira delas apenas no LP duplo The Guitar in Spain (gravado em 1983-4 e lançado em 1985),78 quando já contava cinqüenta anos de idade.79 Entre o seu primeiro

75

BREAM, Julian. “My first Spanish guitar and meeting Segovia”, in BREAM, Julian. My Life in Music (DVD). Transcrição de David G. Molina. Music on earth, 2003. Os grifos tentam reproduzir a ênfase presente no discurso oral. O disco 78 rpm comentado deve ter sido – provavelmente – o que trazia o tremolo de Tarrega de um lado e o Fandanguillo de Turina no verso (HMV D. 1395 England / Victor Red Seal 6767, gravado por Segovia em 1927-8, e relançado diversas vezes).

76 BUTTON, Stuart W. Op. cit., p. 42. 77

Indicamos dessa forma a referência do texto aos exemplos nos CDs anexos.

78

BREAM, Julian. The Guitar in Spain (LP duplo). RCA CRC2-5417, 1985.

79

A segunda gravação veio a público quase dez anos depois, quando Bream já se aproximava dos sessenta anos de idade, quase no limiar da fase final de sua carreira. Ver BREAM, Julian. La Guitarra Romântica – Llobet,

disco, gravado aos vinte e dois anos (1955) e o que traz pela primeira vez a peça de Tárrega, gravado no auge da carreira, passariam-se trinta anos, durante os quais Bream gravaria a notável quantidade de quarenta e um discos (!) antes de chegar a The Guitar in Spain.

Contando The Guitar in Spain e os álbuns subseqüentes, Bream ainda lançaria nove trabalhos fonográficos, perfazendo a exata conta de cinqüenta discos.80 Como não encontramos nenhuma prévia classificação dessa extensa obra, decidimos elaborar a nossa própria, dividindo-a – com a ajuda da ironia bloomiana – em três momentos, cada um dos quais compreendendo duas fases.81 Essas etapas são irregulares, tanto na duração temporal quanto na quantidade de álbuns em cada uma, mas parecem ajudar a revelar os principais passos do ciclo vital do artista, a dialética de seu itinerário poético. A segunda parte da tese está dedicada, portanto, à crítica dos discos, e essa crítica passa – aqui – por uma minuciosa descrição de cada uma dessas fases. Assim, o primeiro momento (Capítulo IV – “A arte de Julian Bream” traz a primeira fase (1955-58, com 6 discos) e a segunda fase (1959-64, com 9 discos); o segundo momento (Capítulo V – “Os LPs temáticos e a instrução sonora”) compreende a terceira fase (1965-70, com 9 discos) e a quarta fase (1971-78, com 11 discos); e, finalmente, o terceiro momento (Capítulo VI – “La guitarra romantica”) traz a quinta fase (1979-91, com 11 discos) e a sexta fase (1992-95, com 4 discos).82

Pujol, Tarrega (CD). RCA Red Seal 60429-2-RC, 1991. Na Julian Bream Edition as duas gravações de

Recuerdos de la Alhambra podem ser encontradas respectivamente no vol. 27 faixa 15 e no vol. 26 faixa 6.

80

Nessa conta não estão inclusas, claro, nem reedições nem coletâneas, mas tão-só os álbuns originais, na ordem em que se sucederam na carreira de Bream. Em geral, preferimos tomar como referência da discografia os próprios LPs. Apenas utilizamos CDs quando lançados simultaneamente aos respectivos LPs, contendo exatamente o mesmo repertório, na mesma ordem de faixas. Isso se tornou relativamente comum durante o período de lançamento dos primeiros CDs a partir de meados dos anos 80, e durou até o início dos anos 90.

81

Não se trata, porém, de uma aplicação literal – que poderia parecer forçada – das categorias Bloom, mas de uma desleitura da obra fonográfica de Bream atenta aos movimentos dialéticos e desvios do jogo de limitações e representações mapeado pelo crítico norte-americano.

82

Apenas os quatro discos da última fase não foram lançados também como LPs, sendo prensados apenas no formato de CDs.

PARTEII

UMADESLEITURADOLEGADOFONOGRÁFICODEJULIANBREAM

“[...] take my record. Put the record in front of you and imitate it. That will be my lesson. Accept my lesson. Do not fail.” Andres Segovia1

1

McKENNA, Constance. “A Segovia Masterclass”. In Guitar Review, Fall 1986, p. 10. Ver WADE, Graham e GARNO, Gerard. A New Look at Segovia. His life and his music, vol. 1. Pacific: Mel Bay, 1997, 2000, p. 197.