• Nenhum resultado encontrado

A ARTE DE J ULIAN B REAM (1955-64)

2. Voz poética e passividade (1959-64)

Ou este não pode ser o lugar. Não há, portanto, valor algum, mas eu mesmo não estou diminuído.52

A segunda fase da obra discográfica de Julian Bream vai de seus vinte e seis a trinta e um anos de idade, e começa com a assinatura de contrato com a gravadora RCA, com a qual terá uma ligação de mais de trinta anos.53 São nove discos nesse período: dois com Peter Pears (um ao vivo ao alaúde, e outro ao violão), dois nos quais atua junto a agrupamentos orquestrais, o primeiro de seu próprio ensemble (o Julian Bream Consort), um de alaúde solo, e três de violão solo (sendo um deles novamente dedicado a Bach).

A música elizabetana ocupa, portanto, três dos nove trabalhos. Esses trabalhos são uma continuação lógica a partir do campo aberto na fase anterior. Em todos os discos de alaúde Bream permanece fiel a seu instrumento Thomas Goff (1951), e tanto no disco de alaúde solo quanto no do Julian Bream Consort as gravações foram realizadas nos Decca Studios de Londres, com produção de Ray Minshull.

51

BLOOM, Harold. A Angústia da Influência, p. 53.

52

Ibid., p. 199.

53

The Golden Age of English Lute Music (1961) An Evening of Elizabethan Music (1962)

Abre a série elizabetana o LP The Golden Age of English Lute Music (1961),54 com obras de Robert Johnson (c.1583-1633), John Johnson (fl.1579-1594), Francis Cutting (fl. 1583- c.1603), John Dowland (1563-1626), Philip Rosseter (c.1567/8-1623), Thomas Morley (1557/8- 1603), Baruch Bulman (fl.c.1600), Daniel Bachelar (c. 1574-1600) e Anthony Holborne (fl. 1584?-1602). Ao contrário do disco de alaúde anterior, aqui Bream não se fixa em Dowland, mas traz à luz a obra de outros importantes autores do período elizabetano. É um disco de plena maturidade musical, sem nenhuma timidez. O domínio polifônico é total, cada voz que entra em cena tem o seu próprio som, sua cor e seu tempo, como em “Carman’s Whistle”, de Robert Johnson [CD1 faixa 6], ou na “Pavan” de Bulman. Na “Galliard” de Holborne que encerra o disco, a repetição literal da primeira parte parece misteriosamente ser a tranqüila continuação da peça, como se o assunto seguisse e não apenas andasse em círculos; a peça vai se desfazendo nota a nota – mas sem perder sonoridade, ao contrário, projetando o alaúde em direção ao infinito –, numa calma digna dos melhores momentos de Glenn Gould. Fica até difícil entender, a partir desse disco, como uma maturidade conquistada tão cedo haveria de ser superada tanto e tantas vezes.

Já o LP do Julian Bream Consort é um pouco mais homogêneo, apesar da variedade timbrística da proposta, da categoria dos instrumentistas e do real trabalho camerístico do grupo. An Evening of Elizabethan Music (1962) traz o sexteto composto por Olive Zorian (violino), David Sandemann (flauta), Joy Hall (viola baixo), Desmond Dupré (cistro e alaúde), Robert Spencer (voz, pandora e alaúde) e Julian Bream (alaúde).55 As obras são de William Byrd (1543-1623), Richard Alison (fl.1592-1606), Peter Phillips (1561-1628) e Thomas Campion (1567-1620), além de John Johnson, Morley, Dowland e da anônima “Kemp’s Jig”. Em comentário para o lançamento em CD desse álbum como parte da Julian Bream Edition, afirma John Duarte:

54

BREAM, Julian. The Golden Age of English Lute Music (LP), RCA RB 1681. Os LPs elizabetanos são respectivamente o terceiro, o quarto e o sexto dessa fase. The Golden Age surge logo após os discos The Art of

Julian Bream (1959) e Guitar Concertos (1960). As faixas desse disco estão totalmente incluídas no vol. 1 da Julian Bream Edition (faixas 1-15).

55

BREAM, Julian. An Evening of Elizabethan Music (LP), RCA RB 6592. As faixas desse disco estão incluídas no vol. 6 da Julian Bream Edition (faixas 1-19).

In Renaissance times (before c.1600) a consort was a small instrumental group, though the term is not kmown to have been used in England before 1575. Music was used as an adjunct to theatrical productions and from this milieu there evolved a particular and very English type of consort. Violin (or treble viol) and flute played the melodic lines, the “middle ground” was occupied by the cittern, and the bass viol and pandora provided the foundation. The lute either joined the melodic instruments or helped to fill out the harmonic texture. This finely balanced amalgam of bowed, plucked and blown instruments is known as a broken or mixed consort. Books of music for such a consort were published by Rosseter and Morley. All the consort items of this recording are from Morley’s First Book of Consort Lessons (1599-1611).56

Bream comenta o surgimento de seu interesse por esse tipo de trabalho:

Initially, I enjoyed tremendously my solo lute playing but after a while, it got a bit lonely playing the lute all my own. So I had the idea to recreate an instrumental group that was frequently used in the later part of the sixteenth and early seventeenth century largely as a dance band, providing popular music of the day for the theatre or the equivalent of the local hop. It was for this combination of instruments that Thomas Morley had published in 1599 a very famous collection of pieces called the First Book of Consort Lessons, and thirteen years later Philip Rosseter followed suit with another

remarkable set of similar pieces for the same group. The group of instruments was called a broken consort. 57

Segue-se o comentário de Bream sobre o termo broken, aplicado a essa espécie de agrupamento instrumental, e à organização sonora do ensemble:

There are several theories as to why it’s called “broken”, but I always like to think it was because the group breaks across several families of instruments. You’ve got the treble viol and bass viol, two bowed instruments; you’ve got a low tenor-sounding flute which is, naturally, blown; then there is the pandora and cittern, which are a pair of wire-strung, plucked instruments. And finally the lute, which is a gut-strung, plucked instrument. The lute in one guise is the harmonic go-between between the viols and the flute. Because of the style of broken consort music, the divisions or variations between the instruments are often very brilliant and showy. […] But things can get a bit rocky

56

DUARTE John. “The Julian Bream Consort” (encarte de CD), in BREAM, Julian. The Julian Bream Consort. Julian Bream Edition, vol. 6.

57

from time to time in the ensemble too. It’s inevitable when you’ve got four different families of instruments in one sextet. The problem arises because they all initially “speak” differently at the inception of a note, in other words some get off the mark quicker than others. The “chang” section, that is the pandora and cittern, because they are plucked, and are strung with quickly-activated wire strings, are generally first off the mark, followed by the lute, and the viols are pretty close behind, but the poor old flute, which is a large wooden keyless job, takes a hell of a long time to “speak”, because of the large column of air required in order to fill such a large pipe. So the player has to think slightly ahead, which believe me is not easy. There can be endless problems of articulation and ensemble in this group, but not only that: problems of intonation are particularly hairy, which keeps us all on our toes.58

A homeogeneidade de textura deve-se à repetição excessiva da solução que traz o canto sustentado por violino, sobretudo, e permeado por escalas virtuosísticas – para cima e para baixo – no alaúde de Bream. Ainda assim, as melhores peças são as mais rápidas – como “My Lord of Oxenford’s Maske” de Byrd, “Joyne Hands” de Morley e “Can She Excuse” [CD4 faixa 7],59 de Dowland –, onde o colorido aparece mais, e a diferença de articulação e ataque entre os instrumentos fica menos perceptível. O disco também traz solos de Bream, como as homenagens aos cômicos elizabetanos Will Kemp (a anônima “Kemp’s Jig”) e Richard Tarleton (“Tarleton’s Resurrection”, de Dowland), além de sua segunda gravação da “Fantasia” de Dowland. Essa é a primeira regravação de uma obra feita por Bream, e plenamente justificada: a “Fantasia”, aqui, deixa de ser “quase sacra”, como em Julian Bream Plays Dowland, ganha brilho e dura pelo menos um minuto e meio a menos do que a anterior. O disco traz igualmente alguns arranjos para dois alaúdes e uma versão para ensemble da “Lachrimae Pavin” de Dowland, que também havia sido gravada no disco de alaúde solo cinco anos antes, apesar de que – aqui – não há como comparar o arranjo para ensemble com a leveza da versão para alaúde solo.60 Também nas duas peças vocais, “O Mistress Mine”, de Morley e “It Fell on a Summer’s Day”, de Campion, não há como não sentir a falta da voz de Peter Pears.

58

Ibid., p. 128.

59

Há imagem do ensemble ensaiando essa peça. Ver “The Julian Bream Consort” in BREAM, Julian. My Life in

Music (DVD), Music on earth, 2003.

60

Há também uma interpretação de “Mounsier’s Almaine”, de William Byrd, cuja versão assinada como sendo de Daniel Bachelar havia sido gravada em alaúde solo no disco The Golden Age of English Music, de 1961.

Julian Bream in Concert (1963)

Com o intervalo de um disco de violão solo, seguem-se os dois discos com Peter Pears dessa fase, o primeiro com alaúde e o segundo com violão. Julian Bream in Concert (1963) foi gravado ao vivo no Wellesley College, Massachussetts, no Town Hall, em New York, e no Wigmore Hall, em Londres, e conta com a produção de Peter Delheim (Estados Unidos) e James Burnett (Inglaterra).61 Na primeira parte Bream toca alaúde solo, trazendo obras de Byrd e Dowland, e na segunda, em duo com Pears, apenas obras de Dowland. Em crítica inserida na contracapa do LP, escreve John Gruen:

Julian Bream in Concert has an entire side devoted to the lutenist in actual

performance, with applause and comments captured as they occurred. […] A vast

variety of tonal color envelops any given piece and renders it transparent and magical. Subtle emotional overtones make themselves felt a every turn, and one lingers over them as over images gliding inevitably and poetically into focus. These subtleties are present whether the artist performs as soloist or as accompanist, as is made clear here where Mr. Bream collaborates with the noted English tenor Peter Pears in a set of Dowland songs. These particular performances were taped during an all-Dowland recital the two artists gave in Wigmore Hall in 1963 to celebrate the quatercentenary anniversary of this composer’s birth. The lutenist’s style is – in short – of such refinement as to encompass playfulness or drama, serenity or distress. He understands and communicates Elizabethan sentiments with all the assurance and sensitivity of one born to the genre.62

Cabe mencionar também a presença de um encarte preparado por Peter Pears, com comentários e com os textos das canções de Dowland.63 Nesse LP Bream grava pela segunda vez “Queen Elizabeth Galliard” (registrada anteriormente no LP Julian Bream Plays Dowland, de 1957) [CD4 faixa 10] e também “Tarleton’s Resurrection” (gravada em estúdio no LP do Julian Bream Consort, An Evening of Elizabethan Music, de 1962), ambas de Dowland: a primeira está

61

BREAM , Julian. Julian Bream in Concert (LP), RCA RB 6646. A parte solo está incluída – com ordem trocada de obras – no vol. 1 da Julian Bream Edition (faixas 16-24), e a parte em duo está incluída no vol. 19 da coleção (faixas 17-22).

62

GRUEN, John. “Who would have thought a lutenist to have so much popularity in him?” in BREAM, Julian. Op.

cit. John Gruen era então crítico associado de música e arte do New York Herald Tribune.

63

Apenas no LP original: textos, palmas e comentários de Bream ao público não fazem parte do relançamento dessas gravações em CD como parte integrante da Julian Bream Edition.

aqui mais rápida e brilhante, enquanto que a segunda parece ter se beneficiado mais da sonoridade redonda da primeira versão.64 Com Pears também são duas as regravações de Dowland: “In Darkness Let me Dwell” (gravada em An Anthology of English Song, de 1955) [CD1 faixas 2 e 3] e “Sorrow Stay” (gravada em A Recital of Lute Songs, de 1958), e ainda aqui as versões anteriores parecem não perder quase nada em emoção para a versão ao vivo, e ainda mostrar um Pears com uma qualidade vocal dificilmente superável.

Music for Voice and Guitar (1963)

Music for Voice and Guitar é o único LP de voz e violão gravado por Pears e Bream.65 Alguns aspectos característicos que começam a surgir nos discos de violão solo dessa segunda fase da discografia acham-se presentes também aqui – em especial a atuação junto a compositores do século XX, que ocupa a totalidade do repertório do LP. Também cumprem funções especiais o local da gravação (a Adam Library da Kenwood House, em Londres) e a utilização de um violão Robert Bouchet de 1960. O álbum traz obras de Benjamin Britten (1913- 1976), William Walton (1902-1983), Mátyás Seiber (1905-1960) e Peter Racine Fricker (1920- 1990). Em texto para a contracapa do LP, Marcia Drennen e Bream apresentam o repertório:

The Britten works are Songs from the Chinese, a cycle of six numbers, the Second Lute Song from his opera Gloriana, which he wrote for the coronation of

Elizabeth II, and five folk songs arranged for voice and guitar. “The six Chinese poems,” says Bream, “are amusing, with satirical texts, and Britten’s guitar score is one of the finest I have seen. We first performed the cycle at the Aldeburgh Festival in 1958. The folk songs were arranged for Pears and me because there is very little good music for voice and guitar. “For other modern works for voice and guitar,” Bream continues, “we turned to Walton, who seems to understand the voice in a particularly sympathetic way. He composed a song cycle for us a few years ago entitled Anon. in Love – settings

of six anonymous Elizabethan love poems. They are quite different from the Britten folk

64

Mencionemos também a regravação de “Pavana Bray”, de William Byrd, que Bream havia registrado anteriormente no LP do Julian Bream Consort, An Evening with Elizabethan Music, de 1962

65

BREAM, Julian. Music for Voice and Guitar (LP), RCA SB 0021, LSC 2718. As gravações estão incluídas no vol. 18 da Julian Bream Edition (faixas 1-23).

songs and slightly risqué in nature.” Heard next are four French folk songs set by Mátyás Seiber, who died in 1960. “These are more traditional,” Bream observes. “They do not exploit the guitar but use it adroitly. Seiber’s songs have charm and color and are classical in treatment.” Fricker’s O Mistress Mine, the text taken from

Shakespeare’s Twelfth Night, concludes the record. “This is a curious song,” Bream

says thoughtfully. “Fricker is a serious, austere composer, yet he has written this poignant melody for Pears, and the words seem to fit right in.”66

Nascido na Hungria, Mátyás Seiber imigrou para a Inglaterra em 1935: músico nascido na tradição bartokiana, esteve também ligado ao jazz e à canção folclórica. Peter Racine Fricker, por outro lado, estudou com Seiber, e foi um prolífico compositor de sinfonias, concertos e música de câmara, tendo recebido o Prêmio Koussevitzky em 1949.

Com este impecável trabalho (produzido por Christopher Raeburn), o duo Pears-Bream trouxe a experiência adquirida no sofisticado cenário da tradição elizabetana para a música de câmara contemporânea, e é uma pena que eles não tenham continuado nessa linha: o último trabalho do duo – que voltaria ao repertório antigo de voz e alaúde – seria realizado em 1967. E apesar de Bream procurar ressaltar a importância desse novo repertório, não podemos deixar de considerar que é o duo – mais do que as peças – que chama a nossa atenção: que outro trabalho de voz e violão com essa complexidade musical e camerística pode ser comparado, na história do violão clássico, a Music for Voice and Guitar?

Voltemos, no entanto, para abordar os três discos de violão solo. São eles, respectivamente, The Art of Julian Bream (1959),67 o primeiro LP dessa fase; Popular Classics for Spanish Guitar (1962),68 o quinto LP dessa fase, lançado entre o álbum do Julian Bream Consort (An Evening of Elizabethan Music) e o Julian Bream in Concert; e J. S. Bach Suítes n. 1 e 2 (1964),69 o nono e último disco dessa fase.

66

DRENNEN, Marcia. “Music for Voice & Guitar” in BREAM, Julian, Op. cit.

67

BREAM, Julian. The Art of Julian Bream (LP), RCA RB 16239. Na Julian Bream Edition as gravações desse LP estão dispersas e desordenadas: acham-se no vol. 9 (faixas 20-24), no vol. 8 (faixas 12-13), no vol. 12 (faixas 1- 4) e no vol. 11 (faixa 8).

68

BREAM, Julian. Popular Classics of Spanish Guitar (LP), RCA RB 6593. Na Julian Bream Edition trata-se de um dos discos mais fragmentados: vol. 8 (faixas 1, 2, 4, 6, 9, 10), vol. 26 (faixas 21-22) e vol. 11 (faixas 7, 9, 10).

69

BREAM, Julian. J.S. Bach Suítes n. 1 e 2 (LP), RCA RB 6684. Na Julian Bream Edition as gravações estão no vol. 20 (faixas 1-10).

The Art of Julian Bream (1959)

The Art of Julian Bream é o LP de violão que se segue ao Bach Recital, e nele há a tentativa de não reagir a Segovia, mas de se justapor ao Maestro, complementando-o. O formato é, pela primeira vez, o de um recital com obras variadas, e a relação com Segovia estabelece-se desde a primeira faixa, que traz um dos mais bem sucedidos arranjos do espanhol, a saber a “Aria Detta La Frescobalda”, de Girolamo Frescobaldi (1583-1643). Seguem-se uma “Sonata” de Mateo Albéniz (c.1755-1831), duas sonatas de Domenico Scarlatti (1685-1757), duas sonatas de Domenico Cimarosa (1749-1801), a “Sonatina” op. 51 de Lennox Berkeley (1903-1989), “En Los Trigales” de Joaquín Rodrigo (1901-1999), a “Pavane pour une infante défunte” de Maurice Ravel (1875-1937) – versão de Bream – e “Segovia” op. 29 de Albert Roussel (1869-1937).

Podemos dizer que o disco abre com Segovia e fecha com “Segovia”, e as gravações feitas pelo antecessor dessas obras ainda estavam no ouvido do público de violão: Frescobaldi havia sido registrado no LP An Evening with Andres Segovia (1953),70 e a peça de Roussel – escrita em homenagem a Segovia em 1925 – há apenas um ano, no segundo volume do Golden Jubilee (1958).71 Aqui, com seu Hauser II de 1957, e na primeira parceria com o produtor Peter Delheim – seu principal colaborador nos Estados Unidos –72 Bream justapõe seu som ao do mestre com grande categoria. Na “Frescobalda” Bream está mais arrojado sonoramente, menos plácido, sem medo de ser segoviano, tirando proveito do vibrato e das notas destacadas em posições altas, mas sem abusar de arpejos com o polegar.

Por que Segovia nunca havia gravado “Segovia” antes de 1958? Certamente a peça não o encantava – esse retrato estranho de si mesmo feito pelo compositor francês após a sua estréia em Paris (1924). Segovia “não se reconhece” na maneira pesada como concebe essa peça, sem muito cuidado com as transições entre as partes, fazendo a seção central soar quase ininteligível [CD1 faixa 7]. Bream mostra toda a ironia do retrato de Roussel de um Segovia ágil, quase apressado, com a obsessão de buscar sons e digitações nas repetições – sempre diferentes – de uma mesma nota da melodia; e esse tonalismo estranho, com um jeito

70

SEGOVIA, Andres. An Evening with Andres Segovia (LP), Brunswick AXTL 1070, 1953. Na gravação de Segovia, à ária segue-se a “Corrente”.

71

SEGOVIA, Andres. Golden Jubilee (LP), Brunswick AXTL 1089, 1958.

72

francês de ser espanhol, e que termina com uma “ridícula cadência perfeita” na região super- aguda, parece exigir o distanciamento e bom humor breamianos [CD1 faixa 9]. Uma peça muito sutil, de um grande compositor, que Segovia gravou quase por decurso de prazo, com atraso de mais de trinta anos – talvez apenas para incluir um compositor francês em seu jubileu. E não é à toa que, depois de “Segovia”, para Segovia, vem Segovia: no disco do jubileu, à peça de Roussel segue-se o seu próprio “Estudio sin Luz” [CD1 faixa 8]; já, para Bream, “Segovia” encerra o disco, e nada pode vir depois do retrato caricato do antecessor, interpretado com extrema e definitiva categoria.

Com Scarlatti dá-se algo análogo: Bream justapõe e complementa a “Sonata” em mi menor K. 87 (L. 352), arranjo de Segovia, com a sua própria escolha e versão – também em mi menor –, a saber, a K.11 (L33): mais do que isso, traz duas versões inéditas de Cimarosa e uma versão feita por Pujol (também não gravada por Segovia) para a famosa sonata de Mateo Albéniz.73

A relação de Segovia com Rodrigo também não está isenta de contradições, e ele nunca gravou “En los trigales”.74 Mas a peça que empurra o LP para a frente na história da música é a “Sonatina” de Lennox Berkeley, dedicada a Bream e até pouco tempo considerada a primeira peça escrita por um compositor inglês não violonista para violão solo.75 Bream estréia na renovação do repertório com peso, justapondo ao cânone segoviano não somente as suas