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A ciência dos talismãs: primeiros esforços de legitimação

PARTE I. AS DEFESAS E AS CONDENAÇÕES DA MAGIA NA LONGA-DURAÇÃO

CAPÍTULO 1. ENTRE A FILOSOFIA, A CIÊNCIA E A TEOLOGIA: OS ESTUDIOSOS E

1.3. A ciência dos talismãs: primeiros esforços de legitimação

Diversas vozes se esforçaram para responder a estes e outros questionamentos. O já mencionado Adelardo de Bath traduziu algumas obras importantes nesse sentido: dentre elas, o Centiloquium (As cem afirmações, traduzido no começo do século XII), comumente 

58 Ibid. No original: “ex vicino limo terrae, corpus mulieris esse creatum verisimile est”.

59 Ibid. No original: “deum fecisse mulierem ex latere Adae. Non enim ad litteram credendum est, Deum excostasse primum hominem”.

atribuído a Ptolomeu (séculos I-II), mas ocasionalmente também ao mítico Hermes. O texto consiste em uma centena de teses ou aforismos de cunho astrológico. Em diversos momentos da obra, se insistiu a respeito da influência dos astros e sobre como tudo o que aconteceria abaixo dos céus seria resultado, de alguma forma, das ações das estrelas.61 Para além da

versão de Adelardo, dada a importância e o alcance do Centiloquium, o texto foi traduzido do árabe para o latim pelo menos quatro vezes ao longo do século XII.62

Mas é a partir da sua tradução do De imaginibus (Sobre as imagens ou Sobre os

talismãs), do árabe Thabit ibn Qurra (c. 836-901), que Adelardo, no começo do século XII,

contribuiu de forma mais significativa à literatura mágica. Este texto, algumas vezes também atribuído a Hermes, consiste em um manual de magia baseado nos princípios de uma astrologia judiciária (dos judicia)63, em outras palavras, uma astrologia capaz de fazer

“julgamentos” ou escolhas de momentos apropriados para a realização de determinados rituais. Aqui seria possível, a partir de certos cálculos, identificar ocasiões precisas em que os planetas estariam alinhados de uma forma favorável para, a partir disso, conseguir canalizar energias específicas para certos objetos, “imagens” ou, dito de outra maneira, talismãs. Alguns exemplos do que era possível fazer: para afastar escorpiões venenosos, seria preciso criar uma imagem na forma de um escorpião; para inclinar a vontade ou os desejos de um homem, uma figura deveria ser moldada imitando o desenho de um corpo humano, seja pela cera, pela argila ou por outro material; para fazer duas pessoas se amarem, duas imagens que se abraçam; e assim por diante.64 Todos os procedimentos, naturalmente, deveriam ser feitos

sob as constelações apropriadas, que eram escolhidas previamente a partir da observação e por meio de cálculos complexos para que surtissem efeito — habilidades que, como visto, Agostinho e Isidoro de Sevilha tinham criticado.

Atualmente são conhecidas duas traduções para o latim da obra de Thabit. Uma segunda versão, do segundo quarto do século XII, foi feita por João de Sevilha. Pouca coisa se sabe sobre o tradutor, para além do fato de ter sido um judeu convertido ao cristianismo e que traduziu textos tanto do árabe quanto do hebraico para o latim entre os anos 1130 e 1140.65 Há mais certeza, no entanto, a respeito de uma diferença fundamental desses tratados:

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61 Era comum que os planetas, bem como o sol ou a lua fossem entendidos como “estrelas”, de modo que muitos autores faziam a distinção entre estrelas “fixas” e “móveis” entre esses diferentes corpos.

62 KIECKHEFER, R. Magic... op. cit. p. 118.

63 WEILL-PAROT, N. Causalité Astrale et “Science des Images” au Moyen Age: Eléments de Réflexion. Revue d'Histoire des Sciences. t. 52, n. 2, 1999. p. 224.

64 WEILL-PAROT, N. “Astral Magic and Intellectual Changes (Twelfth-Fifteenth Centuries): ‘Astrological Images’ and the Concept of ‘Addressative Magic”’. In: BREMMER, J.; VEENSTRA, J. (Ed.). The Metamorphosis of Magic: from Late Antiquity to the Early Modern Period. Leuven et al: Peeters, 2002. p. 168. 65 BOUDET, J.-P. Entre Science… op. cit. p. 164.

se, por um lado, Adelardo colocou na sua versão do manual orações e invocações aos espíritos dos planetas como parte da ritualística necessária para “captar” os influxos das estrelas nos talismãs, por outro, no texto de João, esses elementos estão completamente ausentes. Sophie Page interpretou o silêncio dessa segunda versão como uma tentativa do tradutor ou do autor de se encaixar na ortodoxia cristã66, muito provavelmente para evitar

acusações ou associações com a idolatria ou de culto aos planetas ou aos demônios, nos termos de Agostinho e Isidoro. Infelizmente, o texto original em árabe não chegou até nós para fazermos outras comparações.67

João de Sevilha disse que Thabit recorreu à autoridade de Aristóteles, de modo que o próprio Filósofo teria reconhecido que, apesar de ter lido “a filosofia, geometria e toda ciência”68, esteve alheio ou descompromissado no que diz respeito à astronomia. Aristóteles

aqui teria assumido que “a ciência dos talismãs é mais digna do que a geometria e mais alta do que a filosofia”69. Ainda que essa auctoritas remeta de forma imediata certamente a um

Pseudo-Aristóteles, essa é, provavelmente, uma das primeiras tentativas de reivindicar, para o que posteriormente será chamado de “magia”, no contexto do Ocidente latino, um lugar de protagonismo na hierarquia do saber.70 E isso não foi feito sem a consciência de que se tratava

de uma arte que poderia ser usada para os mais diversos fins, inclusive para alguns moralmente questionáveis. No prefácio da sua tradução, João assumiu que os sábios (sapientes), “considerando a natureza e as significações dos planetas mais sutilmente”, foram capazes de perceber que essas influências poderiam ser utilizadas “tanto para o bem quanto para o mal”71, sendo capaz de “ajudar ou também prejudicar”.72 Como será visto mais adiante,

essa dubiedade foi, reconhecidamente, uma caraterística enfatizada por diversos autores que 

66 PAGE, S. “The Medieval Magic”. In: DAVIES, O. (Ed.). The Oxford Illustrated History of Witchcraft and Magic. Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 41.

67 Mais sobre a recepção dessas diferentes traduções do De imaginibus, no item 1.3 deste capítulo.

68 De imaginibus made by John of Seville. In: The Astronomical Works of Thabit b. Qurra. Ed. F. J. Carmody. Berkeley: University of California Press, 1960 (p. 180) apud BURNETT, C. “Talismans: magic as science? Necromancy among the Seven Liberal Arts”. In: Idem. Magic and Divination in the Middle Ages. Texts and techniques in the Islamic and Christian World. Hampshire: Variorum, 1996, pp. 7-8. No original: “[Dixit Thebit Bencorah: Dixit Aristoteles:] Qui philosophiam et geometriam omnemque scientiam legerit [et ab astronomia vacuus fuerit]”.

69 Ibid. No original: “dignior geometria et altior philosophia est imaginum scientia”.

70 Mais sobre a literatura pseudo-aristotélica no que toca à magia: THORNDIKE, L. The Latin Pseudo-Aristotle and Medieval Occult Science. The Journal of English and Germanic Philology. v. 21, n. 2. 1992. pp. 229-258; ver também: SCHMITT, C. B.; KNOX, D. Pseudo-Aristoteles latinus: A Guide to Latin Works Falsely Attributed to Aristotle before 1500. London: Warburg Institute; University of London, 1985.

71 The Preface to Thabit ibn Qurra, De imaginibus (Paris, Bibliothèque Nationale, lat. 7282, fol. 29r) apud BURNETT, C. “Magister Iohannes Hispalensis et Limiensis” and Qusta ibn Luqa’s De differentia spiritus et animae: a Portuguese Contribution to the Arts Curriculum? Mediaevalia, n. 7-8, 1995. pp. 253 [33]. No original: “Eorum subtilius considerantes naturam planetarum atque significationem nunc in bono, nunc in malo esse videntes”.

se propuseram a escrever sobre o que chamaram de magia ou de ciência das “imagens” ou dos talismãs. Acreditamos que foi justamente o reconhecimento dessa zona moralmente cinzenta que lhes permitiu reagir a essas ambiguidades a fim de estabelecer limites, barreiras e fronteiras e, consequentemente, espaços de legitimidades e de autorização dessas práticas.

O De imaginibus não era desconhecido para o autor de outro importante manual dessa ciência das imagens do período medieval, o Picatrix. Também conhecido sob o título original

Ghayat al-hakim fi’l sihr (O objetivo do sábio a respeito da magia), o texto é datado do

século X ou XI, mas foi traduzido por volta de 1256, tanto para o castelhano quanto para o latim, sob o patrocínio de Afonso X, “o Sábio”.73,74 Sebastià Giralt classificou o De imaginibus e o Picatrix como os exemplos mais notáveis dessa literatura da ciência das

imagens ou dos talismãs.75 Foi à autoridade de Thabit que o autor do Picatrix recorreu ao

dizer que “a parte mais nobre da astronomia corresponde à ciência dos talismãs”76. Trata-se de

mais uma reivindicação ambiciosa, que não perde força quando comparada à sua definição do que poderíamos traduzir como magia, mas que é entendida aqui nos termos de uma

nigromantia: é a arte que se ocupa “de todas as coisas escondidas dos sentidos e que a maior

parte dos homens não compreende como são feitas e nem de quais causas provém”77. Em

outras palavras, aqui a nigromantia trata da busca pelo entendimento dessas engrenagens de causas e efeitos da natureza, do cosmos, e que quase nunca são explícitas. O rompimento com a tradição conceitual proposta por Isidoro de Sevilha fica evidente: se para o autor do Picatrix os nigromantici eram os que investigavam o funcionamento secreto da natureza, para Isidoro os necromânticos (sic) seriam aqueles que “por encantamentos pretendem ressuscitar os mortos e, pela adivinhação, fazê-los responderem às perguntas”, uma vez que “νεκρός, em

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73 Afonso X de Leão e Castela, junto à famosa escola de tradutores de Toledo, que reuniu estudiosos judeus, cristãos e muçulmanos, patrocinou a reprodução e tradução, para o latim e para o castelhano, de diversas obras. Se sabe que foram pelo menos 5 obras de magia, sendo elas: o Lapidario, o Picatrix, o Libro de las formas et las ymagines, o Libro de astromagia e o Liber Razielis. No prólogo deste último em particular, Afonso é retratado como um paralelo do sábio Salomão bíblico. Ver: PAGE, S. “The Medieval...”. op. cit. p. 33; ver também PAGE, S. Magic and the Pursuit of Wisdom: The “familiar” spirit in the Liber Theysolius. La Crónica. v. 36, n. 1, 2007. pp. 42-44.

74 Mais sobre o Picatrix, ver: SILVEIRA, A. D. Saber em movimento na obra andaluza Gāyat al-hakīm, o Picatrix: problematização e propostas. Diálogos Mediterrânicos. v. 9, 2015. pp. 169-188.

75 GIRALT, S. Magia y ciencia en la Baja Edad Media: la construcción de los límites entre la magia natural y la nigromancia (c. 1230- c. 1310). Clio & Crimen. n. 8, 2011. p. 46.

76 Picatrix. The Latin Version of the Ghāyat al-Ḥakīm. Ed. David Pingree. London: The Warburg Institute; University of London, 1986. p. 23. No original: “Thebit ben Corat in libro quem composuit De ymaginibus, qui sic ait: sciencia ymaginum est nobilior pars astronomie”.

77 Ibid. p. 5. No original: “[Nigromanciam dicimus pro] omnibus rebus absconditis a sensu et quas maior pars hominum non apprehendit quomodo fiant nec quibus de causis veniant”.

grego, significa ‘morto’, e μαντεια é a chamada ‘adivinhação’”78. O termo necromantia,

analisado etimologicamente de forma correta por Isidoro, se desenvolveu para uma corruptela ao longo da Idade Média, nigromantia, comumente usada para traduzir o termo sihr, do árabe, também possível de traduzir como “magia”.79 Esse deslocamento conceitual foi importante e

pode ser entendido como outro passo em direção a uma defesa de uma “magia”, mesmo que essa arte, pelo menos ainda, não seja chamada assim.

Dentre as diversas técnicas mágicas que o Picatrix ensinou para canalizar a energia ou a força (vis) invisível dos céus, está o recurso às orações, às sufumigações (uso da fumaça do incenso ou da queima de certas ervas) e também às inscrições nos talismãs que poderiam ser enterrados, queimados e assim por diante. Muitos desses métodos, em particular o das

orationes e o das suffumigationes, são alguns dos que aparecem na primeira versão e são

ignorados na segunda do De imaginibus. No Picatrix há uma miríade de espíritos (nomeadamente anjos e demônios) que governariam diferentes partes do universo e que poderiam ser chamados para os mais variados fins. A capacidade de chamar por essas inteligências ou de controlar esses poderes poderia levar a diversos mirabilia: desde ganhar a afeição ou favores dos poderosos, provocar o amor e até controlar o clima. Essas ambições em nada alteraram o entendimento de que eram exercícios de scientia: Jean-Patrice Boudet e Nicolas Weill-Parot notaram que, no Picatrix, esse termo aparece pelo menos 172 vezes. Muito mais do que nigromantia e nigromantica (40 vezes) e magicus e magica80 (36 vezes)81.

Quando o autor do Picatrix advertiu o leitor a respeito das qualidades necessárias para praticar os experimenta, foi enfático ao dizer que o aspirante deveria dominar tanto a

mathematica quanto a geomatriam para calcular os movimentos dos corpos celestiais.

Também deveria ser levada em conta tanto a teoria da música quanto as sciencias naturales e a metaphisicam para compreender como seriam infundidas, na Terra, as virtudes celestiais. O primeiro capítulo do livro II encerrou com as seguintes palavras: “ninguém pode alcançar esta ciência, a não ser que seja um filósofo perfeito”82.

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78 Etymologiarum... op. cit. p. 310 (L. VIII, c. IX). No original: “Necromantii sunt, quorum praecantationibus videntur resuscitati mortui divinare, et ad interrogata respondere. νεκρός enim Graece mortuus, μαντεια divinatio nuncupatur”.

79 BURNETT, C. “Talismans...”. op. cit. p. 3; O termo seguiu se transformando, e no século XVI, Paracelso compreendeu a nigromantia como a arte de controlar as influências dos corpos celestiais. Ver: GANTENBEIN, U. L. “Paracelsus”. In: HANEGRAAFF, W. (Ed.). Dictionary of Gnosis & Western Esotericism. Leiden; Boston: Brill, 2006. p. 929.

80 Mais sobre o conceito de magia (tanto sobre o conceito histórico quanto a respeito do uso desta palavra por parte dos historiadores), ver a Introdução desta tese.

81 BOUDET, J.-P.; WEILL-PAROT, N. Être historien... op. cit. p. 207.

82 Picatrix... op. cit. p. 33. No original: “Istam scienciam nemo pervenire poterit complete nisi philosophus perfectus”.

Essas ambições e exigências parecem ir na de encontro ao que sugeriu Kieckhefer quando este garantiu que manuais de magia astral como o Picatrix seriam carentes de uma “profundidade intelectual” e que “tendem a ser conceitualmente simplistas”.83 A respeito

dessa afirmação, é preciso notar, em primeiro lugar, que esses textos não tiveram a pretensão de serem tratados de teoria. Um espaço razoável desses textos foi voltado para a orientação de rituais, de práticas e de experimentos (experimenta) que envolviam a manipulação de imagens ou talismãs a partir de observâncias muito precisas, e é a partir desses interesses práticos, operativos, que eles precisam ser analisados. Em segundo lugar, no que diz respeito ao que seria possível chamar de uma fundamentação teórica dessas ciências, ela não parece ser, com muita frequência, mais do que subjacente à maioria dos manuais. Nesse sentido, ela pode ser identificada por pelo menos duas formas: por um lado, e de forma implícita, através desses mesmos textos, e por outro, de forma externa a esses manuais práticos, em obras teóricas e dedicadas especificamente ao tratamento “filosófico” dessa arte.

Textos como o De imaginibus ou o Picatrix não seriam possíveis sem uma sólida tradição intelectual que os precedesse, a saber, a do naturalismo greco-árabe. Essa tradição aparece nos textos de forma indireta a partir das referências de autoridade — reais ou apócrifas — que se destacam tanto para legitimar e validar as práticas que ali são ensinadas quanto para atestar sua suposta antiguidade. Nomes como Hermes, Aristóteles, Ptolomeu, Thabit ibn Qurra, bem como seus comentadores e tradutores, surgem constantemente nesses manuais, em particular em seus prólogos, lugar em que frequentemente seria atestada uma possível história dos textos.84 Além disso, Benedek Láng afirmou que a inclinação dos leitores

a essa magia de imagem era “inseparável”85 dos seus interesses pela filosofia natural e pela

astrologia. Dito de outra forma, parece difícil pensar que os leitores desses manuais não estivessem habituados a leituras mais “teóricas” de caráter inquestionavelmente legítimo e que tornaram seus rituais ou suas operações possíveis. Na direção contrária de Kieckhefer, Jean-Patrice Boudet situou o autor do De imaginibus precisamente, junto a Aristóteles, Apuleio e Ptolomeu, como exemplar de uma cultura filosófica e de uma técnica sofisticada de

scientia da natureza e da física, que acabou por influenciar, na longa-tradição, nomes como

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83 KIECKHEFER, R. The holy and unholy: sainthood, witchcraft and magic in late medieval Europe. Journal of Medieval and Renaissance Studies, v. 24, n. 3, 1994. p. 375. No original: “[I do not wish to suggest…] Intellectual profundity (...) tend to be conceptually simplistic”.

84 Ver, por exemplo: SILVEIRA, A. D. Temporalidade, Historicidade e Presença em uma Análise do Prólogo do Picatrix (séc. XIII). História da Historiografia. n. 22, dez. 2016. pp. 185-201.

85 LANG, B. Unlocked Books: Manuscripts of Learned Magic in the Medieval Libraries of Central Europe. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2008. p. 36. No original: “inseparable [from natural philosophy and astrology]”.

Agrippa, Giordano Bruno, Galileu e Copérnico. Estes seriam herdeiros diretos de uma influência que nasceu e se desenvolveu precisamente na Idade Média.86

Por outro lado, e agora de forma explícita, essa fundamentação também ocorreu. Provavelmente o tratado mais famoso87 nesse sentido foi o De radiis stellarum (Sobre os raios das estrelas), amplamente acessível no Ocidente latino a partir dos séculos XII e XIII e

atribuído a Al-Kindi (c. 800-c. 870), estudioso de Bagdá.88 Também conhecido como Theorica artium magicarum (A teoria das artes mágicas), esse texto, menos focado em

questões operacionais ou práticas, e mais preocupado com a filosofia, defendeu que a magia (agora sim nesses termos, quando traduzido para o latim) funcionaria seguindo o princípio de “raios” que, emitidos pelas estrelas fixas e móveis, de uma ou de outra forma regulariam os eventos na Terra. Dentro de uma perspectiva naturalista, de um cosmos em que todos os corpos móveis ou imóveis estariam conectados, de forma causal e invisível, esses raios seriam passíveis de manipulação ou de controle pelo mago. Ele não precisaria recorrer a “inteligências” ou a espíritos específicos, como nas operações do Picatrix ou da primeira versão do De imaginibus, mas apenas às próprias forças da natureza. Isso tornaria dispensáveis orações, invocações ou os sacrifícios, deixando textos como a tradução de João de Sevilha do De imaginibus mais adaptados a um gosto cristão, também sob uma sustentação teórica e científica.

Em resumo, a chegada dos textos gregos e árabes na Europa marcou a intelectualidade latina, nutrindo as escolas e as universidades emergentes com novos debates, de uma forma que foi tanto favorável quanto contrária às práticas mágicas. Por um lado, esses textos contribuíram para uma legitimação filosófica ou até científica da magia na cultura latina, ocasionalmente validando e explicando, dentro de uma lógica naturalista, o sentido do manuseio de imagens ou talismãs. Por outro lado, houve uma ampla resistência a respeito de alguns recursos “técnicos” dessa arte, a saber, as orações, sufumigações ou invocações aos espíritos. Diferentes autores reagiram de diferentes formas a esses recursos. No entanto, é curioso notar que, paradoxalmente, os ataques a essas práticas não estiveram, necessariamente, divorciados de um desejo de legitimação e de autorização de uma parte da magia ou de uma parte dessa ciência das imagens.

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86 BOUDET, J.-P. Entre Science... op. cit. p. 531.

87 Boudet entende que este foi o mais importante tratado de magia teórica na história do Ocidente medieval. Idem. op. cit. p. 130.