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Condenar para elogiar: encontrando espaços de licitude para a “magia”

PARTE I. AS DEFESAS E AS CONDENAÇÕES DA MAGIA NA LONGA-DURAÇÃO

CAPÍTULO 1. ENTRE A FILOSOFIA, A CIÊNCIA E A TEOLOGIA: OS ESTUDIOSOS E

1.4. Condenar para elogiar: encontrando espaços de licitude para a “magia”

O britânico Miguel Escoto (c. 1175-1235/6), assim como Adelardo de Bath, foi outro dos “aventureiros do saber”89 que passou uma parte da vida em regiões fronteiriças da Europa

estudando e traduzindo textos do árabe, do hebraico e do grego para o latim. Escoto foi responsável pela tradução de diversas obras de Aristóteles e seus comentadores, incluindo o talvez mais famoso deles, Averróis (1126-1198). Dedicou-se fundamentalmente à filosofia natural e foi, em razão disso, um importante expoente da astrologia.90 Enquanto esteve na

Espanha, foi cônego da Catedral de Toledo, na época do boom das traduções na cidade.91

Sabe-se que depois disso trabalhou na corte pontifícia em Bolonha, onde ficou conhecido, nas palavras do papa Honório III como um homem “de inteligência singular dentre outros estudiosos”92. Entre 1227 e 1236, trabalhou na corte imperial de Frederico II, onde seguiu

traduzindo e também escreveu alguns tratados originais. Dentre eles, o Liber introductorius (Livro introdutório), uma espécie de enciclopédia focada nas questões relacionadas à magia e à adivinhação e dedicada ao próprio imperador.

Nesta obra, Escoto foi enfático ao condenar a magica como “uma arte que destrói a ligação da lei divina e que induz ao culto dos demônios”93, e nesse sentido, não foi na direção

contrária das condenações tradicionais. Da mesma maneira, associou a arte da matematica à

nigromancia, explicando que nesses casos podem haver sacrifícios de sangue, de homens ou

animais, bem como muitos contatos ou negócios (communicationum) e “sufumigações, que são coisas contrárias aos santos sacrifícios ao Deus Vivo”94. Em outras palavras, Escoto

classificou como “magia” como tudo aquilo que poderia ser tido como um desvio ou uma deturpação dos ritos divinos. No entanto, mais adiante, no Prohemium da mesma obra, depois que tratou dos muitos tipos de magia e fez uma análise etimológica dos diferentes nomes que recebem essas artes dos magos à maneira de Isidoro, Escoto rompeu frontalmente com o bispo de Sevilha. Este autor explicou que dos três tipos de magos que existiriam — a saber, o “ilusionista” (illusor), o maléfico (maleficus) e o sábio (sapiens) —, este último seria um tipo legítimo e digno, diferente dos outros dois, condenáveis. O primeiro tipo seria o “prestigioso, 

89 BOUDET, J.-P. Entre Science... op. cit. p. 164. No original: “Des aventuriers du savoir”.

90 The Liber Introductorius of Michael Scot. Ed. Glenn Michael Edwards (Dissertation for the Degree of Doctor of Philosophy). University of Southern California. 1978. p. iii.

91 DAVIES, O. Grimoires: A History of Magic Books. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 37 92 Liber Introductorius... op. cit. p. iv. No original: “Singularis scientia inter alios litteratos”.

93 Ibid. p. 208. No original: “[Magica] quidem ars destruit religionem divine legis et culturam demonum persuadet”.

94 Ibid. p. 210. No original: “[Multarum communicationum et] suffumigationum ad contrarium sancti sacificii Dei Vivi”.

que por ilusões fantásticas faz as coisas se transformarem e ilude os sentidos dos homens pela arte diabólica”95; já o maleficus, o que “interpreta os caracteres, filactérios, encantamentos e

sonhos e faz ligaduras com as ervas”96. Diferente destes dois, o sábio seria aquele instruído

“nas artes secretas da natureza, bem como a respeito dos julgamentos e das coisas futuras, e que faz coisas secretas, tanto boas quanto más”97. Novamente vemos aqui a questão da

ambiguidade moral. Depois de delimitar e restringir um tipo de magia moralmente aceito (ad

bonum), Escoto vai ainda mais longe ao garantir que esse terceiro tipo ainda seria permitido,

mesmo depois de Cristo. Defende, a respeito dos judicia, que “a utilidade dessa arte é grande”98 e possível àqueles que cumprissem os requisitos do bonum astrologum: ser sábio,

reputado e com boa experiência. Autores como Edward Peters e Jean-Patrice Boudet destacaram o que chamaram, respectivamente, de uma “ambivalência”99 ou de uma

“contradição flagrante”100 entre a condenação e o elogio da magia na obra de Escoto. No

entanto, como será visto a seguir, a partir de outros autores que se utilizaram de estratégias muito parecidas, não tratou-se fundamentalmente de uma contradição, e menos ainda de uma exceção, mas de uma estratégia de legitimação ou de defesa de um tipo de magia (e não da magia per se) que se constituiu como oposição ao que ela não seria ou que não deveria ser. Vamos a outros exemplos.

Contemporâneo de Escoto, o francês Guilherme de Auvergne (c. 1180-1249), eleito bispo de Paris pelo próprio papa Gregório IX, quando esteve em Roma, em 1228, foi um dos principais nomes dessa escolástica emergente e cujo centro intelectual por muito tempo foi a cidade de Paris, reputada como uma “nova Atenas”101 da época. Guilherme, em defesa da

ortodoxia e como um observador dessas novas tradições em voga, diferente de Escoto, foi um crítico dos excessos da astrologia que negou a legitimidade dos judicia e da observação dos astros. Na sua obra De legibus (Sobre as leis, c. 1228-1230), recorreu a Agostinho para falar 

95 Ibid. pp. 216-217. No original: “Prestigiosus est ille qui per fantasticas illusiones circa rerum mutationem sensibus humanis arte diabolica”.

96 Ibid. No original: “[Maleficus est ille qui] interpretatur karacteras et phyllaterias, incantationes, sompnia, et ligaturas herbarum facit”.

97 Ibid. No original: “[sapiens] in artibus secretis nature et in iudiciis futurorum et in factoribus rerum secretarum tam ad bonum quam ad malum”.

98 Ibid. p. 221. No original: “Utilitas eiusdem artis est grandis”.

99 PETERS, E. The Magician, the Witch and the Law. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1978. p. 86. No original: “Ambivalence [toward this subjects...]”.

100 BOUDET, J.-P. Entre Science… op. cit. p. 182. No original: “Contradiction flagrante [entre une condamnation… et une fascination]”.

101 LEMAY, R. Le Centiloquium du Pseudo-Ptolémée chez quelques grands scolastiques du treizième siècle: Robert Grosseteste, Albert le Grand, Guillaume d'Auvergne. Scientiarum historia. n. 90, v. 2, 2003. p. 141. No original: “[considéré comme la] nouvelle Athènes”; Sobre a importância de Paris, ver também: ALMEIDA, A. P. J; ZANIN, A. G. C.; OLIVEIRA, T. Escolas de Paris e o Renascimento do século XII no Ocidente. Anais do VIII Congresso Internacional de História e XXII Semana de História. Universidade Estadual de Maringá. 2017. pp. 452-458. Disponível em: http://www.cih.uem.br/anais/2017/trabalhos/3667.pdf. Acesso em 24 dez. 2019.

do que entendeu como uma “idolatria das estrelas” (idolatrae stellarum), também associando o desejo de saber das coisas futuras à curiositas, ou seja, ao “desejo de conhecer as coisas que não são necessárias”102. Disse que os praticantes dessa arte ou ciência execrável “negociam

suas almas a fim de fazer um comércio com os demônios”103, repetindo o entendimento de

Agostinho. Essa condenação, por extensão, chegou à ciência dos talismãs: entendeu que haveria também uma “idolatria dos caracteres, das figuras, das marcas e das impressões”104,

negando que a feitura de imagens “esculpidas, escritas ou impressas” (sive sculptas sive

scriptas, sive impressas)105 tivesse qualquer utilidade ao tentar certas forças cósmicas. Não

importaria a intenção do operador, uma vez que muitos “acreditam operar maravilhas por meio de uma virtude divina, o que é claramente impossível, de modo que essa virtude pertence apenas ao Criador onipotente”106.

Mas essas opiniões não seriam suficientes, por si só, para situar Guilherme no campo dos opositores da magia no século XIII. Ao contrário, o bispo de Paris contribuiu significativamente na tradição escolástica da defesa da magia — ou, dito de outra forma, de um tipo de magia — ao aprofundar a discussão a partir do conceito de “magia natural” (magia

naturalis), termo que foi o primeiro a usar. Ainda no De legibus, explicou que “a magia

natural, que de forma muito imprópria os filósofos chamam de filosofia ou de necromancia, é totalmente legítima, sendo parte da [ciência] natural”107. Tentando dissociar sua magia natural

da ambiguidade do termo “necromancia”, Guilherme entendeu por magia natural as relações de força (vis, virtutem) quase sempre invisíveis (occulta) que operariam entre os corpos materiais de forma absolutamente natural (ou seja, não envolveriam a interferência de espíritos, não importa se bons ou maus) e que não seriam passíveis de manipulação (ars), como os manuais árabes dariam a entender a partir do artifício das imagines. Guilherme esclareceu que “a natureza opera somente pela vontade onipotentíssima do Criador, de acordo com o que é costumeiramente notado pelos homens, mas também excepcionalmente, não

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102 Guilielmi Alverni Episcopi Parisiensis. De Legibus. In: Idem. Opera Omnia. t. 1. Parisiis: Andream Pralard. 1674. p. 70aF. C. XXIV. No original: “[Curiositate quae] est libido sciendi non necessaria”.

103 Ibid. No original: “[scientiam execrabili] animarum suarum commercio a daemonibus mercarentur”. 104 Ibid. p. 88bG. C. XXVII. No original: “Idolatriam characterum, et figurarum, stigmatum e impressionum”. 105 Por “impressões” (impressionum, impressas) entende-se, para além da inscrição em superfícies leves como o pergaminho ou o papel, também o manuseio de superfícies duras, como o processo de moldagem de imagens a partir do metal ou da cera ou o recurso de marcações ou gravações nesses objetos.

106 De Legibus... op. cit. p. 88bG. C. XXVII. No original: “crederent virtutem habere divinam ad operanda mirifica, quae manifestum est impossibilia esse, praeterquam soli omnipotentis creatori virtuti”.

107 Ibid. p. 69bD. C. XXIV. No original: “magia naturalis, quam necromantiam, seu philosophicam philosophi vocant, licet multum improprie, et est totius licentiae naturalis pars”.

apenas em novas formas, mas também em novas coisas”108. Dito de outra forma, nem sempre

os homens conseguiriam entender certos acontecimentos que, ainda excepcionais, continuavam sendo naturais. Ele ainda afirma que os ignorantes (homines ignari) a respeito da magia natural “acreditaram que os demônios operaram essas maravilhas”, sendo que, na verdade, “foram realizadas pela natureza através das virtudes colocadas nela pelo próprio Criador”109. Aqui Guilherme rebateu explicitamente as críticas dos que, à maneira de

Agostinho ou seguindo a tradição isidoriana, tendiam a ver toda magia, sem exceção, como demoníaca. Em resposta ao que entendeu por uma confusão feita pelos estudiosos, Guilherme estabeleceu um nicho de legitimidade, novamente sob o estatuto da ciência e a partir de uma abordagem naturalista e não necessariamente espiritual do cosmos.

Na obra De universo (Sobre o universo, c. 1231-1236), o bispo de Paris seguiu na defesa dessa magia natural e deu alguns exemplos de como ela funcionaria. Das muitas “virtudes ocultas e maravilhas”110 da natureza que nem sempre seriam conhecidas, reconheceu

que, dentre os minerais, “a pedra jaspe afasta as serpentes”111, e, como exemplo das

capacidades de algumas plantas, “o odor da cânfora reprime a luxúria nos homens”112.

Guilherme disse que retirou esses relatos, dentre vários outros, dos livros de experimenta, textos que “devem ser estudados para se conhecer todo o possível sobre as causas e as razões de certas operações mágicas, sobretudo as que vem da arte da magia natural”113. O autor

afirmou que os homens que dominam esses conhecimentos são chamados de magos (magi) porque fazem grandes coisas (magna agentes), mas que “foram mal interpretados como

magos como se fossem maus ou fizessem coisas más (male agentes)”114. Como é de se

esperar, Guilherme também reconheceu essa zona moralmente cinzenta da magia e não advogou por uma natureza unívoca dessa arte: “os que, no entanto, operam de modo a servir aos demônios, com efeito são maus e fazem coisas más, assim devem ser chamados”115, ou

seja, de magos e não de magi, segundo os termos latinos. Novamente a fronteira que não deve 

108 Ibid. p. 70aE. C. XXIV. No original: “sola omnipotentissima voluntate ipsius natura operatur, et iuxta consuetudinem notam hominibus, et praeter consuetudinem non solum novis modis, sed etiam res novas”. 109 Ibid. p. 69bD. C. XXIV. No original: “[homines ignari] scientiae istius, quae natura operabatur virtutibus sibi a creatore inditis, credebant daemones operari”.

110 Guilielmi Alverni Episcopi Parisiensis. De Universo. In: Idem. Opera Omnia. t. 1. Parisiis: Andream Pralard. 1674. C. XXII, p. 1060aE. No original: “Virtutes occultae multae, et mirabiles”.

111 Ibid. p. 1060aH. No original: “Lapidem jaspidem fugare serpentes”.

112 Ibid. p. 1060bF. No original: “In camphora namque, quae odore suo reprimit luxuriam in viris”.

113 Ibid. No original: “[Ex his igitur, et similibus, que in libris experimentorum et in libris naturalium narrationum plurima leguntur] utcunque cognoscere poteris causas et rationes quorumdam operum magicarum, maxime que sunt ex arte magico naturali”.

114 Ibid. C. XX[I], p. 1058bH. No original: “[magi huiusmodi homines vocati sunt, quasi magna agentes, licet] quidam male interpretati fuerint magos, quasi malos seu male agentes”.

115 Ibid. No original: “Qui autem ministerio daemonum talia operantur, revera et mali et mala agentes, et habendi et dicendi sunt”.

ser cruzada é a da adivinhação, da curiositas, dos ritos que envolvem orações, sacrifícios e assim por diante. Quando isso tudo está ausente, as investigações das coisas ocultas certamente “não são uma ofensa nem injúria ao Criador”116.

Sebastià Giralt entendeu que Guilherme e outros intelectuais, nesse esforço, quiseram “salvar da infâmia”117 a palavra “magia”, o que parece ser correto, mas é preciso destacar que

nesse contexto isso está relacionado a apenas a um tipo (genus) de magia, ou a um uso muito delimitado dela. Não se trata de uma defesa dessa ars como um todo, uma vez que ela é aberta e vacilante a muitos fins para ser objeto de defesa de escolásticos muito respeitados e que se viam como representantes da ortodoxia da Igreja — até mesmo porque a defesa dessa arte que faz talismãs ou que julga ser capaz de manipular as forças cósmicas, também foi, ocasionalmente, indissociável de uma crítica e de um ataque preciso ao termo: à palavra

magia.

Este é o caso do franciscano Roger Bacon (c. 1219-1292), que, atualmente considerado um dos principais nomes da escolástica do século XIII118, escreveu muitas

páginas sobre o tema e também sobre a alquimia. Ocasionalmente associando esses tópicos à

scientia experimentalis, contribuiu em grande medida para os estudos da física ou da ciência

da natureza (compreendidos no gênero dos naturalia). Nesse esforço de entender as relações de causa e efeito entre os astros e a vida na Terra sem recorrer, necessariamente, às explicações de um vocabulário teológico ou que se voltassem ao mundo espiritual, como fez Guilherme — que falou dos “ignorantes” que viam ações dos demônios onde haveria apenas o funcionamento da própria natureza —, Bacon também chamou a atenção para a confusão que muitos teólogos faziam a respeito da verdadeira e da falsa “astrologia”119. Segundo o

franciscano, essa confusão levaria ao “impedimento do estudo da sabedoria”120, prejudicando

de forma gravissime tanto a teologia quanto a filosofia. Bacon explicou que muitos teólogos recorriam às autoridades para atacar a astrologia como um todo, desconsiderando o que era verdadeiro e útil, e que estes “não sabem distinguir a verdadeira astrologia da falsa, e por isso

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116 Ibid. C. XLVI, p. 663bD. No original: “quod nullam habent creatoris offensam, vel injuriam”. 117 GIRALT, S. Magia y ciencia... op. cit. p. 25. No original: “[pretenden] salvar de la infamia”.

118 HACKETT, J. “Roger Bacon: His Life, Career and Works”. In: Idem. Roger Bacon and the Sciences. Commemorative Essays. Leiden et al: Brill, 1997. p. 20.

119 O termo “astrologia” foi usado aqui como a tradução mais aproximada para o termo mathematica, usada por Bacon, nesse contexto, em relação com o estudo e observação dos corpos celestes, bem como das suas influências. Há aqui a validação ou ampliação de um conceito que, para Agostinho e Isidoro de Sevilha, por exemplo, era usado exclusivamente para rotular uma astrologia proibida ou “supersticiosa” (nos termos de Isidoro). Para Bacon, diferente disso, a arte dos mathematice poderia ser digna e até útil para a Igreja.

120 The Opus Majus of Roger Bacon. Ed. J. H. Bridges. v. 1. Oxford: Clarendon Press, 1897. p. 239. No original: “Impedit studium sapientiae [et laedit gravissime in hac parte]”.

eles culpam, pela autoridade dos santos, a verdadeira junto da falsa”121. O franciscano

explicou que, com o objetivo louvável de atacar as artis magicae, os teólogos, ignorantes dessa distinção, tomaram uma ciência legítima e “nas suas lições, pregações e nas suas reuniões, a condenam pública e privadamente”122, e, de forma irremediável, “destruindo a

filosofia, ainda ferem a majestade teológica e prejudicam a Igreja”123. O autor argumentou que

sábios como Moisés, Salomão e Aristóteles souberam distinguir uma coisa da outra e, utilizando uma metáfora semelhante à do joio e do trigo, explicou que “os sábios conseguem escolher os grãos saudáveis da palha e isolar o antídoto (do veneno) da serpente”124.

Referindo-se diretamente a algumas autoridades, argumentou que “teólogos atuais, Graciano e a maioria dos santos [Pais] reprovaram numerosos saberes úteis e magníficos junto com os saberes mágicos, sem levar em conta a diferença entre a magia e a verdadeira filosofia”125. Em

outras palavras, mesmo que não tenha feito uma defesa do conceito de magia por si só, Bacon reconheceu que eventuais conhecimentos úteis e importantes foram colocados, equivocadamente, dentro dessa ampla categoria das artes mágicas. Diferente de Guilherme de Auvergne, para o franciscano, o conceito de “magia” continuou sendo reservado às práticas suspeitas, mentirosas e diabólicas.

Posicionando-se firmemente no campo da ortodoxia, insistiu que essa ciência da natureza, nobilissima, é “separada de todas as artes mágicas”126 e por isso “condena toda a

invocação dos demônios, pois não apenas a teologia, mas também a filosofia ensina que eles devem ser evitados”127. Nessa linha de argumentação, Bacon enquadra essa ciência da

natureza que pretende manipular as forças dos astros no mesmo espaço de das ciências mais legítimas da teologia e da filosofia. “E por isso”, segue sua explicação, “nunca os verdadeiros filósofos se dedicaram à invocação de demônios, mas apenas os magos loucos e malditos”128.

Dito de outra forma, aqui novamente o critério da intervenção diabólica e da deturpação dos 

121 Ibid. No original: “nesciunt distinguere veram a falsa, et ideo tanquam auctoritate sanctorum culpant veram cum falsa”.

122 Ibid. p. 248. No original: “ob hoc eam in lectionibus praedicationibus et collationibus publicis et privatis damnantes”.

123 Ibid. No original: “in maximam philosophiae destructionem, deinde in laesionem theologicae majestatis, et in damna ecclesiae”.

124 Ibid. p. 392. No original: “Sed sapientes sciunt eligere grana de paleis, et theriacam de serpenti separare”. 125 Ibid. p. 396. No original: “Theologi nunc temporis et Gratianus et sancti plures multas utiles et magnificas scientias reprobaverunt cum his magicis, non attendentes differentiam inter magicam et philosophiae veritatem”.

126 Part of the Opus Tertium of Roger Bacon. Ed. A. G. Little. Aberdeen: The University Press, 1912. p. 47. No original: “[Hec scientia nobilissima] evacuat omnes artes magicas”.

127 Ibid. No original: “Et hec scientia damnat omnem demonum invocationem, quia non solum theologia, sed philosophia docet hos vitare”.

128 Ibid. No original: “Et ideo numquam veri philosophantes curaverunt de demonum invocatione, sed magici insani et maledicti”.

ritos religiosos serviu como uma régua para medir a legitimidade moral, mas também científica, dos estudos ou das relações que os homens procuravam estabelecer com as forças dos céus. É por essa razão que Bacon não viu problemas quando, na Tertia pars da sua Opus

majus (ou Obra principal, c. 1267-1268), falando sobre as virtudes ou poderes ocultos de

algumas palavras129, explicou que sabidamente “as palavras sacramentais possuem uma

virtude infinita”130. A exemplo disso, mencionou a história de um homem que, sofrendo de

epilepsia (o que na Idade Média foi chamado de “mal caduco” ou morbo caduco), foi curado por “versos escritos que foram colocados ao redor do seu pescoço”131, a saber, “por dois

versos que continham os nomes dos três reis (magos)”.132 Explicado de outra forma, era uma

espécie de amuleto ou, mais precisamente, uma ligadura ou filactério, recurso que não foi entendido por Bacon enquanto mágico, mas sim como algo sagrado e isento de suspeitas.133

Alberto Magno (c. 1200-1280) foi outro estudioso que não se furtou de alargar as fronteiras da legitimidade das práticas “mágicas”. Foi por muito tempo responsável pelo

studium generale de Colônia, vinculado à ordem dos dominicanos, onde lecionou sobre e

comentou o corpus aristotélico, aparentemente despreocupado com as proibições que foram impostas pela Universidade de Paris no começo do século XIII e depois reiteradas pelo próprio papa Gregório IX, em 1231, em razão dos eventuais conflitos de Aristóteles com a fé cristã.134 Reputado como grande intelectual, ainda em vida recebeu o título de Doctor universalis e o epíteto Magnus, ou “o Grande”, pelo qual é conhecido até hoje. Em 1931 foi

canonizado por Pio XI e em 1941 reconhecido pela Igreja como patrono das ciências da natureza.135

Como Guilherme que tratou das virtudes naturais e ocultas que existiriam nos corpos e na matéria e que seriam capazes de operar maravilhas, Alberto foi ainda mais além ao 

129 A discussão sobre a influência ou o poder oculto das palavras foi outro topus importante nos estudos da física ou da ciência natural. O tema foi particularmente importante no tratado de origem árabe De radiis ou Theorica artium magicarum, já mencionado aqui. Ver: BOUDET, J.-P.; WEILL-PAROT, N. Être historien... op. cit. p. 208.

130 The Opus Majus of Roger Bacon. Ed. J. H. Bridges. v. 3. Frankfurt: Minerva, 1964. C. XIV (Lê-se Capitulum XIV). p. 123. No original: “Verba sacramentorum habent infinitam virtutem”.